'Um dos maiores inimigos do bolsonarismo': trecho do livro de Felipe Neto
Marcelo Crivella logo percebeu que o segredo do sucesso era reconstruir sua imagem e se vincular à família Bolsonaro. Para isso, precisava convencer os eleitores com discursos moralistas da extrema direita, críticas aos direitos humanos, denúncias contra a imprensa e ataques a minorias, como fizeram Witzel e muitos outros. E ele viu na Bienal do Livro a oportunidade de ouro para isso.
O alvo seria a comunidade LGBTQIAPN+, e o objeto de ataque, uma história em quadrinhos de 2012, Os vingadores: A cruzada das crianças, lançada pela Editorial Salvat em parceria com a Panini Comics. No enredo, dois protagonistas homens vivem um romance, e em determinado ponto da narrativa se beijam. Pronto, Crivella tinha um kit gay para chamar de seu.
Esse é um trecho do capítulo exclusivo do novo livro de Felipe Neto a que Splash teve acesso (leia na íntegra abaixo).
Em "Como Enfrentar o Ódio", o youtuber conta como passou a ter consciência política, analisa o papel do ódio em sua vida —tanto quando ajudou a impulsionar sua carreira na internet quanto quando se viu no lugar de alvo.
No capítulo que você lê aqui, Felipe relata os bastidores da sua reação à tentativa de censura a um beijo gay em uma HQ na Bienal do Livro do Rio de 2019, que ele classifica como o seu nascimento como "um dos maiores inimigos do bolsonarismo".
O livro, seu primeiro pela Companhia das Letras, será lançado dia 7 de setembro na Bienal do Livro de São Paulo, mas já está em pré-venda, que garante um encontro online com o influenciador.
A Bienal do Livro e como me tornei um dos maiores inimigos do bolsonarismo
Felipe Neto
Até setembro de 2019, eu não era uma prioridade para o Gabinete do Ódio e estava longe de conhecer a pior face deles. Aquele mês, porém, foi decisivo para o rumo da minha vida.
O dia 6 começou como qualquer outro. Na época, eu trabalhava na Barra da Tijuca, numa casa que sediava as operações da Netolab, minha empresa. Cheguei ao escritório por volta das onze e meia e fui para a minha sala, no último andar. Como sempre, abri meu e-mail e os principais portais de notícia. E só então soube o que havia acontecido na noite anterior.
Eram os últimos dias da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que leva milhares de cariocas ao Riocentro para conhecer escritores, comprar livros e assistir a debates sobre literatura e educação. Tudo estava na mais absoluta paz, até que o prefeito decidiu fazer o impensável.
Eleito em 2016, Marcelo Crivella (PRB) --bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho de Edir Macedo-- já havia sido senador, deputado estadual e até ministro da Pesca. Seu primeiro ano de mandato fora catastrófico. Segundo O Globo, apenas nove das 54 promessas de campanha foram cumpridas. Crivella prometeu ampliar os investimentos em saúde, por exemplo, mas fez o oposto: cortou verbas do setor. O sistema de saúde entrou em colapso. Faltavam médicos, medicamentos e leitos.
Um ano e meio antes da Bienal do Livro, 58% da população considerava sua gestão "ruim ou péssima". Com a proximidade das eleições de 2020, ou Crivella alavancava sua popularidade ou perderia para seu rival, Eduardo Paes, que só não disputara a eleição anterior porque seus dois mandatos consecutivos como prefeito o impediam.
A eleição de Jair Bolsonaro transformou o Brasil num gigantesco caldeirão de ódio. Muitas pessoas se sentiram à vontade para expor livremente e sem nenhum pudor seus preconceitos, e algumas delas receberam mais destaque do que deveriam. Foi assim que diversos políticos se elegeram, pegando carona na imagem ou no apoio da família Bolsonaro. E foi isso que aconteceu com o ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que decolou nas urnas ao atrelar sua imagem à de Flávio Bolsonaro e venceu Eduardo Paes no segundo turno, após aparecer ao lado de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira no evento em que quebraram ao meio uma placa com o nome de Marielle Franco. O Congresso Nacional também ficou infestado de deputados e senadores de extrema direita, todos encampando ideias neofascistas.
