OPINIÃO
No streaming, documentário retrata Cyndi Lauper como fada sensata do pop
Camilo Rocha
Colaboração para Splash, em São Paulo
13/06/2024 04h00
Cyndi Lauper brilhou forte na década de 1980 com hits como "Girls Just Wanna Have Fun" e "True Colours". Tão amplo foi seu sucesso que, por um breve momento, a cantora chegou a ser colocada como "rival" de Madonna. No entanto, quando os anos 1990 chegaram e Madonna fazia o mundo dançar "Vogue", Cyndi desapareceu do radar.
"Let the Canary Sing", que acaba de estrear no serviço de streaming Paramount+ e também está na programação do festival de documentários musicais In-Edit (em São Paulo e online), é um documentário que repassa a trajetória da artista desde sua infância no Brooklyn, em Nova York.
O documentário se soma ao que parece ser um momento de conclusão da carreira de Cyndi Lauper. Com 70 anos completados em junho de 2023, a cantora anunciou que fará sua última turnê de grandes palcos em 2024, pois "estou forte agora, mas não sei como estarei daqui a quatro anos". A "Farewell Tour" (turnê de despedida, em tradução livre) inclui um show no Rock in Rio, em 20 de setembro.
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Ao "New York Times", Cyndi disse que hesitou em fazer o documentário pois nunca sentiu que sua carreira necessitava de maiores explicações. Na sua visão, ela sempre foi transparente e direta com seus fãs. De acordo com ela, "Let the Canary Sing" não teria assim como conter revelações ou ângulos até então pouco explorados.
Dirigido por Alison Ellwood, que também registrou artistas como Eagles e Go-Gos, o filme investe em minúcias da vida pessoal e artística da cantora. O primeiro terço da produção mostra o caminho de Cyndi antes do sucesso, da convivência difícil com o padrasto abusivo até sua primeira banda profissional, Blue Angel.
Depoimentos de pessoas importantes para sua vida ajudam a contar a historia, entre elas Ellen Lauper, a irmã mais velha inspiradora; David Wolff, ex-namorado e empresário durante seu auge; e o cantor britânico Boy George, amigo pessoal de Cyndi que traz insights precisos sobre fama e carreira.
O filme oferece dois recortes bem interessantes. O primeiro é o período da construção de seu sucesso, do surgimento de sua imagem colorida e espalhafatosa até o desenvolvimento do sucesso "Girls...", uma recriação para meninas empoderadas de uma obscura canção de Robert Hazard de viés machista.
O segundo é a maneira como sua empatia e solidariedade a causas LGBTQIA+ foi moldada pela irmã lésbica e amigos gays na adolescência.
No entanto, como a própria cantora admitiu, não há novidades em sua história. Seria possível talvez tentar jogar luz sobre alguma perspectiva pouco desenvolvida ou mesmo investigar mais a fundo algum período específico. Mas o tom laudatório do filme não abre chance para essa visão mais crítica ou complexa.
No caso de Cyndi, a virada de superestrela do pop para artista esquecida no fim da década de 1980 oferecia potencial para esse olhar mais cuidadoso. Foi quando saiu seu terceiro álbum, "A Night to Remember", de 1989.
Assista abaixo ao vídeo de "Girls Just Want to Have Fun"
Ao contrário dos antecessores ("She's So Unusual", de 1984, e "True Colours", de 1986), o disco só gerou um hit e teve números de vendagem muito inferiores. Algumas críticas vieram duras: Robert Christgau, o célebre "decano" dos críticos americanos, chegou a dizer que se sentia "constrangido" por ter acreditado no potencial da cantora.
O desempenho ruim do trabalho foi a culminação de um processo de crescente desconforto de Cyndi com as engrenagens do sucesso e da indústria fonográfica. "A fama me incomodou, eu odiava", afirma a cantora no documentário. "Odiava ser vista como ícone, odiava ser vista como algo fabricado". Corta para a sabedoria de Boy George, com uma das melhores frases do filme: "Você nunca escolhe o tipo de fama que vai ter".
"Let the Canary Sing", porém, sobrevoa esse período de crise e questionamento de maneira ligeira e confusa. Seria uma chance de se aprofundar nos dilemas que a fama traz para alguns artistas ou ainda tratar das adversidades que podem vir quando se tem que lidar com uma grande gravadora, mas isso não acontece. As escolhas que levaram ao fraco terceiro álbum vieram de quem? Por que Cyndi desembarcou da fama de modo tão radical? Não fica claro.
Depois da fama, Cyndi lançou álbuns que poucos ouviram, casou em 1991 e teve seu único filho em 1997. Continuou dedicada ao ativismo, em especial ligado a causas LGBTQIA+. Seu maior feito nesse período foi a composição da trilha sonora do celebrado musical da Broadway "Kinky Boots", de 2012, pela qual ganhou um prêmio Tony (o Oscar do teatro americano).
Documentários recentes de Donna Summer ("Love to Love You, Donna Summer") e do grupo Wham! (de George Michael) são exemplos de como um olhar mais compenetrado para as contradições e dilemas dos personagens rendem histórias ricas.
Generoso, "Let the Canary Sing" retrata Cyndi Lauper como uma fada sensata do pop. Mas, para os que preferem histórias do pop servidas com drama e emoção, a experiência do documentário acaba sendo um tanto morna.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL