Camilo Rocha faz da história da música eletrônica em SP um set hipnótico
Madrugadas em clubes escuros e afterhours em manhãs luminosas eram embalados por um som que compassava alma e coração. Um tum-tum-tum consonante ao sabor doce de uma bala que fazia sorrir, abraçar os amigos e dançar sem hora para acabar. Essa era a balada da vez em São Paulo, na década de 1990.
A marcação persistente e pouco variada dessa música bate-estaca soava como uma alusão ao barulho produzido por essa máquina, que finca no solo os fundamentos de um prédio. No nosso caso, essa música tocada por um só cara (o tal DJ) edificou uma geração regada a ecstasy (a tal bala) e revolucionou comportamentos mundo afora. Isso tudo aconteceu há pouco mais de 40 anos. Na cosmopolita cidade de São Paulo, a música eletrônica foi o leitmotiv de um bando de DJs, drag queens e clubbers que salvaram a noite.
Em linhas gerais, este é o mote do livro "Bate-Estaca - Como DJs, Drag Queens e Clubbers Salvaram a Noite de São Paulo", que o jornalista e DJ Camilo Rocha lança hoje (26) pela Editora Veneta. O livro já se anunciava como um clássico da escassa literatura musical brasileira antes mesmo de ser lançado e agora preenche uma lacuna sobre a música contemporânea.
Não espere por uma lista de top DJs ou por fofocas sobre os clubbers e drag queens famosos. "Bate-Estaca" conta a história de um estilo musical de incontáveis cruzamentos rítmicos através da pesquisa minuciosa e vivência apuradíssima de seu autor, que toca, pesquisa e vive essa música-comportamento até hoje. "Jornalistas e fotógrafos não inventam subculturas, mas as moldam, demarcam seus centros e estabelecem seus limites", diz a escritora canadense Sarah Thornton, citada neste livro.
Em um mix de autobiografia, história da música e relato jornalístico, Camilo Rocha conta com maestria como a música eletrônica surgiu em diferentes pontos de São Paulo, da Zona Leste aos Jardins, mas também recorda como ela nasceu nos Estados Unidos e se criou na Europa.
O vai-e-vem entre culturas diferentes fez a música eletrônica se fragmentar e se remixar em dezenas de subgêneros. A partir da mistura da disco music com o hip hop, no início dos anos 1980 nos Estados Unidos, e do estranhamento com o delicioso grupo paulistano Que Fim Levou o Robin? na São Paulo de 1990, Camilo Rocha puxa a história da música eletrônica.
Ele esmiúça na medida certa temas como o desenvolvimento dos instrumentos musicais eletrônicos e a mudança de hábitos daquela juventude hedonista, menos machista, ligada na nova droga chamada ecstasy e que se montava para se jogar nas pistas de dança, em clubs escuros ou em raves no meio da natureza.
O livro contextualiza a cena paulistana com o que acontecia na gringa, cita DJs e clubs brasileiros e estrangeiros que hoje fazem parte da memória da cultura internacional. E, muito importante, descreve como o ecstasy arrebatou corações e mentes e se tornou o combustível perfeito para as batidas eletrônicas.
É impossível resumir aqui as mais de 200 páginas encharcadas de histórias, mas sugiro ao leitor que vá ouvindo as músicas citadas para compreender e curtir essa jornada que se estende pelas últimas quatro décadas.
Camilo nos conduz, como faz um DJ em seu set, por clubs —Nation, Massivo, Sra. Kavitz, Toco, Hell's, Lov.e, D-Edge— e por muitas raves, mega-raves e festivais —SP Groove, Avonts, MegaAvonts, Klatu, Skol Beats. No desenrolar deste set hipnótico cronológico, o autor vai desvendando o cenário da música eletrônica com fluidez e em um bom mix de experiências próprias, estatísticas, entrevistas pontuais e citações de outros autores importantes que também mergulharam no universo desse som bate-estaca.
É muito interessante ver e entender como tantos gêneros e subgêneros —techno, house, drum'n'bass, big beat, tech-house, jungle, minimal, trance, deephouse, electro...— brotaram da vontade de experimentar novidades, em todos os sentidos, e desembocaram no espetacular showbusiness que alcança milhares de pessoas e dólares.
Como o próprio Camilo escreve: "Já vi gente questionando essa abordagem benevolente, que seria menos 'jornalística'. É uma visão generalizadora sobre a cobertura cultural, que perde sentido em muitos contextos. Há muita diferença entre escrever sobre nomes consagrados da música e reportar sobre um nicho em desenvolvimento." Taí o grande feito deste "Bate-Estaca", contar a história a partir do seu centro, sem deixar de olhá-la como um som ao redor.
Esta é a maior dificuldade de quem escreve sobre cultura, viver algo com intensidade e ainda manter um olhar crítico sobre o que se vive. O exemplo maior é a confissão do autor (e minha também como jornalista e clubber): "Eu tenho certeza que o ecstasy me ajudou a entender boa parte da música eletrônica —no sentido de que, dessa forma, a ouvi em condições ideais. No entanto, sei que a substância não é necessária para apreciar de verdade as sonoridades do house, do techno ou do trance".
Newsletter
SPLASH TV
Nossos colunistas comentam tudo o que acontece na TV. Aberta e fechada, no ar e nos bastidores. Sem moderação e com muita descontração.
Quero receberPara completar a viagem musical pela cena eletrônica paulistana, sugiro fortemente a leitura complementar dos livros das jornalistas Claudia Assef, "Todo DJ Já Sambou", e Érika Palomino, "Babado Forte". E é claro que em breve o Camilo vai atacar de DJ numa festa para comemorar o "Bate-Estaca", mas essa é outra história.
Deixe seu comentário