'Terror das empregadas', Odair José lança álbum com IA: 'Vejo como aliada'
Adriana Del Ré
Colaboração para Splash, em São Paulo
04/07/2024 04h00
Aos 75 anos de idade e 54 de carreira, Odair José já colecionou muitas alcunhas. Foi chamado de o 'terror das empregadas', expressão forjada por Rita Lee e Paulo Coelho na canção "Arrombou a Festa", por causa de sua música "Deixa Essa Vergonha de Lado", em que jogava luz à dura realidade das empregadas domésticas no Brasil.
Ele também já foi colocado no balaio da música brega. Mesmo sem saber, foi contrário ao programa de controle de natalidade do governo militar durante a ditadura, ao estourar com a canção "Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)" — e acabou tornando-se um dos artistas mais censurados nesse período.
"Dizem que, depois do Chico Buarque, sou eu (risos). Não sei, mas tive muito problema", diz Odair, em entrevista a Splash, em um estúdio no bairro de Perdizes, em São Paulo — assista à entrevista completa no player acima.
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Foram-se os apelidos, mas permaneceram sua celebrada obra e o olhar de cronista musical sobre a sociedade contemporânea. É com esse olhar que Odair José faz uma radiografia dos novos tempos em seu disco "Seres Humanos (e a Inteligência Artificial)", o 39º da carreira, em que aborda assuntos como bipolaridade, novas formas de relacionamento, paixão, desejo e tecnologia.
Nessa sua nova ópera rock, em que as canções se conectam como capítulos de uma narrativa, a inteligência artificial (IA) ganha protagonismo não apenas como tema, mas também como um dos integrantes de sua banda de 'quase um homem só', tocando instrumentos e fazendo duetos com ele.
O cantor e compositor goiano relembra, ainda, seu polêmico disco "O Filho de José e Maria", de 1977, odisseia musical que tem Jesus Cristo como personagem principal — o que incomodou a Igreja Católica, que teria até o excomungado. O projeto censurado que abalou sua carreira nos anos 1970 foi o mesmo que o fez ser mais recentemente descoberto e cultuado por uma nova geração de fãs.
A seguir, leia trechos da entrevista
A Inteligência Artificial é vista com muito receio em várias áreas, como uma ameaça. Na música, é a mesma coisa. No disco, você não só aborda o tema como utiliza isso, tecnicamente e também fazendo dueto. Você vê a IA como uma aliada dentro da música?
Odair José - Existem coisas que a gente não tem como evitar e a Inteligência Artificial é uma delas. Sei que existe receio de que forma isso vai ser usado, mas os governos ou sei lá quem têm que fazer as leis que cuidem disso. Esse disco já é projetado faz tempo. Tem um ano e meio que a gente está fazendo. A ideia inicial era fazer um disco só eu e o (produtor) Junior Freitas, que é multi-instrumentista.
É um projeto que pensei ainda na pandemia e logo depois, em 2021, 2022, fiz as canções. Quando começamos a gravar, ele me falou que existia um caminho que a gente podia trazer para a produção. Aí falou da Inteligência [Artificial] e começou a me mostrar de que forma a gente poderia usar. Comecei então a conviver com a Inteligência Artificial.
Eu vejo a inteligência artificial como aliada e, depois, não tem como evitar esse tipo de coisa. Ela está aí e vai ficar aí cada dia mais, em todos os segmentos. Isso é uma opinião minha, e acho que não estou errado. Então, tem que ver como aliada. Os receios têm que ser superados de outras maneiras.
Você canta com a IA em duas faixas, certo? Como foi fazer esse dueto e se isso não abre um debate ao você deixar de usar a voz de uma cantora e utilizar uma voz gerada por IA? De estar tirando o lugar de uma pessoa que podia estar cantando com você?
Odair José - "Tirando" acho que é meio exagero. Eu não ia fazer com pessoa nenhuma, começa por aí. Foi muito divertido e é uma pena até que eu já tinha prazos estourados com a produção. Eu tinha assumido alguns compromissos com o final do trabalho. Você tem que ter tempo para lidar com a inteligência artificial. Eu poderia ter feito muito mais coisa.
Por exemplo, na faixa "Seres Humanos", a primeira parte da música é falada. Eu, na verdade, só canto o refrão. Eu mesmo ia falar ou ia convidar um amigo para falar. Aí pensei: já tive discos meus do passado em que fiz coisas assim, eu falando, e conheço outros colegas meus do Brasil que já fizeram várias canções falando. A inteligência artificial pode fazer isso? Claro que pode. O propósito é que as pessoas percebam que é um programa, é um computador, não é uma pessoa.
