Atrizes vivem Bernadette: 'Não é dado chance do erro para a travestilidade'
Verónica Valenttino e Wallie Ruy são responsáveis por darem vida a Bernadette Bassenger no musical "Priscilla, a Rainha do Deserto". O espetáculo está em cartaz até 1 de setembro, em São Paulo, e conta com duas atrizes travestis no papel de Bernadette, contrariando o mundo que só oportunizou homens para viver a elegante personagem.
A nossa multiplicação das Bernadettes é uma potência linda do espetáculo. Pela primeira vez, um musical Broadway está sendo feita por duas atrizes travestis. A gente vai falar de afeto, a partir de um lugar muito singular, que é o nosso lugar, a partir do nosso ponto de vista como mulheres travestis que somos. A gente vai falar de representatividade e acolhimento por nossa própria narrativa.
Verónica Valenttino, em entrevista para Splash
Wallie Ruy exalta que o trabalho ao lado de Verónica não é somente representatividade. "Fala sobre presentatividade. A gente está apresentando as nossas existências e estamos multiplicando as nossas existências dentro deste espaço. Ainda hegemonicamente, cis, hétero ou branco, é importante falar sobre todas as estruturas que são ainda hegemônicas."
Importância do papel para duas atrizes travestis
Verónica Valentino é cantora, atriz, compositora e vencedora do prêmio Shell — sendo a primeira atriz trans a ganhar o troféu. Com 20 anos de carreira, ela assume o papel da elegante e glamurosa Bernadette Bassenger e leva o charme de Hollywood para o palco ao lado de Reynaldo Gianecchini e Diego Martins.
Acho que esse é um dos pontos fortes do espetáculo. A gente está, pela primeira vez, retomando esse lugar que é nosso. A Bernadette sempre foi uma personagem travesti, uma mulher trans, mas sempre foi reproduzida por homens cisgêneros. Para além dessa representatividade, que é essa importância de a gente estar presente, de a gente se fazer presente, se fazer existir ali nesse lugar. A gente trabalha nesse espetáculo com proporcionalidade que é um outro grande triunfo.
Verónica Valentinno
Também com 20 anos de estrada, Wallie Ruy é atriz, diretora, roteirista, dubladora, preparadora de elenco, professora de teatro e cinema e é dona do prêmio Kikito, no Festival de Gramado.
Nada mais é do que a apresentação do nosso trabalho e a gente está conseguindo, através dessa grande estrutura, furar as nossas bolhas. Ter duas travestis e uma pessoa trans não-binária ocupando esse espaço é potente. Estamos falando sobre as potencialidades de pessoas transvestigêneres que fogem da ideia de que só a rua é o nosso destino e não é. Nós vamos performar e permear todos os espaços que nós sonhamos e desejamos alcançar.
Wallie Ruy
Arte quebra o preconceito
Atrizes veem a arte como arma para combater o preconceito. Elas trabalham no musical para promover reflexão e amor para sanar o lado "ferido e adoecido da humanidade".
É o que me cura, é o que me mantém viva. Acho que essa forma de vida, de sentir, de expressar, de expurgar. Acho que a gente reorganiza todo o nosso ódio, reorganiza as nossas inquietudes, as nossas raivas diante de tudo aquilo que a nossa transexualidade já sofreu, já passou e os nossos corpos ainda continuam, infelizmente, sofrendo. A gente reorganiza tudo isso e transforma em afeto, arte, música, cinema e teatro. Com o musical, a gente não tem essa garantia de tocar, mas a gente vai causar uma mínima reflexão.
Verónica Vallentino
"Priscila" é um tema que vai falar sobre LGBTQIAPN+, mas não é sobre isso. É sobre humanização, afetos, família, dignidade, sobre sonhos, desejos, dores, ardores e amor. Quando a gente tem no público crianças que são acompanhadas com seus pais, nós temos públicos de crianças e jovens trans. Hoje, as pessoas podem dizem: 'Eu gostaria, eu sou como ela e o meu futuro, o meu imaginário possível, está posta porque eu posso ser como elas'.
Wallie Ruy
"Não é dada a possibilidade do erro"
Wallie Ruy e Verónica Valenttino tiveram liberdade para trazer o texto do musical para a realidade atual durante a criação de Bernadette Bassanger. Elas se divertem dizendo que cada uma leva ao palco "multiplicações de Bernadettes" e classificam o trabalho como um dos mais desafiadores das carreiras.
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Quero receberA gente teve liberdade de mexer em muita coisa no texto porque não fazia mais sentido falar de determinadas coisas. A gente construiu juntas e foi um dos trabalhos mais incríveis de processo de construção. Não estou falando de iguais, a gente fala muito que as nossas Bernadettes são multiplicações de Bernadettes. Foi um dos trabalhos mais desafiadores de construção de personagem, por ter essa partilha, criação conjunta. A gente teve uma parceria f***a.
Verónica Valenttino
Foi um processo lindo de aproximação porque nós não tínhamos essa oportunidade de fazer isso antes. Foi muito lindo porque a gente se fortaleceu dentro desse espaço e a multiplicação dessa personagem nos deu um parâmetro de dizer: 'Não é sobre a gente, é sobre as nossas'.
Wallie Ruy
Wallie ainda destaca que ambas sabem muito bem o peso de levarem ao palco uma personagem sem erros. "Permeamos o espaço das vulnerabilidades. É importante dizer que para a travestilidade não é dada a possibilidade do erro e do equívoco. Se nós não formos muito boas em uma obra, não nos chamam mais: 'Ah, às vezes ela não foi boa ali, vamos chamar ela outra vez', é como descarte. Se alguma coisa não estivesse boa, a gente se fortaleceu para dizer: vamos retrabalhar isso?'."
Serviço:
Musical: Priscilla, a Rainha do Deserto
Data e horário: de quinta a domingo com horários variando entre 16h e 20h (de Brasília). A peça está em cartaz até 1 de setembro.
Ingressos: a partir de R$ 21,18 (https://uhuu.com/)
Local: Teatro Bradesco, em São Paulo
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