Esperanza Spalding diz ter feito 'jardinagem' em álbum gravado com Milton
Luiz Henrique Romagnoli
Colaboração para Splash, no Rio
13/08/2024 05h30
A paixão de Esperanza Spalding pela música de Milton Nascimento vem de longe. A cantora, baixista, compositora e arranjadora estadunidense foi fisgada pelas melodias, harmonias e voz de Milton desde a primeira vez em que escutou uma música do cantor mineiro, há mais de 20 anos. Tanto que "Ponta de areia", clássico de Milton Nascimento em parceria com o letrista Fernando Brant, foi escolhida para abrir "Esperanza", segundo álbum da cantora, lançado em 2008.
Dezesseis anos depois dessa declaração de amor, ela realiza o sonho de gravar um disco junto com esse ícone da MPB. Dia 9 de agosto, eles lançam "Milton + esperanza", álbum que reúne 16 faixas, entre canções inéditas e regravações de Beatles, Michael Jackson e clássicos do próprio Bituca.
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"Milton + esperanza" tem produção da própria Esperanza Spalding e conta com um time de convidados de peso: Paul Simon, Dianne Reeves, Maria Gadú, Tim Bernardes, Lula Galvão, Lianne Las Havas, Guinga, Orquestra Ouro Preto e Carolina Shorter. Em entrevista a Splash, a artista estadunidense conta que trabalhou como uma jardineira para dar conta da tarefa.
"O álbum nasceu assim, passo a passo. Depois que eu fiz os arranjos básicos de tudo, eu fui fazendo uma colagem. Ou uma jardinagem. Nesse tipo de trabalho, você cria paisagens e vai juntando os elementos enquanto as canções ganham um formato", compara a artista, falando da casa de Milton Nascimento, no bairro do Joá, no Rio de Janeiro.
Nesse processo, cada flor cultivada teve uma história particular. A ideia de convidar Paul Simon para cantar "Um vento passou", por exemplo, veio da própria canção:
"Paul Simon participa porque Milton havia escrito uma canção (e eu acho que foi a canção mais recente que Milton escreveu) durante a pandemia, pensando no quanto sentia falta de Paul Simon", diz Esperanza.
Eu queria que esse disco tivesse algo novo escrito pelo Milton. E ele, então, me mandou a demo. Eu acrescentei alguns acordes, alguns elementos em torno e, depois, Bituca pediu a Marcio Borges que fizesse a letra. Uma vez que nós fizemos e escutamos a música, eu disse: 'Nós temos que ter Paul Simon cantando'. Ele aceitou e gravou em seu próprio estúdio no Texas. Paul queria muito cantar em português. Então, ele estudou e conseguiu. Esperanza Spalding
A versão de "Earth song", hit de Michael Jackson lançado em 1995, no disco "HIStory: Past, Present and Future, Book I", conta com a voz da cantora estadunidense de jazz Dianne Reeves. Ela e Milton interagem num dueto que revela novas camadas da canção do ídolo pop, morto em 2009.
"Milton queria fazer 'Earth song' e eu não sabia como diabos concretizar isso. Mas eu acabei fazendo o arranjo e nós gravamos. Mas senti que faltava alguma coisa, ainda não estava 100%. Vi que precisávamos de algo além da voz do Milton. E eu comecei a ouvir a voz da Dianne Reeves enquanto escutava nosso arranjo. Ela é perfeita. Ela gravou os vocais em Denver. E o filho do Milton sugeriu que a gente incluísse a Orquestra de Ouro Preto na gravação."
Esse encontro de diferentes vertentes da música, do popular ao erudito, é justamente uma das marcas da carreira de Esperanza Spalding, uma artista que parece não enxergar barreiras estéticas ou nutrir preconceitos contra estilos ou correntes musicais.
A mistura de elementos é também uma característica presente na música de Milton Nascimento, que, ao longo das décadas, se notabilizou por passear por várias vertentes da MPB e do jazz. Essa conexão entre os dois é a base para uma grande amizade e uma parceria que inclui um show na edição de 2011 do Rock in Rio.
"Eu não pensava em gravar um álbum com ele. Isso parecia impossível. Eu apenas amava sua música, amava muito ele. Amava suas melodias, sua mágica, sua audácia, sua estranheza, tudo. E tive a oportunidade de cantar com ele no Rock in Rio em 2011. Então, em 2022, na turnê de despedida de Milton, quando nos apresentamos juntos em Nova York e Boston, o filho de Milton sugeriu que eu produzisse o novo disco dele. E o que responder para uma proposta dessas? Você não responde, você só parte para o trabalho."
E como foi administrar a participação de artistas espalhados por diferentes países? "Exceto por Carolina, Dianne Reeves e Paul Simon, todos gravaram no Rio de Janeiro. Na casa do Milton Nascimento, no estúdio Companhia dos Técnicos ou em Belo Horizonte, com a Orquestra Ouro Preto."
O álbum que acendeu a paixão de Esperanza por Milton foi "Native dancer", que o cantor mineiro lançou em 1975 em parceria com o saxofonista e compositor de jazz Wayne Shorter. Em 2010, os laços entre Esperanza e Milton se estreitaram: ela convidou o cantor mineiro para participar do disco "Chamber music Society". No álbum, Milton canta em "Apple blossom", faixa composta pela própria Esperanza.
