OPINIÃO
Majestosa, Lauryn Hill entrega show intenso e coroa história da Chic Show
Camilo Rocha
Colaboração para Splash, em São Paulo
14/07/2024 13h30
"Não é só um baile black", gritou Criolo durante o terceiro show do festival Chic Show 50 Anos, no sábado (12). O rapper do Grajaú frisou que a festa que deu nome ao evento era um fenômeno que ia muito além da dança e do entretenimento. Por décadas, a Chic Show foi um lugar de afirmação, construção de identidade e formação cultural para milhares de jovens negros.
O tom do festival que lotou o Allianz Parque, na Zona Oeste de São Paulo, foi de celebração da Chic Show e da música preta como fontes de inspiração e transformação pessoal.
Mano Brown, penúltimo show da noite, lembrou que Luizão, fundador da Chic Show, "virou a chave para os afrodescendentes de São Paulo". Atração principal da noite, Lauryn Hill fez referência à música de Stevie Wonder e Aretha Franklin como pilares da sua formação.
A primeira apresentação do evento ficou a cargo da veterana Sandra de Sá, que subiu ao palco antes das 13h30. O público ainda ocupava uma pequena fração da pista e das cadeiras, mas acompanhou atento e empolgado o show, cantando os refrões de músicas consagradas como "Retratos e Canções" (que Sandra chamou de "Melô da Masturbação") e "Olhos Coloridos". Com a voz em forma, Sandra soube prender a plateia em formação.
Rael entrou depois cativando o público com um show ágil e diverso, que juntou diversas pontas de referências musicais negras, indo do seu hino "Hip Hop É Foda" a uma versão de Bob Marley e a uma cover de Chic ("Le Freak") para homenagear o evento. A apoteose do show vem com uma releitura de "Lucro", do BaianaSystem, que faz o público pular alto. E ainda eram 15h30.
O próximo show fica a cargo de Criolo. A entrada é forte, com percussão vigorosa e clima intenso. A seu modo, o rapper exalta a história da Chic Show ao mesclar um show com composições suas, como "Convoque seu Buda" e o clássico "Não Existe Amor em SP", e intervenções do DJ DanDan.
É assim que entram na apresentação hits de baile como "Bam Bam" (Sister Nancy), onde Criolo pede que a plateia faça passinhos, como era o costume nos bailes da Chic Show, e "Loving You" (Minnie Ripperton). O show conclui em clima de roda de samba.
Vale destacar também as performances dos DJs da Chic Show (destaques para DJ Luciano e Grandmaster Ney) entre cada apresentação. Diferentemente de muitos festivais que inserem DJs de modo um tanto aleatório, o público do Allianz recebeu discotecários em sintonia total com o evento, exibindo seleções de sucessos da festa e interagindo com a plateia no microfone.
O americano Jimmy "Bo" Horne, veterano do funk e da disco, entrou com banda afiada e o repertório de muitos clássicos das pistas de dança da Chic Show (ele mesmo se apresentou na festa na década de 1980).
Músicas como "You Get Me Hot" e "Dance Across the Floor", além de pérolas da KC & The Sunshine Band (KC compôs vários hits de Horne) bateram em cheio entre os frequentadores 40+, uma fatia expressiva do público do festival. Apesar da voz de Horne não atingir todas as notas de antes e os arranjos dos hits trazerem mudanças, o show animou um estádio já completamente tomado.
É em clima de noite de gala que Mano Brown desponta no palco do festival. De terno xadrez azul, o rapper dos Racionais ocupa o palco acompanhado de sua banda Boogie Naipe. Ao som de grooves redondos inspirados no funk dos anos 1970, Brown é um maestro no comando de um baile de dezenas de milhares.
O artista mescla raps e exclamações vocais, deixando que o cantor Lino Krizz se encarregue dos vocais ao estilo soul music. Dançarinos ajudam a compor o show. Brown conta para a plateia que está ali realizando um sonho: "Eu tô tocando com uma banda funk no baile que eu curtia".
No telão de LED são projetadas imagens do centro de São Paulo. Brown conclama o público a identificar de qual parte da cidade são: zona sul, leste, norte ou oeste. Faz assim referência à missão inclusiva da Chic Show, sempre reafirmada pelo fundador Luizão, de unir os jovens negros de toda a cidade.
A grande atração da noite, Lauryn Hill, entrou no palco com uma hora de atraso. Majestosa, com tranças azuis e amarelas e uma imensa saia azul celeste, a artista imperou sobre o estádio por quase três horas, fazendo render seu repertório curto (basicamente, um único álbum solo de estúdio, "The Miseducation of Lauryn Hill", de 1998, e dois álbuns de sua ex-banda Fugees).
Trechos do show ficaram a cargo de seus dois filhos artistas, Zion Marley e YG Marley, que apresentaram suas músicas ao estilo reggae, e o ex-Fugee Wyclef Jean, que trouxe faixas de sua carreira solo, incluindo "Hips Don't Lie", dueto gravado com Shakira em 2005.
As participações proporcionaram quebras estratégicas no fluxo do show para Lauryn voltar a cada vez com potência renovada. Seu vigor é impressionante, seja na hora do rap de "Doo Wop (Do That Thing") ou no vocal comovido de "Killing Me Softly" (que ganhou na noite uma base meio samba). A intensidade de sua entrega, onde cabem momentos de emoção em que ela chega a enxugar lágrimas, pega o público de jeito.
Houve problemas com o retorno de palco (Lauryn chegou a reclamar no microfone) e o som chegava algo embolado em seções das cadeiras, mas a grandiosidade da performance suplantou as escorregadas da equipe técnica. O estrondoso final com "Fu-Gee-La" pôs em ebulição um público de muitas gerações.
Um momento especial para coroar a trajetória do baile que foi fundamental para consolidar a música preta do Brasil e de fora como uma tradição paulistana.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL