Fugindo do fetiche do público, Duda Brack lança disco pop, latino e erótico
Se Duda Brack fosse uma estátua, seria uma estátua viva, daquelas que não param quieta. Foi o que o amigo Chico Chico disse para ela e Duda parafraseou para se descrever nessa entrevista sobre seu 3º disco solo, "Proibido Não Gostar", lançado em julho. Uma vez consagrada musa indie, a cantora e compositor busca fugir do veneno de virar produto do fetiche do seu público e avisa: "Não quero ser a próxima diva pop, nem a nova vaca sagrada da MPB, nem uma rockstar, quero ser só a Duda".
E a Duda que se apresenta agora, aos 30 anos, é uma que fala as coisas com suas próprias palavras (esse é o primeiro trabalho só de músicas suas), mergulha de cabeça nos ritmos latinos ("Caco de Vidro", de 2021, já resvalava neles) e aborda putaria e romance em um disco erótico ("Cansei de falar de dor").
Mas, não se engane, a Duda Brack de "É" (2015) ainda está ali, com a visceralidade, a sensualidade e a irreverência que lhe são tão próprias. Camaleônica como suas referências -Ney Matogrosso, Gal e David Bowie—, Duda aconselha que não apostem qual será seu próximo passo, pois quase nada está escrito a ferro no destino dessa virginiana com ascendente em gêmeos. De certa apenas a permanência na suada carreira de música independente. "Se eu parasse, não teria motivo para levantar da cama."
Ela entretanto quer entender como dosar esse ímpeto pela mudança com o timing que o público precisa para assimilar seus passos. "Trazer um pouco do que já cativou o coração das pessoas e adicionar algo novo."
Leia trechos da deliciosa conversa com Splash, na qual Duda Brack conta sobre a mudança da capa do disco para não ser censurada no Instagram, sobre o sexo em tempos de internet, sobre a amizade de tomar café com Ney Matogrosso e a carreira paralela de atriz (sim, você já viu Duda na tela da Globo).
Splash - Como foi o processo do "É" até o "Proibido Não Gostar"?
Duda Brack - Sou o tipo de artista inquieta. Busco com cada trabalho descobrir novos espaços existenciais em mim, espirituais, criativos. Se deu certo, não sou o tipo de macetar em cima. O "É" foi um disco muito legítimo, foi a melhor forma dele me apresentar para o mercado, porque tinham qualidades ali que vão estar presentes sempre, a irreverência, a sensualidade, a visceralidade. Sinto que na época que eu comecei existia em mim um incômodo de estar no mundo. Saindo da adolescência, me descobrindo mulher. Eu precisei achar de uma forma agressiva um lugar pra caber. Hoje, eu estou no mundo a partir de um lugar de muito mais autoconfiança, amor próprio,e o "Proibido" reflete essa mulher. E escancara um lado muito mais passional também, ele abre um espaço para vulnerabilidade para eu poder falar de amor, de desejo, de paixão, sobre uma perspectiva construtiva, e não só destrutiva. Acho que os meus dois primeiros discos eram mais experimentais, mais roqueiros, mais agressivos, porque eu precisava falar de desconstruções internas. Tenho minhas sombras, mas acho que hoje eu já consigo abraçá-las. E eu estava muito cansada de falar de dor. Eu acho que eu queria um negócio que as pessoas pudessem ouvir todos os dias, cozinhando, namorando, dirigindo, e que não tivesse essa relação também tão forte de voyeurismo com a obra, sabe? Nossa, é hermético, eu preciso parar e entender o conceito.
Splash - Você diz que você não quer que seja uma obra hermética, que as pessoas parem e tal, mas o disco tem uma narrativa, ele é um álbum, um conceito, de uma maneira ou de outra...
Duda Brack - Sim, mas, se não fosse, eu já ia perder o interesse também, porque eu gosto de narrativa até por eu ser atriz também, enfim, tem toda a questão, o show, por exemplo, é uma coisa que eu sempre penso com muita curva dramática, e o álbum, até por ele ser o meu primeiro álbum autoral, eu fui entendendo ao longo do processo de composição das canções que ele estava contando uma história, sabe? Quando eu digo que ele é menos hermético é no sentido de que você não precisa contemplar essa narrativa. Ele é mais entregue. Ele de certa forma é mais fácil por ser menos experimental do que os dois primeiros.
