Como 'Escrava Isaura' impactou a União Soviética e até mudou a língua russa

Da revelação de quem matou Odete Roitman ao final de Avenida Brasil, sabemos bem como uma novela pode parar um país. Mas esse fenômeno não é exclusivo do Brasil: na União Soviética, "Escrava Isaura" foi uma sensação tão grande que parou o Parlamento e mudou a língua russa.

A relação da Rússia com "Escrava Isaura"

Novela foi a primeira produção brasileira do tipo a ser exibida no país. Apesar de ter sido transmitida originalmente em 1976 na Rede Globo, o folhetim foi transmitido no canal estatal Televisão Central Soviética apenas no final dos anos 1980, no governo de Mikhail Gorbachev.

"Escrava Isaura" foi um sucesso absoluto. Com formato adaptado para a audiência russa — 15 episódios de 60 a 70 minutos cada —, a novela cativou o público, que pediu por uma reexibição já em setembro de 1990, o que foi feito pela emissora estatal.

Interesse pelo último capítulo da novela teria impactado até a política da URSS. Em uma entrevista à BBC em 2003, o ex-diretor da emissora estatal russa Canal 1 Anatoli Sostanov contou que o final de "Escrava Isaura" fez o Parlamento da Federação Russa terminar uma sessão mais cedo, para que todos pudessem assistir.

O sucesso das novelas brasileiras na Rússia

Sucesso ocorreu pela novidade. É o que conta a professora de russo e linguista Alexandra Noreyko, 36. "Na televisão russa, esse nicho não era ocupado por nenhum produto nacional. Então, digamos, antes [de "Escrava Isaura"] não tinha nada, não tinha nenhuma outra possibilidade. Foi a primeira novela que mostraram e depois, pelo sucesso, começaram a trazer mais novelas brasileiras para a Rússia", explica.

"Todo mundo assistia". Russa, Alexandra nasceu em Moscou e conta que as novelas foram um dos seus primeiros contatos com o Brasil, onde mora desde 2014. "Todo mundo assistia — de crianças até adultos", recorda.

Depois de "Escrava Isaura", as novelas viraram parte do cotidiano russo. Títulos como "Mulheres de Areia" (1993), "A Próxima Vítima" (1995), "O Clone" (2001) e "Avenida Brasil" (2012) caíram no gosto do público e se mantiveram em alta, mesmo após a dissolução da União Soviética, em 1991.

Minha mãe não gostava, ela não assistia muito. Agora o meu pai e eu, a gente assistia, já que ele trabalhava e chegava em casa perguntando: 'E aí, o que o fulano lá falou? O que aconteceu?', e eu contava. Era o nosso contato. Um jeito de falar com meu pai era através dessas novelas. Alexandra Noreyko

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Novelas eram exibidas com uma técnica chamada dublagem sobreposta. Diferente do formato que estamos acostumados no Brasil, lá, a dublagem é feita por cima do áudio da produção original. Nesse caso, é possível ouvir as duas línguas, com a faixa em português em um volume um pouco mais baixo.

O negócio é que ninguém falava português — na Rússia, eram pouquíssimas pessoas, então a gente não entendia nada, não escutava quase nada. Mas eu lembro que às vezes dava para ouvir algumas palavras, tipo 'obrigada'. Não é que a gente conhecia o que significava 'obrigada', mas vendo aquilo que as pessoas estavam fazendo e depois falavam 'obrigada', meio que dava para entender o que era. Eu me lembro de algumas palavras já daqueles tempos, em português. Foi lá que eu comecei a aprender. Alexandra Noreyko

Apesar do sucesso, os choques culturais eram inevitáveis. A distância geográfica e cultural entre Brasil e Rússia se manifestava na estranheza dos comportamentos, das paisagens e do modo de vida. "A cultura brasileira é muito exótica para os russos. E as novelas mostravam uma vida bem diferente: muitas pessoas ricas e poderosas, muito drama, muitas reviravoltas", comenta a professora.

Eu lembro de uma coisa que todo mundo comentava: que as pessoas usavam sapatos em casa, porque na Rússia todo mundo usa pantufas. É cultural — você nunca vai ver alguém usando sapato, tênis ou qualquer tipo de sapato em casa, porque na Rússia é frio, neve, chuva, tem muita sujeira, então, para nós é cultural usar pantufas em casa. E lá [no Brasil], as pessoas andavam para lá e para cá de sapato. Alexandra Noreyko

Moldando o idioma

O sucesso de "Escrava Isaura" foi tanto que a novela mudou até o idioma russo. Após a exibição da novela, a palavra "fazenda" entrou no vocabulário dos falantes do idioma, que ouviam o termo pela dublagem sobreposta.

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Após a novela, "fazenda" virou sinônimo de propriedade rural entre os russófonos. O termo, no entanto, não abarca necessariamente criação de gado ou lavoura, comuns nas fazendas brasileiras. "Até tem uma revista que se chama Fazenda, que ensina a plantar coisas e fala de jardinagem na Rússia", conta Alexandra.

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