Cannibal, da Devotos, vê punk mais aberto: 'Éramos machistas e homofóbicos'

Surgida em 1988, na zona norte do Recife, a Devotos é uma pedra fundamental da cena punk pernambucana, que ganhou notoriedade no Brasil com "atitude punk", como definiu o líder e baixista Cannibal em entrevista a Splash.

Uma marca da Devotos é fazer o grito social das letras ecoar mais alto do que os arranjos estridentes do punk. Essa mistura de gêneros arrebatou artistas de outros estilos, que gravaram com a banda, a exemplo de Dado Villa-Lobos, Chico César e Herbert Vianna. E inspirou regravações criativas das suas canções emplacadas por Karina Buhr e Mônica Feijó.

A banda acaba de lançar o álbum "Sessões Selo Sesc #12: Devotos", que reúne canções gravadas durante o festival 1, 2, 3, 4 - O Punk Segue Muito Vivo, realizado em setembro de 2022 no Sesc Avenida Paulista.

As 22 canções percorrem a trajetória de 36 anos do grupo, reconhecido como Patrimônio Cultural de Recife, e mostram que o punk brasileiro está "vivo e se renovando", afirma Cannibal, que considera São Paulo a segunda casa da Devotos.

Uma marca da Devotos é a combinação de música e grito social. Como isso está traduzido neste novo álbum "Sessões Selo Sesc #12: Devotos"?

"A gente fala de tudo. Mostramos o nosso inconformismo, então, uma música como "Eu Tenho Pressa de Vencer" fala da nossa luta dentro de uma periferia para sobreviver com a nossa arte. Na música 'Nossa História', falamos de religiões de matriz africana, de gordofobia, fala-se sobre racismo."

A gente fala sobre tudo que nos causa inconformismo. Cannibal, vocalista da Devotos

"Eu gosto muito dessa coletânea, pois ela abrange toda a obra da Devotos. A nossa banda surgiu para falar das injustiças que existiam no Alto [Alto José do Pinho, bairro da periferia do Recife onde a banda surgiu]. Mostrar inconformismo já está no nosso sangue. E nós vimos de uma época em que não existia tecnologia. Para nos informarmos, precisávamos pesquisar bastante. Na nossa música, a gente fala de assuntos mesmo que eles não estejam nos ferindo. Mas se a gente souber que tem pessoas sofrendo por causa daquele problema, a gente aborda na nossa música."

A gente fala de temas que não nos afligem necessariamente, mas afligem a sociedade.

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Cannibal, vocalista da Devotos: 'O punk é de contestação'
Cannibal, vocalista da Devotos: 'O punk é de contestação' Imagem: Tiago Calazans/Divulgação

Esse álbum foi gravado durante o festival 1, 2, 3, 4 - O Punk Segue Muito Vivo. Então, como vocês avaliam a força do punk atualmente?

"Eu acho que o punk está cada vez mais vivo. A nova geração vem se misturando aos precursores. A gente tocou com Inocentes, Black Pantera tocou com a gente. Punho de Mahin, há pouco, tocou com a gente na Virada Cultural, então, a gente vê as novas gerações influenciadas nos precursores e tá todo mundo junto, conectado, trocando ideias."

Hoje, eu vejo um movimento punk mais abrangente, e não um movimento punk de carteirinha, assim como era antigamente.

"Punk de carteirinha era aquele punk de visual. Hoje, você vê mais atitudes punks, do que punk de carteirinha. O movimento punk é abrangente, está na literatura, na gastronomia vegana. O punk é de contestação e, hoje, com essa tecnologia e com essa galerinha muito mais sagaz do que a gente, com a mente muito mais aberta do que nos anos 1980."

Antes, nós éramos muito machistas, homofóbicos. Hoje, acho que o movimento punk é mais aberto e consegue trazer mais pessoas para perto.

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Devotos durante o show de gravação de 'Sessões Selo Sesc #12: Devotos'
Devotos durante o show de gravação de 'Sessões Selo Sesc #12: Devotos' Imagem: Renan Abreu/Divulgação

A Devotos é conhecida por puxar roda punk feminina já em 2010. Desde então, o que mudou?

"Eu acho que puxar uma roda punk feminina é uma parada de confraternização, pois as mulheres têm o direito de entrar em qualquer roda. Mas, como eu venho dos anos 1980, uma época muito machista, onde em cima do palco a grande maioria era homens e na plateia as únicas mulheres presentes eram namoradas dos músicos, que estavam no palco, puxamos essa roda. Hoje, eu vejo o movimento mais abrangente, com mulheres nas rodas, em cima do palco mandando a letra, falando como ela pensa que deve mudar e vejo até festivais punks só de mulheres. Eu acho isso muito massa!"

Devotos, banda punk do Recife, que lança o álbum 'Sessões Selo Sesc #12: Devotos'
Devotos, banda punk do Recife, que lança o álbum 'Sessões Selo Sesc #12: Devotos' Imagem: Tiago Calazans/Divulgação

A banda acaba de ser reconhecida Patrimônio Cultural do Recife. Qual legado você acha que esse título celebra?

"A gente comemora a conquista que é reunir pessoas que não são punks, mas que se aproximaram do nosso trabalho, gravaram com a gente nesses 36 anos de história. Tony Platão, que era vocalista da Hojerizah, participou do segundo disco da gente. Hebert Vianna [Paralamas do Sucesso], que participa do segundo disco da gente. Ras Bernardo [ex-Cidade Negra] também gravou com a gente. China, do Sheik Tosado, Dado Villa Lobos, Chico César, Criolo, Isaar. Fora isso, tem umas dez pessoas que são do movimento punk, mas tocaram com a gente, que têm muita atitude no que eles fazem."

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Porque arte para nós é algo que tem que fazer você se informar, contestar, transformar, arte para nós é isso.

"Trazer essas pessoas para os nossos discos punks é uma revolução. E tem muita gente se ligando na importância dessa troca, por isso vem me chamando para tocar com eles, como Karina Buhr, Abulidu, Marcelo SantA'anna, que não são punks."

Devotos no festival 1, 2, 3, 4 - O Punk Segue Muito Vivo, realizado, em setembro de 2022, no Sesc Avenida Paulista
Devotos no festival 1, 2, 3, 4 - O Punk Segue Muito Vivo, realizado, em setembro de 2022, no Sesc Avenida Paulista Imagem: Renan Abreu/Divulgação

São Paulo é a casa onde vocês gravaram as 22 faixas que estão nesse novo álbum. O que essa cidade representa para o punk nacional e para o punk da Devotos?

"São Paulo, para mim, é tudo dentro do punk. São Paulo me fez criar uma banda punk. Apesar do punk já ter iniciado aqui em Recife, eu decidi criar uma banda influenciada pelo Clemente, que é o meu ídolo até hoje, e é o líder da banda Inocentes. Ratos de Porão, Cólera, Agrotóxicos, essas bandas fizeram parte da nossa vida."

No início da carreira, a gente era tão influenciado por São Paulo, que as músicas da Devotos eram muito parecidas com as das bandas de São Paulo.

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"A gente veio a ter uma identidade como banda a partir do álbum 'Agora Tá Valendo', mas, antes disso, a nossa coletânea em vinil 'Demos e Raridades', que reúne músicas demos e gravadas em ensaios, tem uma forte influência do punk de São Paulo. A primeira vez que a gente tocou em São Paulo foi no Aeroanta, no Festival Rec-Beat. Hoje, São Paulo é o lugar, depois do Recife, onde a gente mais toca no Brasil."

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