Splash - Com certeza. Ele é mesmo. Mais pop, né?
Duda Brack - Eu acho que pop, hoje em dia, é um debate muito estranho da gente ter, porque o mercado está mudando muito, né? E, hoje em dia, o que é o pop no Brasil? É o sertanejo. Se a gente for falar de números, de abrangência, do que é o popular...
Splash - O funk, talvez...
Duda Brack - Mas o funk já vem bem depois. A música mais consumida no Brasil hoje é o sertanejo. Eu vou jogar junto ali o arrocha, o piseiro. E aí, no segundo momento, o rap e o trap, pra depois vir o funk, pra depois vir o pop. Então, todas essas divas do pop que a gente tem hoje não são as artistas mais ouvidas do Brasil. E também são artistas que se constroem com uma indústria aos seus pés. Eu sou uma artista independente, nunca tive gravadora, nunca tive investidor. Não sou herdeira, não sou filha de famoso, nem parente de famoso. Então, não dá nem para querer comparar. Hoje em dia, o pop seria um status para o mercado. Eu acho que a diferença desse trabalho é que ele é menos conceitual e experimental, ele é mais sobre as canções. Porque por mais que tenha uma coisa ali do beat eletrônico, e ele seja dançante, e ele queira, assim, dialogar com coisas que estão em voga no pop, com artistas que estão em voga no pop e que eu adoro, eu acho que ele é um disco de canções. Porque se eu for pegar as mesmas músicas e cantar voz e violão, elas vão ter outra abordagem, que é da minha essência de MPB, é de onde eu venho. Então eu identifico esse álbum muito mais como uma MPB pop, trazendo muito da latinidade, que foi uma pesquisa grande pra mim nesse álbum do que qualquer outra coisa. Mas eu acho que, sobretudo, eu sou essa artista que quer ser uma incógnita para o algoritmo no sentido de gênero. Eu não quero ser a nova diva pop, não quero ser a nova vaca sagrada do MPB e não quero ser a nova rockstar. Eu quero ser a Duda. Como eu olho para o Ney, que é uma das minhas grandes referências, identifico isso.
Splash - Eu queria entender um pouco o processo. É o primeiro disco que é só de composição sua, como é que foi a escolha do repertório, se eram músicas que já vinham vindo ou você parou uma hora e falou, não, agora eu vou fazer o disco.
Duda Brack - Um pouco dos dois. O Caco de Vidro já gravei algumas músicas minhas. Eu já vinha nesse exercício. Veio muito pela convivência com os meus amigos compositores, sabe? E a brincadeira de fazer junto, que me encorajou e me empoderou, porque fui começando a entender que eu podia dizer o que eu queria através das minhas canções, em vez de pegar a música de alguém. Cada música foi vindo de um jeito. As primeiras desse repertório que eu compus foram "Víbora Ligeira", "De Conchinha com a Diaba" e "Mistério Solar". Quando eu fiz essas três, falei "entendi, é pra cá que eu quero ir com o meu álbum novo". E coisas que fui desenvolvendo em cima de coisas que vivi. E as que eu parei pra falar "quero fazer um negócio pro álbum". Por exemplo, "Lais de Guia", que é uma composição que eu fiz com o Luthuly. Eu tava já no foco de fechar o repertório do álbum, muita gente me falando do trabalho dele, eu não conhecia direito. E aí um belo dia a gente se falou na internet, eu falei, vamos encontrar pra compor? Vamos. Primeiro dia que a gente encontrou, a gente já fez essa música que é uma das que eu mais gosto do álbum. Ela tem lugares que eu acho muito sutis e ao mesmo tempo muito profundos. "Romance" também, foi a última música que eu compus. Eu queria que fosse um álbum que a galera riscasse o chão dançando, botasse pra dançar em casa com o crush. E eu sentia que faltava eu afirmar o romance. O álbum começou com o de "Conchinha com a Diaba", que é uma música mais safada, mais piranha, e eu fui vivendo outras coisas, então comecei a compor outras coisas, "Dois por Engano", "Neném", "Pegando Brasa", aí eu fui falando, gente, o disco não é só sobre sexo, sobre tesão e desejo, ele é erótico, ele é sobre paixão, ele é sobre encontros, ele é sobre amor, ele é sobre amor próprio, ele é sobre a sexualidade também no sentido individual, de você saber se satisfazer e se dar o que você merece sem precisar do outro para isso, sabe? Contemplar a sua sexualidade como algo divino e algo que te conecta com o sagrado, independentemente de seduzir o outro ou entregar-se para o outro. Então, quando eu fui entendendo que o álbum era mais profundo do que só uma sacanagem, eu falei, falta afirmar que ele é um romance. E aí eu decidi fazer esse zouk chamado Romance e chamei o Felipe Cordeiro e o Romero Ferro para compor comigo. Então é isso, teve músicas que aconteceram de forma genuína, teve músicas que aconteceram para o álbum.