Marcelo Crivella logo percebeu que o segredo do sucesso era reconstruir sua imagem e se vincular à família Bolsonaro. Para isso, precisava convencer os eleitores com discursos moralistas da extrema direita, críticas aos direitos humanos, denúncias contra a imprensa e ataques a minorias, como fizeram Witzel e muitos outros. E ele viu na Bienal do Livro a oportunidade de ouro para isso.
O alvo seria a comunidade LGBTQIAPN+, e o objeto de ataque, uma história em quadrinhos de 2012, Os vingadores: A cruzada das crianças, lançada pela Editorial Salvat em parceria com a Panini Comics. No enredo, dois protagonistas homens vivem um romance, e em determinado ponto da narrativa se beijam. Pronto, Crivella tinha um kit gay para chamar de seu.
Na noite de 5 de setembro, ele publicou um vídeo nas redes sociais comunicando uma ordem para que a Bienal do Livro recolhesse a obra, sob a justificativa de ela apresentar "conteúdo sexual para menores". E complementava: "Livros assim precisam estar embalados em plástico preto, lacrado, e, do lado de fora, avisando o conteúdo".
Era um escândalo de censura e homofobia explícita. Não havia nenhuma imagem sexual na HQ, nada que pudesse ser enquadrado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No Brasil, a Justiça não considera beijo "conteúdo sexual". Se assim fosse, obra em que o super-herói dá um beijo em sua amada também teria que ser lacrada em sacos pretos. A censura ao livro, portanto, era apenas um golpe de marketing para Crivella se aproximar da ala conservadora. Não tinha nada a ver com proteger as crianças.
A Bienal já havia publicado uma nota, deixando claro que o material não era impróprio e que o evento era plural --"todos são bem-vindos e estão representados". O prefeito não tolerou aquela resposta, e a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) notificou a Bienal, avisando que, em caso de descumprimento, o material seria apreendido e o evento poderia ter a licença cassada.
Se isso realmente acontecesse, seria aberto um precedente que poderia resultar em apreensões de obras literárias em massa pelo país inteiro. Decidi me envolver. Mas como? A prefeitura tinha a polícia, a força, a Justiça, o dinheiro, a estrutura, o controle de narrativa. Eu tinha? bem? seguidores? Seria preciso muita estratégia para conseguir algum resultado.
Alessandra Ruiz, editora responsável por meu primeiro livro e que acabou se tornando minha amiga e agente literária, estava participando da Bienal. Tão preocupada quanto eu, ela me mandou uma mensagem no WhatsApp: "FÊ, VOCÊ TÁ VENDO ISSO?".
Sim. E precisávamos fazer alguma coisa. Ela me disse que todos os editores e autores estavam revoltados, mas ninguém sabia o que fazer.
Foi quando os policiais chegaram.
Seguindo a orientação do prefeito, eles procuraram a HQ de estande em estande, mas sem sucesso: todos os exemplares já teriam sido vendidos. Quando os policiais foram embora, o clima no Riocentro era de tensão. Não era verdade, ainda havia muitos exemplares, que os vendedores tinham escondido com medo dos fiscais. Havia grandes chances de aquilo não acabar por ali.
Apenas denunciar aquele escândalo nas minhas redes não seria suficiente, pois a internet já estava inflamada, aquele era o único assunto do dia. Não bastava inflamar ainda mais, era preciso agir. Em busca de apoio da extrema direita para sua eleição, Crivella não iria se resignar tão facilmente. Era isso que o bolsonarismo me ensinara.
Enquanto trocava mensagens com minha amiga, tentei esfriar a cabeça. Como num jogo de xadrez, era preciso tentar antecipar as jogadas do adversário. O que um bolsonarista faria?
