Em SP, jovens da Cidade Tiradentes transformam barbearia em galeria de arte
No extremo leste de São Paulo, três artistas independentes da Cidade Tiradentes se juntaram para transformar uma barbearia em uma galeria de arte dentro do maior conjunto habitacional da América Latina.
A Mema Fita foi inaugurada no dia 30 de maio, na rua Rua Vitalina de Jesus Schalsc, número 1268. Ao chegar no endereço da galeria, de longe já dava para ver um aglomerado de pessoas disputando o espaço de 3x5m para prestigiar o evento, que além das pinturas de Zona Thomaz, 24 anos, contou com a exibição do filme Fluxo do cineasta Filipe Barbosa, 28 anos, e com uma intervenção artística do barbeiro Drigo, 27 anos, também conhecido como o 'mais famoso da Cidade'.
Trocadilhos à parte, a popularidade do negócio de Drigo de fato influenciou a decisão de Thomaz e Filipe na hora de selar o acordo com o barbeiro. 'A pessoa pode não saber qual é a rua, mas se você der como referência a barbearia do Drigo ela vai chegar ao destino', diz Thomaz orgulhoso do amigo que tem uma conexão forte com a comunidade e um espaço com frequentadores de todas as idades e diferentes gêneros.
Para os idealizadores da galeria não foi difícil estabelecer uma conexão entre arte e corte de cabelo, além disso, os próprios clientes do Drigo já reconhecem seu corte como uma assinatura. 'Dependendo do desenho eu já sei que foi ele quem fez', diz Hayanne Santos, 22 anos, que frequenta o espaço desde 2019 e fez até sua mãe virar cliente do barbeiro.
Durante a intervenção, o barbeiro contou que escolheu a profissão por influência da mãe, que é cabeleireira. Depois de trabalhar em alguns salões mais elitizados, Drigo resolveu abrir seu próprio negócio e voltar sua atenção para a estética do lugar onde nasceu e cresceu. Para ele, seu estilo de corte de cabelo hoje é mais 'rua', soma elementos a um tipo de identidade produzida na periferia e representa mais do que aparência. 'Quem está na régua barra preconceitos, porque fica mais confiante'.
O curador da galeria Mema Fita, Filipe Barbosa acredita que trazer outras linguagens artísticas para dentro da barbearia é um jeito de quebrar a hegemonia de onde a arte se encontra e trazer essa realidade para um lugar de grande circulação da juventude de quebrada.
Na galeria Mema Fita a representatividade potencializa a cultura negra e periférica com telas de personalidades negras como Malcom X, Carolina Maria de Jesus, e cenas de um cotidiano leve e trivial, que foge de uma imagem estigmatizada da periferia.
Jovens com blacks power armados, camisas de time, tenis Nike 12 molas, uma das linhas de ônibus mais conhecidas da região, cenas e referências positivas que retratam a Cidade Tiradentes de um jeito que quem mora lá consegue se reconhecer e criar conexões genuínas com o que está vendo.
Leo de Souza, 22, se emocionou ao ver o Instituto Joias do Futuro representado em uma das telas. Ele é presidente do projeto que trabalha para transformar a realidade de crianças e adolescentes da Cidade Tiradentes a partir do basquete.
Ter uma galeria de arte na quebrada, feita por gente daqui e com uma homenagem ao nosso trabalho motiva o nosso corre, que por vezes é muito solitário.
Silvia Solange, 56, gostou de ver o ônibus 312N representado na parede do lugar onde ela corta o cabelo há anos. Ela conta que essa é uma das linhas mais antigas da região e ao ligar o terminal Cidade Tiradentes à Guaianazes conecta muitos lugares do extremo leste e atende um público grande.
É uma linha que quem é daqui, conhece'. Silvia também aproveitou para destacar o orgulho que tem de Thomaz, que segundo ela, já era um menino conhecido no bairro por seus grafites. Ele conseguiu ir além de trazer para cá essas telas, é difícil ver quadros por aqui e acredito que isso pode sensibilizar o pessoal para outras possibilidades de arte e de profissão.
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Quero receberPor ser cria da Cidade Tiradentes, Thomaz conta que se preocupa em trazer a identidade do bairro e ser fidedigno aos traços dos moradores de um lugar que foi construído a partir da expulsão de negros da região da Bela Vista, a partir da década de 1970. O reflexo de uma política higienista de Estado deu origem a um distrito periférico em que 56,1% se declara pardo ou negro, segundo o levantamento da Rede Nossa São Paulo com base em dados de 2019.
A Cidade Tiradentes conta hoje com um Centro Cultural, dois pontos de leituras e uma Fábrica de Cultura, mas os idealizadores da galeria Mema Fita acreditam que esses espaços não dão conta de toda a população e sua pluralidade de demandas.
Para Dai Ayaba, 28, o que faz falta nos equipamentos de cultura do Estado são programações que tenham mais a ver com o público da Cidade Tiradentes: "Me sinto mais à vontade e bem representada aqui, com as produções exibidas na galeria Mema Fita".
Nascida e crescida na região, Dai também destaca a importância de que existam mais incentivos para criação e manutenção de espaços como a Galeria Mema Fita.
Esse lugar lotado desse jeito, numa quinta-feira fria, eu acho maravilhoso, mas se a polícia passa aqui essa hora e vê esse monte de jovem aglomerado é capaz de já começar a reprimir.
'Filme, quadros e corte de cabelo porque nois é a Mema Fita, nois é arte'
É assim que o curador da galeria e diretor do filme Fluxo, Filipe Barbosa, abre seu discurso após a exibição do curta. A noite é de celebração por muitos motivos, um deles é poder mostrar o resultado do projeto que foi inspirado e produzido na Cidade Tiradentes.
A obra mostra uma história de amor em um baile funk que é interrompido pela chegada da repressão policial. O ator que dá vida ao personagem principal, François Augusto dos Reis, conta que a ideia foi intencional. 'É uma analogia, quando o filme está ficando bom, chega a polícia e aí acaba'.
Dizem que a arte imita a vida, mas no caso do Fluxo, parece que a vida reafirmou o que o Fluxo filme denuncia. A primeira tentativa de exibição da produção na Cidade Tiradentes foi interrompida pela polícia durante o aniversário de 40 anos do bairro, no dia 21 de abril de 2024.
Filipe Barbosa disse que os PMs alegaram que o evento para exibição do filme não tinha alvará para acontecer e que era uma cortina de fumaça para atrair compradores de drogas, armas e carros roubados. Para o diretor do filme, a opressão aconteceu por se tratar de um encontro que promovia a cultura funk com presença não só de MCs e jovens periféricos, mas de personalidades como a mãe de uma das vítimas mortas no baile da DZ7 em 2019.
Serviço:
Galeria Mema Fita (Rua Vitalina de Jesus Schalsc, 1268, Cidade Tiradentes, São Paulo)
De terça a domingo, das 11h às 20h (o espaço está aberto para visitação e cortes de cabelo)
Programação: @galeriamemafita, no Instagram.
Preço: As obras de Zona Thomas custam de R$ 100 a R$ 1.000 e os cortes do Drigo Oliveira são a partir de R$ 30
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