Splash - E em relação à produção, você produziu o Caco de Vidro.
Duda Brack - Junto com o Gabriel Ventura, que era o meu parceiro guitarrista que tocava comigo na época.
Splash - Sim. E aí agora, nesse disco, você preferiu deixar a produção com outra pessoa. Mas você conseguiu mesmo deixar a produção? Eu fico imaginando uma pessoa que se vê produtora, depois ela consegue desver?
Duda Brack - É, o Ariel Donato vai te falar. No início eu fui um terrorzinho pra ele. Depois eu acho que fui aprendendo também a confiar mais nele. E ele entendendo mais a minha cabeça, as coisas foram ficando mais rápidas. Mas eu tenho essa coisa muito ativa no meu trabalho. E eu gosto que seja assim, porque eu sinto que assim eu consigo me imprimir em todas as esferas. Mas à medida também que eu vou conquistando parceiros que entendem a minha linha de raciocínio, eu consigo começar a delegar mais e confiar mais. No "Caco de Vidro", estava uma nebulosa na minha cabeça, porque eu ainda circulava muito na galera do indie e do rock e eu já queria que esse som fosse mais latino, mais dançante, ou seja, eu já estava querendo chegar onde eu cheguei agora, mas eu ainda não sabia muito o caminho. Então, falei "vou produzir, mas não tenho culhão para assumir sozinha, eu vou chamar o Gabriel". Já no "Proibido", como eu queria enveredar mais para esse lado mais pop, sentia que eu precisava de alguém que dominasse mais essa linguagem, mas ao mesmo tempo que não fosse para lugares tão óbvios. Porque acho que hoje o que acontece muito no mercado --e é disso que eu tento me distanciar--, é que a galera entende uma fórmula que dá certo e vai lá e faz todo mundo a mesma coisa. Você abre uma playlist no Spotify, o som de todo mundo é igual, você não sabe que artista é aquele. Começa a perder um pouco a marca, né? Eu queria alguma coisa que fosse suficientemente dialogável com o que está aí em voga, mas que ao mesmo tempo tivesse a minha marca ali. E acho que isso vem desde o timbre vocal até as escolhas de arranjo. E aí a (produtora) Andrea Franco me falou do Ariel Donato e chamou ele para fazer esse projeto com a gente. Eu já conhecia um pouco do trabalho dele, mas não muito. Ariel circula muito no ambiente do trap, está começando a fazer muita coisa no pop também, mas ele tem uma linguagem, uma bagagem de MPB e de R&B muito grande. Então, isso acho que ajudou muito ele a entender que o meu som tinha que ser específico. Dentro do genérico, ele tinha que ser específico. De certa forma, acho que era esse o foco, sabe? E aí, no início, foi muito um bate-bola. Tipo, a primeira música que a gente produziu juntos foi "Mistério Solar". Falei que eu queria que ela fosse meio "Despechá", da Rosalía, mas tivesse um momento meio salsa, tipo "Don't Go Yet", da Camila Cabello. E ele, na hora, entendeu o que eu queria dizer. Então, eu fui ganhando essa confiança também. E aí teve canções que eu direcionei, tipo a "Vibora Ligeira", eu quero que ela seja meio funk carioca, mas que ela também tenha uma célula de afrobeat latino meio candombe uruguaio aí, mostrei uma referência da Shakira. Eu sempre trabalhei muito bem com essa coisa de referência, mas teve canções que eu não sabia direito o que fazer e que eu deixei na mão dele e que hoje são das que eu mais gosto, tipo "Dois por Engano". Eu só mostrei a música a capela e a única coisa que eu pedi foi uma citação de "Since I've Been Loving You", do Led Zeppelin, porque eu falo na letra da música "Alexa só tocando Led", porque Led é a minha banda preferida e sempre foi a minha trilha sonora de sexo. Então eu queria muito que em algum momento a gente sentisse aquela onda ali do Jimmy Page, das guitarras e tal. Então, a gente conseguiu trazer isso. Mas, de resto, ele foi fazendo. E eu fiquei hipnotizada na frente do computador, só vendo ele trabalhar. Porque eu acho que ele conseguiu capturar a essência de tudo que eu estava sentindo quando eu fiz aquela canção e traduziu em som, sabe? Então, é isso. Eu sou muito direta, incisiva, a maioria das vezes, mas eu também sei abrir espaço para ouvir. E aí ressoa com o que eu estou querendo transmitir, sentir, aí eu dou carta branca. E aí é bom também porque me tira um peso, sabe? De certa forma, eu coproduzi o álbum, as mixagens todas, quem acompanhou fui eu. Recall de mix, aqui eu quero um timbre para a voz, uma textura, não sei o quê. Isso tudo fui eu que fiz. Mas a coisa de dar um pouco de espaço pro outro trazer pra você, pra mim foi muito importante nesse projeto. Ele foi mais fluido do que os meus primeiros álbuns.