"Muito tempo atrás, eu tive um empresário brasileiro, quer dizer, ele era espanhol, mas tinha morado no Brasil. E quando eu estava gravando o disco 'Chamber music Society', esse empresário me perguntou: 'Tem algum convidado que você gostaria de ter nesse álbum? Pense grande'. E eu pensei: 'Sonhar grande? Que tal Milton Nascimento?'. Milton já tinha ouvido falar de mim, já tinha escutado minha interpretação de 'Ponta de areia', e ele concordou em cantar em 'Apple blossom'. A partir daí, começamos a criar uma conexão e uma familiaridade mútua."
Outra parça brasileira de Esperanza é a cantora paulistana Maria Gadú, que participa, junto com Lianne La Havas, Tim Bernardes e Lula Galvão, da regravação de "Saudades dos aviões da Pan Air", um dos muitos clássicos de Milton Nascimento, lançado em 1975, no LP "Minas".
"Maria Gadú, eu associo a Milton porque quase sempre que eu encontro Milton Maria Gadú está por perto. Eles são muito próximos e eu sou muito próxima a ela. Somos ótimos amigos. E quando estávamos gravando 'Saudades dos aviões da Pan Air', ela estava no Rio. E essa canção é como se Milton tivesse todas essas crianças em torno dele" diz, referindo-se aos artistas mais jovens que participam da gravação, Lianne La Havas, Tim Bernardes e Lula Galvão.
"Milton + esperanza" conta ainda com uma regravação de "A day in the life", faixa de "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" (1967), considerado por muitos o melhor LP dos Beatles, ou até mesmo o melhor da história do rock. E há também novas versões para canções de Milton Nascimento.
Além de "Saudades dos aviões da Pan Air", o álbum conta com as regravações de "Cais" (do LP "Clube da esquina", de 1972), "Outubro" (de "Courage", 1969) e "Morro velho" (também de "Courage"). Entre as inéditas, "Wings for the the thought bird" (a única música que Esperanza compôs especialmente para o disco), "Late september" e "Get it by now". As duas últimas a cantora e baixista revela que foram escritas ao longo dos anos, tendo Milton como inspiração.
Além de estar disponível nas plataformas de streaming e download, "Milton + esperanza" também será lançado nos formatos CD e vinil. E Esperanza tem especial carinho por este último formato.
Espero que as pessoas comprem o vinil. Primeiro, porque o álbum soa melhor nesse formato de LP. Ponto. Segundo, porque eu acredito que haja uma beleza no objeto disco de vinil, nesse formato físico de uma coisa palpável. Esperanza Spalding
Milton Nascimento despediu-se oficialmente dos palcos numa turnê que correu o mundo em 2022. Recentemente, a dupla, acompanhada por músicos que gravaram o álbum, participaram do "Tiny Desk", programa da Rádio Pública Nacional dos Estados Unidos (NPR). O registro foi feito na casa de Milton Nascimento, e o show intimista será disponibilizado no canal da NPR no Youtube. Mas será que os fãs podem ter alguma esperança de ver os dois ao vivo, num show de lançamento de "Milton + esperanza"? Vai que...
Não temos planos de fazer um show do disco, mas acho que talvez Milton tenha vontade, o que seria muito legal. Ele não faria uma turnê. Não temos planos de tocar o LP ao vivo, mas numa entrevista que demos outro dia, perguntaram se faríamos algum show especial de lançamento e Milton disse 'sim!'. Então, espero que role. Esperanza Spalding
Esperanza Spalding é considerada um dos nomes mais importantes do jazz contemporâneo. E ela vê Milton Nascimento da mesma forma, a partir das conexões e relações que existem entre a música afro-brasileira e a afro-estadunidense.
Milton é um músico de jazz. Ele é um músico de jazz. Eu o identifico assim. Milton e jazz têm o mesmo DNA. Musicalmente, culturalmente, politicamente, socialmente... Brasil e EUA têm uma história política parecida. E a mesma história de opressão, resiliência e cultura racial. A mesma tentativa de, artisticamente, reafirmar sua liberdade, dignidade. Eu sinto isso na música afro-brasileira e sinto isso no jazz. E sinto isso vivo na música do Milton, em muitas dimensões. Esperanza Spalding
As faixas de "Milton + esperanza"
- the music was there
- Cais
- Late September
- Outubro
- A Day in the Life
- Interlude for Saci
- Saci (participação: Guinga)
- Wings for the Thought Bird participação: Elena Pinderhughes and Orquestra Ouro Preto)
- The Way You Are
- Earth Song (f participação: Dianne Reeves)
- Morro Velho (participação: Orquestra Ouro Preto)
- Saudade Dos Aviões Da Panair (Conversando No Bar) (participação: Lianne La Havas, Maria Gadú, Tim Bernardes, Lula Galvão)
- Um Vento Passou (para Paul Simon) (participação: Paul Simon)
- Get It By Now
- outra planeta
- When You Dream (participação: Carolina Shorter)