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Como 'Escrava Isaura' impactou a União Soviética e até mudou a língua russa

Lucélia Santos e Edwin Luisi formaram par romântico em "Escrava Isaura" (1976) Imagem: Globo/Cedoc

Do UOL, em São Paulo

19/07/2024 04h00

Da revelação de quem matou Odete Roitman ao final de Avenida Brasil, sabemos bem como uma novela pode parar um país. Mas esse fenômeno não é exclusivo do Brasil: na União Soviética, "Escrava Isaura" foi uma sensação tão grande que parou o Parlamento e mudou a língua russa.

A relação da Rússia com "Escrava Isaura"

Novela foi a primeira produção brasileira do tipo a ser exibida no país. Apesar de ter sido transmitida originalmente em 1976 na Rede Globo, o folhetim foi transmitido no canal estatal Televisão Central Soviética apenas no final dos anos 1980, no governo de Mikhail Gorbachev.

"Escrava Isaura" foi um sucesso absoluto. Com formato adaptado para a audiência russa — 15 episódios de 60 a 70 minutos cada —, a novela cativou o público, que pediu por uma reexibição já em setembro de 1990, o que foi feito pela emissora estatal.

Interesse pelo último capítulo da novela teria impactado até a política da URSS. Em uma entrevista à BBC em 2003, o ex-diretor da emissora estatal russa Canal 1 Anatoli Sostanov contou que o final de "Escrava Isaura" fez o Parlamento da Federação Russa terminar uma sessão mais cedo, para que todos pudessem assistir.

O sucesso das novelas brasileiras na Rússia

Sucesso ocorreu pela novidade. É o que conta a professora de russo e linguista Alexandra Noreyko, 36. "Na televisão russa, esse nicho não era ocupado por nenhum produto nacional. Então, digamos, antes [de "Escrava Isaura"] não tinha nada, não tinha nenhuma outra possibilidade. Foi a primeira novela que mostraram e depois, pelo sucesso, começaram a trazer mais novelas brasileiras para a Rússia", explica.

"Todo mundo assistia". Russa, Alexandra nasceu em Moscou e conta que as novelas foram um dos seus primeiros contatos com o Brasil, onde mora desde 2014. "Todo mundo assistia — de crianças até adultos", recorda.

Depois de "Escrava Isaura", as novelas viraram parte do cotidiano russo. Títulos como "Mulheres de Areia" (1993), "A Próxima Vítima" (1995), "O Clone" (2001) e "Avenida Brasil" (2012) caíram no gosto do público e se mantiveram em alta, mesmo após a dissolução da União Soviética, em 1991.

Minha mãe não gostava, ela não assistia muito. Agora o meu pai e eu, a gente assistia, já que ele trabalhava e chegava em casa perguntando: 'E aí, o que o fulano lá falou? O que aconteceu?', e eu contava. Era o nosso contato. Um jeito de falar com meu pai era através dessas novelas. Alexandra Noreyko

Novelas eram exibidas com uma técnica chamada dublagem sobreposta. Diferente do formato que estamos acostumados no Brasil, lá, a dublagem é feita por cima do áudio da produção original. Nesse caso, é possível ouvir as duas línguas, com a faixa em português em um volume um pouco mais baixo.

O negócio é que ninguém falava português — na Rússia, eram pouquíssimas pessoas, então a gente não entendia nada, não escutava quase nada. Mas eu lembro que às vezes dava para ouvir algumas palavras, tipo 'obrigada'. Não é que a gente conhecia o que significava 'obrigada', mas vendo aquilo que as pessoas estavam fazendo e depois falavam 'obrigada', meio que dava para entender o que era. Eu me lembro de algumas palavras já daqueles tempos, em português. Foi lá que eu comecei a aprender. Alexandra Noreyko

Apesar do sucesso, os choques culturais eram inevitáveis. A distância geográfica e cultural entre Brasil e Rússia se manifestava na estranheza dos comportamentos, das paisagens e do modo de vida. "A cultura brasileira é muito exótica para os russos. E as novelas mostravam uma vida bem diferente: muitas pessoas ricas e poderosas, muito drama, muitas reviravoltas", comenta a professora.

Eu lembro de uma coisa que todo mundo comentava: que as pessoas usavam sapatos em casa, porque na Rússia todo mundo usa pantufas. É cultural — você nunca vai ver alguém usando sapato, tênis ou qualquer tipo de sapato em casa, porque na Rússia é frio, neve, chuva, tem muita sujeira, então, para nós é cultural usar pantufas em casa. E lá [no Brasil], as pessoas andavam para lá e para cá de sapato. Alexandra Noreyko

Moldando o idioma

O sucesso de "Escrava Isaura" foi tanto que a novela mudou até o idioma russo. Após a exibição da novela, a palavra "fazenda" entrou no vocabulário dos falantes do idioma, que ouviam o termo pela dublagem sobreposta.

Após a novela, "fazenda" virou sinônimo de propriedade rural entre os russófonos. O termo, no entanto, não abarca necessariamente criação de gado ou lavoura, comuns nas fazendas brasileiras. "Até tem uma revista que se chama Fazenda, que ensina a plantar coisas e fala de jardinagem na Rússia", conta Alexandra.

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