Splash - Você falou do Led Zeppelin, você tá com a camiseta do Led Zeppelin nos vídeos da Saga. No Pedalada e no que tem o Ney. O Pedalada ficou restrito para maiores no YouTube, né? E agora teve o lance da censura da capa do disco no Instagram...
Duda Brack - O clipe de pedalada, na verdade, foi o primeiro clipe que lancei, apesar de ser o terceiro na cronologia da saga. Quando eu lancei, eu ainda não tinha muito expertise do YouTube. Tinha que ter colocado que era restrito pra menores de 18 anos. E aí caiu num algoritmo viral. Ele tem 6 milhões de visualizações. E eu nunca impulsionei. E ele recebeu muita denúncia e YouTube meio que escondeu. Se você entra no meu canal e procura, você acha. Mas, se você digita lá "Duda Brack Pedalada", não aparece. A capa já foi outro lance. É uma capa inspirada na fase erótica da Madonna, porque o disco é erótico. Ponto. É sobre isso. Não é para menores de 18 anos, não é para pessoas mais conservadoras. Eu até entendo que parte de um público conservador possa olhar para mim e falar "como ela canta bem" e se emocionar, mas meu discurso como artista é um pouco mais amplo. Então, não é realmente para contemplar um público mais conservador. Acho que eu falo para pessoas que vivem numa realidade parecida com a minha, com uma visão de mundo parecida com a minha. A capa sugere uma masturbação, sugere essa coisa do prazer feminino e da mulher se dando esse prazer, entendendo a sexualidade dela como um poder pessoal, e não como algo só para ser dividido com o outro, a serviço do outro. E aí, o que aconteceu foi que uma semana antes de a gente lançar o disco, eu comecei a abrir conversa com vários veículos na imprensa e vários me sinalizaram "Duda, a capa tá linda, porém, se você publicar isso, o grupo Meta vai derrubar". E eu já vinha tendo problema com o Meta desde o lançamento de "Vibora Ligeira", que foi o primeiro single dessa nova era. Já vinha recebendo várias denúncias e shadowban, porque o conteúdo viola as diretrizes da comunidade. Não sei por que se você abre o Instagram e só tem foto de gente de biquíni na praia, né? Tudo bem, a capa do disco pode até ser um pouco mais ousada por conta de sugerir a masturbação. Mas, até então, a minha comunicação não era nada além do que qualquer diva pop hoje em dia faz. Acho até que muito menos... Essas pessoas têm uma proteção na sua rede social. Por quê? Porque elas têm uma gravadora, porque elas têm dinheiro, porque elas acessam já um público maior. Então, essa coisa de ser dois pesos e duas medidas que eu acho muito chato e muito hipócrita. Quer dizer, quando o capitalismo pode lucrar com uma mulher usando a sua sexualidade, a sua sensualidade para vender, tudo bem. Agora, se ele não lucra e a mulher quer fazer isso por conta e risco... Não pode. Aí viola as diretrizes da comunidade e a família tradicional brasileira vai entrar em polvorosa, sabe? Eu acho isso muito complexo. É um assunto bem delicado. A gente teve acesso a uma pessoa que trabalha da Meta que falou que realmente cairia. Não publiquem porque vai cair. E aí eu tive que trocar a capa. porque eu fiquei com medo de prejudicar a disseminação do meu trabalho na minha rede social que é onde eu mais tenho público, que é o Instagram eu não vou comunicar que o álbum saiu basicamente então eu tive que trocar a capa por isso espero que eu consiga prensar um vinil e botar a capa de verdade no vinil.