Bom, se Crivella considerou que a imagem de um beijo entre dois homens não poderia ser veiculada, então quaisquer livros com protagonistas LGBTQIAPN+ também entrariam na mira dele. Aquele era o único caminho que havia sobrado. Já que os livros "esgotaram", o prefeito poderia tentar enquadrar todos os títulos de temática LGBTQIAPN+ e enviar a Seop para recolher.
Se fizesse isso, Crivella com certeza seria punido pela Justiça, mas sairia como herói da extrema direita. Abriria caminho para ser reeleito no ano seguinte, virando, quem sabe, um "caçador de conteúdo sexual para crianças". Era um plano de marketing perfeito para o Brasil da época. Além disso, um político com apenas 10% de aprovação popular não tem muito a perder.
"Alê, acho que o Crivella vai tentar censurar todos os livros LGBTQIAPN+ da Bienal", mandei para a Alessandra.
"Fê, isso não pode acontecer de jeito nenhum", ela respondeu.
Comecei a analisar como poderíamos criar um escudo para proteger a Bienal. Imaginei um cordão humano ao redor do prédio impedindo a entrada da polícia, ou quem sabe uma transmissão ao vivo direto do local para inflamar a população. Mas as ideias, além de porem pessoas em risco, só funcionariam se de fato Crivella decidisse ir para o tudo ou nada.
Foi então que me ocorreu uma ideia diferente.
Se o prefeito queria impedir o acesso das pessoas a livros LGBTQIAPN+, eu iria comprar todos eles e distribuir de graça, anunciando na imprensa e nas redes sociais que qualquer pessoa poderia ir até a Bienal e solicitar seu livro sem custo. Mesmo se Crivella decidisse não fazer mais nada, a ação funcionaria, incentivando a leitura LGBTQIAPN+ e doando livros, o que nunca é uma má ideia.
Só tinha um problema: já estávamos no meio da tarde e os livros precisariam ser distribuídos no dia seguinte, perto do horário de abertura dos portões.
Por volta das três, liguei para o meu amigo Everson Chaves, diretor comercial da Record, uma das maiores editoras do país. Expus minha ideia e o convidei a trabalhar comigo e com a Alessandra para impedir a censura.
"Quero comprar todos os livros de temática LGBTQIAPN+ da sua editora. Veja se você consegue das outras editoras também. Negocia um preço reduzi- do, já que estou comprando em grande quantidade", pedi.
"Beleza, isso é fácil, eu resolvo. O que mais?"
"Aí agora é o seguinte. Embala cada livro individualmente com plástico preto. Depois disso, imprime o máximo possível de adesivos para colar na parte da frente dos livros."
Everson ficou em silêncio, imagino que me achando um maluco. Mas ele apenas perguntou: "O que vai ter no adesivo?".
Pensei um pouco e respondi. Desliguei o telefone e fechei os olhos, torcendo para que desse tempo.
Everson e Alessandra se conheceram no local.
Primeiro, negociaram com as editoras preços mais acessíveis para os livros, informando que compraríamos todos. Companhia das Letras, Ediouro, Faro, Globo, HarperCollins, Intrínseca, Record, Rocco, Sextante e Todavia, todas mergulharam de cabeça na ideia, separando os livros que tratavam de temas LGBTQIAPN+ para a nossa ação.
Eu pressionava o Everson, pois precisava gravar o vídeo anunciando a ação e convocando todo mundo. Queria mostrar quais livros seriam distribuídos, para ninguém alegar que eu estava "distribuindo livros de sexo" ou algo do tipo.
Às cinco, Everson me enviou a arte do adesivo pronta, que eu aprovei.
A correria era insana, tudo precisava estar pronto para a distribuição ao meio-dia do dia seguinte. O meu WhatsApp não parava.
[17:09] Everson: "Agora tô tentando achar esse saco preto e resolver o manuseio".