A ideia do disco é eu fazendo uma análise dos seres humanos, é um olhar meu sobre eles. O que está acontecendo? O que estou vendo? Porque sempre meu trabalho foi esse: de olhar para as pessoas e fazer as canções. E eu ando meio assustado com alguns comportamentos ou com algumas inversões de valores do ser humano de um modo geral. Então, seria muito proveitoso que a inteligência artificial, uma coisa robótica, viesse para dar uns palpites, e tinha muito a ver com a minha proposta do disco.
Com respeito a cantar, que foi lá na música "No Ponto", na última faixa, que é um bônus track, uma música minha e da Bárbara Eugênia, eu queria botar uma voz ali, um dueto. Será que ela faz? Faz. Quando fizemos, o Junior Freitas falou: você não acha que ficou meio cômico. Falei: não, ficou lindo, ficou maravilhoso.
E a IA também toca piano, percussão, contrabaixo, masterizou todo o disco, ajudou na mixagem. Então, é uma aliada. Inclusive, tinham duas coisas que eu, mais jovem, pensava que não fosse ver em vida.
Antigamente, eu primeiro achava que eu não ia passar dos 35 anos, achava que ia morrer antes. Aí estou com 75 anos. Mas achava lá atrás: se eu ficar velho, o ser humano vai ser leve, vai ser zen. Aí não, virou tudo uma polarização, uma loucura toda, por isso é que eu fiz a canção 'DNA': 'Estamos caindo no abismo da involução'.
E por que você achava que não ia passar dos 35 anos?
Odair José - Ah, sei lá... Primeiro, fui uma pessoa que saiu lá de Goiás muito jovem. Cheguei ao Rio de Janeiro também muito jovem para tentar esse negócio de música, e as coisas deram certo para mim de uma forma até rápida. Eu era totalmente careta, totalmente voltado para o trabalho. Depois, lá pelos 27, 28, 29 anos, andei meio desencantado com algumas coisas.
Fiquei muito na boemia e, quando você vai para a boemia, você maltrata muito o seu corpo, usa coisas, bebe coisas. De uma certa forma, você se envenena na boemia. E baseado nisso e também numa crença minha mesmo, de intuição, eu achava que eu não ia bater os 40. Mas era mais um pressentimento.
Por causa dos excessos da boemia, de beber, de usar droga? Isso foi quando você tinha alcançado sucesso, certo?
Odair José - Sim, na verdade, meu sucesso junto ao público veio muito cedo. Com 22 para 23 anos, eu já era um cara muito conhecido no Brasil, um dos que mais vendiam discos, que tocavam em rádio. Eu trabalhava muito, fiz grandes amizades no meio, as pessoas me ajudaram bastante, fiz composições que foram boas, fiz bons discos e, ao fazer bons discos, tive a chance de fazer muito sucesso e viajei muito.
Em 1977, faço o projeto "O Filho de José e Maria", porque eu achava que eu tinha que trazer um projeto novo para as pessoas, porque sou da opinião que quem repete fórmulas não faz arte, faz negócio.
Em 1976, quando lancei o disco "Histórias e Pensamentos", eu achava que estava repetindo uma fórmula, estava fazendo uma coisa que eu já fazia havia quatro, cinco anos — você fica fazendo aquilo para se manter na parada, para vender o disco, que é o que as gravadoras querem. Eu falei: vou arriscar.
A intenção de fazer 'O Filho de José e Maria' era fazer uma coisa maior, melhor e que também desse certo. Só que não deu, as pessoas foram contra, fui muito bloqueado, como se fala hoje na gíria. Fui bloqueado de todas as maneiras.
Você foi censurado, não tocava em rádio...
Odair José - As pessoas não me programavam em shows, a Igreja (Católica) disse que ia me excomungar.
A Igreja chegou a excomungar você de fato?
Odair José - Não sei, não me interessei muito. As pessoas me perguntavam: "Mas isso influenciou na sua vida?". Eu dizia que não interferiu em nada, mas, depois, pensando bem, se eu fui excomungado, interferiu, sim, porque o negócio desandou. Era um tremendo de um disco muito bem gravado, tanto que, agora, quase 50 anos depois, ele é descoberto e as pessoas o respeitam muito. Está certo que a gente já tomava uns vinhos, já dava uns tapas no fumo, mas era de forma recreativa.
Mas, de repente, como aquilo desandou, me bloquearam para tudo, fui para boemia e enchi a cara, cheirei todas, a minha vida desandou mesmo e pronto. Até que uma hora, eu falei: 'Esse não sou eu'.
Depois, aos poucos, fui percebendo nos meus shows um público mais jovem, e esse público chegava por conta de "O Filho de José e Maria". Descobri que os jovens estão trazendo esse disco de volta e, por outro lado, percebi que eu tinha músicas muito fortes.
Falei: 'Fiz um monte de coisa errada, mas o repertório está aí'. As músicas têm 50 anos. Elas têm uma relevância, e tudo isso me fez repensar o meu trabalho e a minha vida.
É um daqueles exemplos de trabalhos incompreendidos que depois são revisitados mais adiante e se mostram atemporais. Mas estamos falando de um contexto político e social totalmente diverso, de ditadura, de conservadorismo.
A Igreja disse que estava me excomungando, porque seria uma blasfêmia, eu estaria brincando com a vida de Jesus Cristo. Não é nada disso. As músicas têm um outro sentido, fazem uma outra leitura.
Tenho nas minhas letras, na minha forma de escrever, uma coisa que continua até hoje, nesse disco que estou lançando agora. Estou sendo coerente comigo desde o início, que é bater nessa hipocrisia, nessa falsa moral que a sociedade tem desde quando o mundo é mundo.
Por exemplo, quando fiz a música "Eu Vou Tirar Você Desse Lugar" (1972), sobre o cara que se apaixona por uma prostituta, vendeu horrores. Foi um sucesso absurdo, é um clássico, canto em todos os shows. Quando eu a fiz, foi um pandemônio. Cheguei até a ser chamado pelo departamento da Censura. Foi a primeira vez que eu estive numa censura do governo.
Fui conversar com o cara, ele queria saber de onde eu tirava a frase: "Eu vou tirar você desse lugar". Ele disse: "Você é um compositor que a censura nem sabia que existia, mas não é de bom tom nesse momento você fazer uma música dizendo 'eu vou tirar você desse lugar'".
Eles achavam que estava remetendo a quê?
Odair José - Achava que eu estava me referindo ao governo. Eu falei: "Não, o senhor está muito enganado, não estou falando do governo, estou falando do amor de um cara por uma prostituta". Ele ficou horrorizado. Falou: "É muito pior do que a gente pensava".
Ele disse que toda música, todo disco que eu fosse fazer não seria gravado antes de eles olharem. A partir daí, tive a censura do governo como parceira, porque tudo que eu fazia tinha que ir para lá e tive várias músicas que eles não deixaram passar, como "Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)", que eles proibiram, e foram proibindo tudo.
"Eu Vou Tirar Você Desse Lugar" foi então a música que colocou você visado para os censores...
Odair José - E foi a música que me fez ser conhecido no Brasil, porque foi o compacto mais vendido da época. A canção foi o primeiro lugar quase um ano inteiro. Foi feita uma pesquisa na época que mostrava que eu tinha vendido três vezes mais discos do que a existência de vitrolas no Brasil. Dizem que vendeu mais de 1 milhão de compactos só naquele ano. O maior vendedor de discos do Brasil, que era o Roberto Carlos, vendia 200, 300 mil cópias.
Você e outros artistas eram colocados como 'bregas' naquele contexto de anos 1970, porque vocês não faziam parte da turma dos engajados da MPB. Sei que você refuta esse título, porque tem esse caráter mais pejorativo. Eu queria entender se foi a intelectualidade que deu a vocês esse rótulo e por qual motivo? Esse pessoal mais engajado via vocês como alienados? Só que a música de vocês não era alienada de fato, porque você e outros compositores abordavam temas sociais.
Odair José - Acho isso muito mais complexo do que uma resposta simples. A palavra brega, todo mundo sabe, define uma coisa de mau gosto, e, gosto musical, cada um tem um. Então, já não tem lógica. Eu não gosto de rótulo, seja ele qual for.
Cartaz do show que Odair José faz no domingo (7/7)
Qualquer rótulo é desnecessário, não ajuda em nada, não define o trabalho de ninguém. As pessoas começaram essa polarização. Acho horrível a polarização, seja no futebol, seja na política. Na arte é pior ainda. Minha música pode não agradar você, mas agrada o outro. Então, tem que ser respeitado. As minhas músicas são simples e faço questão que sejam.
Quero tocar uma música que qualquer pessoa entenda, não precisa ser letrada para entender. Tinha uma novela da Globo chamada "Brega & Chique" (1987). Não existia a palavra "brega" nos anos 1970. Antes dessa novela, ninguém falava brega. Aí as pessoas são tão "criativas", que, depois da novela da Globo, inventaram o negócio do brega.
Odair José
Quando: domingo (7/7), às 18h
Onde: Sesc Pinheiros - Teatro Paulo Autran (r. Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo, SP)
Quanto: R$ 50 (inteira)
Ingressos à venda no site do Sesc.