Splash - A capa original ela não tinha tarja vermelha, é isso?
Duda Brack - Ela tinha uma tarja. Eu estou deitada, de olho fechado, com a mão passando por baixo da tarja, mais ou menos na região da vagina. Estou me masturbando. Estou só no lençol, tapando o meu peito. Não aparece nada. Não é nada assim... sabe? Mas sugere. E aí a sugestão é o suficiente para a sociedade patriarcal ficar incomodada. E o que eu acho muito doido é que, assim, mais de 50 anos atrás, em 1973, a capa do "Índia", da Gal, foi vendida em saco de lixo nas prateleiras das lojas porque era considerada ousada demais. E a gente ainda está batendo nessa tecla, sabe? Ao mesmo tempo, você tem o X-Videos ao alcance de um dedo. Eu vi a Doja Cat falando sobre isso também. Que as pessoas começaram a reclamar que o show dela era muito pornô. Mas o meu show não é para crianças, quem mandou você levar seu filho no meu show? Acho que também existe uma coisa de querer que, hoje em dia, por conta das redes sociais, que o artista se responsabilize, em questões éticas, em questões de educação, de impor limite para a sociedade, e não é por aí, entendeu? Isso tem que vir em casa, isso tem que vir na escola. Não deixar o seu filho menor de idade entrar em contato com a capa do meu disco não tem que ser uma responsabilidade minha, e sim do pai. Acho que hoje existe uma responsabilidade social quase hipócrita que é colocada totalmente na nossa conta, enquanto não deveria ser só na nossa conta. E essa coisa de realmente a gente ainda não ter alcançado uma autonomia e um direito sobre o próprio corpo. Não à toa o Brasil para para debater uma PL do aborto em 2024. Para mim, isso é uma questão que, com tudo que o feminismo já caminhou, com tudo que várias lutas sociais já percorreram, por que a gente ainda está falando sobre essas coisas? Por que o corpo da mulher ainda incomoda tanto? Por que uma mulher que é gostosa e que sabe que é gostosa e que usa isso incomoda tanto? É um lugar onde a gente ainda não alcançou uma emancipação, me parece, sabe?
Splash - Sabe depois de 73 vieram os anos 80, e os anos 80 pareciam, depois que acabou a ditadura, obviamente, parecia que ia ser um processo de libertação. Eu cresci ouvindo Rita Lee, que é super libertária. E a gente tinha uma ilusão, pelo menos ali nos anos 90, uma ilusão de que tinha mudado, de que as mulheres tinham conquistado a liberdade sexual... Mas eu tenho a impressão que a internet é que mudou isso. Retrocedeu.