[17:09] Felipe: "Ok".
[17:09] Felipe: "Confio em vc".
[17:09] Felipe: "Tem q ter".
Poucas vezes na vida eu fiquei mais tenso do que naquelas 24 horas.
Ligava para meus contatos no meio jurídico e na prefeitura, tentando saber se Crivella estava agindo. Por volta das seis, recebi a seguinte mensagem, de uma fonte que não posso revelar: "Felipe, prefeito está obcecado, boatos q vai amanhã com efetivo da PM pra fazer palanque e recolher livros".
Respirei fundo, tentando me acalmar.
Se o prefeito agisse pela manhã, ou perto da hora do almoço, não daria tempo de distribuir os livros. A única saída seria lotar o evento, mas lotar de verdade, e inibir as forças policiais.
Meu vídeo precisava ir ao ar urgentemente e deveria tocar as pessoas, de modo a fazê-las sair de casa. Enquanto Alessandra e Everson corriam e conseguiam apoio dos organizadores da Bienal para realizarmos a distribuição dos livros na praça central e resolviam como imprimir milhares de adesivos, eu fui para a frente da câmera gravar.
"Hoje, sexta-feira, dia 6 de setembro de 2019, foi um dia triste para a democracia brasileira.
O dia em que o prefeito da cidade do Rio de Janeiro decidiu, por um devaneio, por uma loucura dele, que um beijo entre dois homens deve ser enquadrado como pornografia, como conteúdo sexual, e que por isso, qualquer obra que mostre afeto entre gays deve ser embalada com plástico preto e avisada como conteúdo impróprio.
Eu espero que mesmo que você seja uma pessoa que não tem simpatia pela causa LGBT, que você enxergue o nível mais profundo de censura e repressão que isso representa.
Amor não é pornografia. Amor não deve ser censurado. Afeto não pode ser proibido para menores.
Tudo isso aconteceu porque o Crivella viu esse beijo [aparece o desenho do livro] em uma única página de uma HQ dos Vingadores. Nunca incomodou o prefeito que as HQs tenham, historicamente, cenas de violência, sangue, guerra, tiro, porrada, bomba, isso não importa. Só o que importa, só o que incomoda, é o amor entre duas pessoas do mesmo sexo.
Enquadrar o afeto homossexual dentro da lei de pornografia e conteúdo impróprio para menores é censura em último nível, é baixo, é covarde. E nós, como sociedade, não podemos aceitar.
A partir do momento em que a gente abrir concessão para aceitar que o prefeito Crivella faça isso na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, nós simplesmente abriremos uma porta para a repressão, uma porta que pode degringolar para um controle absoluto e autoritário do entretenimento que a gente consome.
Baseado nisso, galera, a gente precisa de união. A gente precisa de união, para que esses políticos que hoje estão no poder e que acham que vão "consertar" o que não precisa ser consertado, através da repressão e da censura, que eles entendam de uma vez por todas que nós temos o controle do país, que a população que determina o futuro da nação, que nós unidos somos muito mais fortes que qualquer repressão que eles possam tentar implementar.
Então, para poder passar um recado de união e para poder mostrar para essas pessoas que eles não irão censurar conteúdos LGBT, eu tomei uma atitude hoje. Eu comprei todo o estoque de todos os principais livros com temática LGBT da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. E todos eles serão entregues, de graça, amanhã, para quem estiver na Bienal e quiser um livro de graça.
[?]
Esse é um recado para o Crivella. Crivella, eu estou falando com você agora. Eu fiz isso para te mostrar que não tem como você ganhar isso. É impossível. Não tem como vocês reprimirem a população em pleno 2019. Isso foi só um exemplo dos milhões de coisas que nós, como população, podemos fazer para lutar contra o autoritarismo, para lutar contra essa vontade ditatorial de colocar as regras que vocês têm para si, para todos os outros. Nós não vamos viver sob essas regras. Vocês não vão vencer essa batalha."