Duda Brack - Exato. Botou luz numa galera que estava no armário e que a gente não estava sacando. Eu tenho essa impressão. Às vezes, acho que a minha geração encaretou. Eu fico trocando ideia com o Ney, perguntando como era na época dele. E eu fico vendo, velho, como a gente tá chato, como a gente tá careta, mimimi pra tudo. Só que eu acho que faz parte do processo evolutivo, né? A gente avança algumas casas, aí vem uma força querendo jogar a gente dez casas pra trás. Coisas precisam ser melhor balanceadas também. Acho que houve um hiperespaço de abertura sexual. E aí essa hiper abertura sexual acabou também negligenciando outros lugares de construção de afetividade, por exemplo. Que eu acho que é uma coisa que a minha geração lida muito mal. Essa coisa de estar sempre fazendo um joguinho de desinteresse é muito comum e é chatoA. E eu acho que a internet está fazendo as pessoas transarem menos, e isso é problemático, porque hoje em dia você já ultrapassa muitas coisas, já alimenta muito fetiches só com uma troca de mensagem. Antes o povo tinha que se encontrar, o olho no olho, sentir o cheiro, entender se ia bater, e aí como é que chega na mina, e aí como é que a coisa evolui. Hoje em dia não, você já manda logo um nude e vê se quer ou se não quer. Então, por um lado, eu acho que perdeu-se um pouco esse jogo de sedução que antes tinha. Hoje existe, sim, uma banalização a respeito do sexo. E eu acho que a gente precisa reconquistar um lugar e ao mesmo tempo avançar em outro.
Splash - Duda, quero me mandar um pouco de assunto. Você falou tantas vezes do Ney. Pelo que entendi, o Ney já era uma inspiração para você e imagino que, por conta disso, que você tenha chegado ao "Primavera nos Dentes" (tributo aos Secos e Molhados idealizado por Charles Gavin) e a partir dali teve contato com o Ney, e ele virou um artista de cooperação, vocês começaram a trabalhar juntos e tal. Primeiro eu quero saber como é conviver com o Ney e depois a pergunta, o que você aprendeu de muito legal com o Ney?
Duda Brack - Então, ele sempre foi uma referência para mim. Acho que Ney, Gal e Caetano são os artistas que eu mais ouvi. E aí eu lembro que o primeiro festival de canção em que eu me apresentei, em Sorocaba, ainda antes do meu primeiro disco, o Rafael Altério estava no júri, que é um compositor, e ele falou "a Duda tem um lance meio Ney Matogrosso". Aí depois eu fui gravar o "É" e quem produziu foi o Bruno Giorgi, que é filho do Lenine. Aí Lenine falou "esse som tá meio Secos e Molhados". E aí, o primeiro álbum foi super bem, na crítica, no mercado, e o Charles ouviu e me chamou pro "Primavera nos Dentes". A Deca ouviu, quis lançar em álbum, ali eu conheci o Ney, e acho que muito do que me aproximou dele, o interesse dele por mim, veio muito justamente desse lugar, de eu ter feito do meu jeito. E, ao mesmo tempo, é óbvio que tinha muita coisa ali em comum, porque ele foi uma referência para mim. Mas eu nunca tive a pretensão de imitá-lo ou de alcançá-lo, sabe? Eu queria entender, decodificar o arquétipo Ney Matogrosso e achar um jeito Duda Brack de fazer isso. E ali a gente se aproximou muito, como você falou, ele me convidou para lançar meu segundo álbum, o Caco de Vidro, pelo selo dele. Ele gravou comigo, participou de clipe, participou de vários shows. E é uma pessoa presente, ainda ontem eu estava lá na casa dele, que era aniversário dele, tomando café da tarde. Então, hoje em dia, mais do que qualquer coisa, ele é um grande amigo. A gente fala muito de tudo. E eu acho que a coisa que eu mais aprendi com o Ney é que qualquer, todo e qualquer tabu se dissolve perante a presença de Ney Matogrosso. Porque ele não problematiza as coisas. Ele não vê tabu nas coisas. Ele não vê esse horror todo. Então ele é livre. E aí quando ele é livre, ele acaba libertando o outro, permitindo que o outro seja livre. E aí eu vejo, por exemplo, muita gente na plateia dele que é homofóbica, por exemplo. O negócio ali é tão subversivo que ele está acima do bem e do mal. Ele está acima de se é de direita, se é de esquerda, se é homem, se é mulher, se é preto, se é branco, se é gay, se é hétero. Nada disso importa. As pessoas estão ali conectadas com o mistério e o mistério já tá ali dizendo tudo também, então eu acho que isso é o mais interessante, o quanto ele é livre e ele não precisa levantar bandeira, ele não precisa falar mais alto, ele não precisa de nada, acho que isso é a coisa mais bonita, ele ensina sem precisar abrir a boca pra falar.
Splash - Maravilhoso. Duda, o show, como é que foi a concepção? O disco é eletrônico, o show é com banda, como foi essa transição? Como é que você pensou na estética? Obviamente tem muito do lance vermelho do disco, da Diaba... E queria saber como é que você vai trabalhar o disco daqui para frente também?
Duda Brack - Então, eu sou artista de palco, né? Eu gosto de show. E eu gosto de banda. Eu queria que o disco fosse mais leve, por isso a gente optou por ele ser quase todo só com beat eletrônico. Tem músicas que têm percussões, mas ele é mais suave pra escuta na internet, no streaming. Mas chega no show ele é um porradão. Eu acho que o show está mais rock do que o disco, que é uma característica minha também, apesar de que não é um show de rock. Ele está muito em cima do universo do "Proibido Não Gostar", mas com bateria, com guitarra, com mais pressão. Ao vivo, com a voz e com a performance, entrego mais pressão mesmo. Ele tá com muita curva dramática, então apesar dele ser muito sobre o universo do álbum, tem músicas dos dois primeiros com novos arranjos, eu canto Gal, eu canto Cazuza, Beyoncé, Anitta, sempre tentando fazer costuras, conectando músicas minhas com músicas de artistas que eu gosto, que são referência pra mim. Mas ele tá muito dançante. Eu só fiz dois shows, com plateia sentada. A galera no fim levanta, vai pra beira do palco. O show agora em São Paulo teve uma menina que invadiu o palco, eu comecei a dançar salsa com ela. Então eu acho que ele também tá um show mais interativo. Os meus primeiros discos tinham essa relação mais de voyeur, eu entrego muito a performance, eu gosto disso, eu domino esse lugar do palco, então a galera fica muito magnetizada, mas às vezes não canta, não interage tanto. E e eu queria que nesse show do "Proibido Não Gostar" a plateia ganhasse mais protagonismo, sabe? Eu acho que a hora que ele rolar de pé, aí o ciclo vai se concluir. A galera vai conseguir cantar mais, dançar mais, pular mais. Estar mais ativa e aí o show passa a ser mais uma troca.
Splash - E como é que o seu público fiel está reagindo ao "Proibido Não Gostar", à fase Diaba da Duda?
Duda Brack - Cara, assim, dá de tudo, né? Tem uma galera nova chegando que é tipo "nossa, eu sempre achei você talentosa, mas eu não gostava do seu som e agora eu tô amando". Também tem a galera do "nossa, eu tava com medo desse álbum porque eu achei que você ia pra um lugar muito pop e agora que eu tô ouvindo o disco, eu tô apaixonada, agora eu entendi tudo, fez todo sentido". E também tem a galera que tá estranhando. Só que não é uma galera que chega e diz "poxa, eu achei o disco uma merda, as músicas são ruins e o som não é legal". Não, é tipo "nossa, estou estranhando porque o 'Caco de Vidro', porque o 'É' era isso e aquilo outro". Sim, gente, mas aquilo já foi. Quando eu terminei o "É", já sabia que eu poderia repetir aquela fórmula que deu certo, mas eu ia ficar o resto da vida aprisionada a ser uma musa indie lotando casas de show para no máximo 300 pessoas e me restringindo a poder fazer só esse tipo de som, então eu ia ter que sempre fazer um som meio rock, meio agressivo, meio misterioso, meio hermético, meio conceitual e eu sentia que isso ia matar a minha diversidade. Porque é isso, eu gosto de música e eu não quero estar na caixinha a serviço do fetiche de alguém que precisa de uma musa indie para contemplar ou para se sentir representado. Porque eu sinto que a relação com o público às vezes se dá nesse lugar e que eu acho que isso pode ser o grande veneno na carreira do artista. que é quando você vira o produto do fetiche da sua audiência. De certa forma, as pessoas se identificam com o artista porque, claro, ele está projetando coisas que são das pessoas. Mas é isso. Quem gosta do "É", o "É" já está lá e a pessoa vai poder ouvir para o resto da vida.
Splash - E, Duda, você pretende fazer novela de novo?