Com o vídeo pronto, mas ainda não publicado, segui recebendo as atualizações da Alessandra e do Everson. Nossa maior preocupação era o prefeito estar na porta do evento, com todo o efetivo policial, na hora da abertura, para recolher tudo antes mesmo que tivéssemos a chance de distribuir.
Foi então que, no começo da noite, a Justiça analisou um mandado de segurança impetrado pelos organizadores do festival. O desembargador Heleno Ribeiro Nunes expediu uma liminar que proibiu a Prefeitura do Rio de restringir a venda de obras na Bienal no Livro, incluindo "notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo".
Na mesma hora, Alessandra me perguntou se deveríamos continuar, agora que a Justiça havia proibido a censura.
"Alê, acho que nossa ação já ficou maior do que o Crivella, vamos em frente. Além disso, vai que esse lunático derruba a decisão liminar do desembargador?"
"Concordo, vamos pra cima", ela respondeu.
Às 19h41, meu vídeo foi lançado, causando gigantesca comoção na internet e na imprensa. As redes sociais explodiram. O vídeo foi compartilhado muito mais do que eu havia imaginado. Em pouco tempo, milhões de pessoas foram impactadas pela notícia de que haveria "livro grátis" na Bienal. Era um ato de resistência não só à censura, mas ao bolsonarismo, uma afronta direta e pública ao período de ódio que assolava o Brasil.
Exatamente às oito da noite, Everson me informou que, no total, eu iria comprar 14 mil livros. Era tudo que as editoras conseguiriam levar até a manhã seguinte. O valor total, atualizado para 2024, ficou em torno de 300 mil reais. Falei para seguir em frente.
Às 20h20, recebi um vídeo da gráfica mostrando a impressão de 14 mil etiquetas adesivas, trabalho que entraria pela madrugada. Em seguida, Everson e Alessandra foram atrás de fornecedores de sacos de lixo pretos.
Tudo foi posicionado para aguardar o início dos trabalhos, às nove horas.
Alessandra e Everson conseguiram quinze voluntários para embalar os livros, e a própria Bienal nos cedeu espaço --uma área enorme, bem na praça central--, segurança e material para a ação. Ao meio-dia, a entrega começaria oficialmente. A internet estava um caos, com gente defendendo a ação e gente
atacando, dizendo que eu iria distribuir pornografia para crianças.
Fui dormir com a consciência tranquila de que estávamos dando o nosso melhor.
No dia seguinte, às dez horas, os portões da Bienal foram abertos e as filas já começaram a se formar, mesmo com o aviso de que a distribuição teria início ao meio-dia. O frenesi era grande, havia muito mais gente do que o esperado. Em apenas uma hora, mais de 3 mil pessoas já haviam entrado, superando de longe os dias anteriores.
Tudo que eu queria era estar lá, trabalhando com os voluntários, falando com os leitores, mas havíamos estabelecido que minha presença só causaria tumulto e poderia desviar o foco. Precisávamos pensar na organização e na velocidade da distribuição.
A censura havia indignado todo mundo, o que inspirou outras pessoas a também ajudar no empacotamento, incluindo autores, leitores, funcionários
de editoras, funcionários da Bienal, gente que ninguém conhecia etc.
Ao meio-dia, Alessandra deu a ordem de começar a distribuição. A fila era inacreditável, dava voltas e mais voltas pelo Riocentro. A imprensa também compareceu em peso, todo mundo queria ver e participar daquele momento histórico.
Foi então que as pessoas viram o que dizia o adesivo colado no saco de plástico opaco preto que embalava cada exemplar:
ESTE LIVRO É IMPRÓPRIO
para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas.
Felipe Neto agradece a sua luta pelo amor, pela inclusão e pela diversidade.
O que mais me emociona ao lembrar desse dia é o clima que tomou conta da Bienal. Não havia ódio, censura ou repressão. Só havia amor.