Duda Brack - Nossa, o que mais quero! Até mais do que novela, queria fazer cinema. Sou muito apaixonada. Claro que novela é maravilhoso, primeiro porque você entra na casa do povo brasileiro. É muito impressionante. Quando eu fiz "Além da Ilusão", teve um dia que me marcou. Eu estava saindo lá da Globo e voltando para a minha casa e, em dois sinais diferentes, rolou dessa galera que fica vendendo bala bater no vidro do carro e dizer "a menina da novela" e abanar. E tipo assim, eles não queriam me vender bala, eles queriam falar com a menina da novela. Então isso foi muito simbólico e emocionante pra mim, minha música não chega, ainda, assim, no Brasil, chega numa bolha. Então, isso é muito bonito da novela. A TV ainda é, eu acho, o maior veículo de comunicação em massa. Eu cresci vendo novela, então acho que é uma coisa cultural mesmo. Mas eu sou, hoje, muito apaixonada e interessada pelo cinema. A novela tem a coisa de ser muito industrial, de não ter tanto tempo para preparar um personagem, para ensaiar, para compor, pesquisar. Tem que chegar meio pronto, meio entregando. E eu acho que cinema dá esse tempo de processo, que é uma coisa que, como artista virginiana que gosta de escavar e achar um negócio mais profundo, seria uma experiência muito linda para mim. Mas é muito difícil de conciliar as duas coisas. Tipo, não dá.
Splash - Não tem nenhum projeto em vista de cinema?
Duda Brack - Tem algumas coisas ainda fechando para o ano que vem. Não posso falar ainda. Esse ano foi uma participação no filme do Ney, com o Esmir Filho ("Homem com H"). Rolou a cena com o Jesuíta (Barbosa), que foi maravilhoso. Acho ele um deus. Foi, assim, demais. Eu amei. E acho que o filme, não sei se vai ao ar esse ano já ou ano que vem. Mas foi um ano que eu tirei para a música.
Splash - Você vai fazer turnê com o "Proibido"?
Duda Brack - Sim, já tem algumas datas aí no segundo semestre fechadas, outras fechando. E agora eu quero fazer onde eu puder, principalmente fora de Rio e São Paulo, né? Nordeste, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, aquela coisa toda, como diz o Bituca, o artista tem que ir onde o povo está, né? Porque é isso, eu sei que a hora que entrar um projeto de dramaturgia eu vou precisar me dedicar 100% para isso. Então, não tem muita conciliação, sabe?
Splash - Você citou Ney, você citou Gal... Numa outra entrevista você citou David Bowie, você se vê, assim, camaleônica, como esses três, né? É melhor então que o público não faça nenhuma aposta sobre o seu próximo passo, né, Duda?
Duda Brack - Se fizer um bolão pra onde vai Duda Brack agora, é capaz de ninguém acertar. Não sei, nem eu sei, entende?
Splash - Claro.
Duda Brack - Eu já teria músicas pra um próximo álbum. Mas eu quero entender se são essas mesmo que eu quero gravar. Eu quero entender o quanto do "Proibido" ainda vai ficar ali, o quanto que eu também vou querer. Se dar só para outras possibilidades. Enfim, é isso. Eu mesma ainda estou entendendo para onde vai o Duda Brack 4. Apesar de eu já ter canções ali, uma ideia do nome, inclusive, do álbum, mais ou menos o assunto, eu ainda preciso entender melhor para onde eu quero ir com a sonoridade e tudo mais. Eu tenho um amigo, Chico Chico, que também é artista, compositor, cantor. Uma vez ele falou uma coisa pra mim que eu amei, que é, Duda, se você fosse uma estátua, ela seria uma estátua viva o tempo inteiro em movimento. Eu preciso dosar melhor, porque às vezes o timing das pessoas assimilarem a sua obra é mais devagar do que é o meu tempo interno como artista. Então eu acho que eu também preciso fazer esse exercício da permanência. Mas, sim, acho que minha carreira vai ser muito feita de surpresas. Mas é sempre legal entender e dosar, né? Você trazer um pouco do que as pessoas já esperam e do que já cativou o coração delas e algo novo pra adicionar nisso tudo.
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