Tudo corria na mais perfeita paz, parecia uma festa, uma grande celebração à vitória sobre a repressão. O jornal O Globo resumiu que o clima era de "Copa do Mundo". Na internet, porém, os bolsonaristas esperneavam.
Por volta das 14h30, Alessandra e Everson resolveram fazer uma pausa na distribuição. Tinha tanta gente na fila que os voluntários não conseguiam embalar os livros a tempo. Decidiram então que todo mundo poderia ir aproveitar o evento e voltar às dezoito horas, quando todos os livros estivessem prontos. Pelo menos 7 mil exemplares já haviam sido distribuídos.
Mas era óbvio que Crivella não permitiria que as coisas continuassem transcorrendo daquele jeito. Em uma nova decisão, o Tribunal de Justiça do Rio autorizou que a prefeitura censurasse obras com tema LGBTQIAPN+ na Bienal do Livro. A ordem veio do presidente do TJ-RJ na época, o desembargador Claudio de Mello Tavares, que suspendeu a decisão anterior que impedia a prefeitura de apreender livros no evento.
Por determinação de Claudio Mello Tavares, as obras que ilustram o tema do "homotransexualismo" com "material impróprio e inadequado ao manuseio por crianças e adolescentes" atentam contra o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, e, portanto, devem ser comercializadas "em embalagem lacrada, com advertência de seu conteúdo". Dizia ele ser "inadequado que uma obra de super-heróis, atrativa ao público infanto-juvenil a que se destina, apresente e ilustre o tema da homossexualidade a adolescentes e crianças sem que os pais sejam devidamente alertados".
A decisão era absurda e repugnante. O Estatuto da Criança e do Adolescente não fala nada sobre homossexualidade, apenas se limita a dizer que "as revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família". Usar esse trecho do ECA para atacar obras com personagens homossexuais significava chamar a homossexualidade de "afronta aos valores éticos". Era homofobia descarada, mas isso não era surpresa.
Em 2009, ao julgar uma ação popular a respeito da Parada Gay, o mesmo Claudio de Mello Tavares escreveu: "Não se pode negar aos cidadãos heterossexuais o direito de, com base em sua fé religiosa ou em outros princípios éticos e morais, entenderem que a homossexualidade é um desvio de comportamento, uma doença, ou seja, algo que cause mal à pessoa humana e à sociedade, devendo ser reprimida e tratada e não divulgada e apoiada pela sociedade".
Enquanto tentava não entrar em pânico, Alessandra me mandou mensagem.
[15:37] Alessandra: "Se a gente retornar apenas às 18h, vai dar tempo dos agentes do prefeito chegarem antes e recolherem tudo".
[15:37] Felipe: "Alê, não podemos esperar. Agora é ritmo de guerra. Todo mundo precisa ajudar e os livros precisam esgotar antes da prefeitura chegar".
[15:38] Alessandra: "Ok".
Os dois voltaram correndo para a praça central e a notícia se espalhou por todo o evento. Em pouco tempo, muita gente sabia que os agentes do prefeito apareceriam a qualquer momento para recolher os livros que estávamos distribuindo.
Mais pessoas se ofereceram para ajudar e a comoção tomou conta do espaço. Os livros eram ensacados, adesivados e entregues. Quanto mais pessoas chegavam à Bienal, maior era o frenesi. Com aquela quantidade enorme de pessoas ajudando, mais 6 mil livros foram entregues em menos de duas horas.
Então, exatamente às 17h51, fui informado de que vários carros da polícia estavam entrando no Riocentro. Perguntei ao Everson quantos livros ainda faltava entregar.
[17:53] Everson: "Faltam uns 800 livros".
[17:53] Everson: "Para acabar".
[17:54] Felipe: "Boatos de q tao chegando com policia".
[17:54] Felipe: "Resistam".
[17:54] Everson: "Blz".
[17:54] Everson: "Vamos cair no tapa com a policia".
[17:54] Felipe: "Chegaram sim".
[17:54] Felipe: "Confirmado".
[17:55] Everson: "Sério? Estão aqui?".
[17:56] Felipe: "Sim, na entrada".
Nesse momento, a operação ligou a velocidade máxima. Com todos os livros já embalados, Alessandra, Everson e os voluntários começaram a entregá--los Bienal afora.
A polícia na verdade eram os fiscais da prefeitura, compostos de agentes da Seop, que chegaram ao evento com diversos sacos para recolher livros. Os agentes provavelmente não faziam ideia do nosso desespero em terminar de entregar as obras, pois toparam entrar em uma sala reservada para uma reunião com a diretoria da Bienal e integrantes do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel).
Foi aquela reunião que salvou o fim da ação. Eles conseguiram segurar os fiscais por duas horas, argumentando sobre a censura e dizendo que seria horrível a imagem de fiscais uniformizados caminhando entre os livros, passaria uma péssima impressão do Rio de Janeiro para o mundo, sem falar no possível confronto das pessoas indignadas contra os oficiais.
Foi nessa hora que eu recebi a mensagem:
[19:05] Emerson: "ACABOU!".
Tinha sido no limite, com os segundos contados. A gente resistiu! Comecei a chorar, é claro, sentindo a importância do feito. Aquele ato de resistência mandaria um recado muito claro para toda e qualquer autoridade que cogitasse censurar uma obra literária novamente.
Ao saber que todos os livros estavam entregues, a organização do evento informou aos fiscais que não havia mais nenhuma obra LGBTQIAPN+ disponível e que não fazia sentido eles tentarem recolher coisa alguma. Ainda assim, eles estavam irredutíveis, insistiram em fiscalizar.
Quando saíram da sala de reunião, os agentes encontraram milhares de pessoas exibindo os livros recebidos e caminhando pelos pavilhões do Riocentro, gritando palavras de ordem e a favor da diversidade: "NÃO VAI TER CENSURA! NÃO VAI TER CENSURA! NÃO VAI TER CENSURA!".
Sob gritos, os fiscais caminharam por todo o evento, mas não encontraram um único livro de temática LGBTQIAPN+ à vista. Saíram de mãos abanando. Até as dez da noite o evento permaneceu lotado, com manifestação dos presentes, que continuaram entoando palavras em defesa da cultura, da diversidade e da Constituição brasileira. Aquele dia era 7 de setembro de 2019. Quis o destino que fosse justamente o Dia da Independência do Brasil, a data mais amada pelos militares e por Jair Bolsonaro, que, enquanto tudo isso acontecia, desfilava de Rolls-Royce com seu filho, Carlos Bolsonaro, pela Esplanada dos Ministérios, cultuando o militarismo e dividindo palco com os empresários Luciano Hang e Silvio Santos, além do tio de Crivella, Edir Macedo.
Mas aquele 7 de setembro foi histórico também por outras razões. Foi um dia em que vencemos o ódio, num período em que apenas o ódio vencia. Foi um recado de que havia esperança, união e resistência.
Na luta contra o ódio, não se vai a lugar nenhum sozinho. Na ação da Bienal, posso ter sido a pessoa da ideia e dos recursos financeiros, mas os verdadeiros heróis foram Alessandra Ruiz, Everson Chaves, os voluntários e cada um que compareceu, debaixo de um sol escaldante, para provar que nós éramos fortes.
No dia 8 de setembro, o STF proibiu em definitivo a censura de livros, enterrando qualquer esperança de Crivella de tentar recolher obras LGBTQIAPN+ pela cidade. Desde então, nenhum outro bolsonarista tentou repetir a ação do ex-prefeito do Rio.
Nós vencemos a batalha, mas muitas outras viriam. A partir daquela grande e histórica ação na Bienal do Livro de 2019, eu não era mais só um inimigo a ser combatido. Agora eu deveria ser destruído. E isso entrou na lista de prioridade deles.
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