OPINIÃO
Hook comanda show sem se intimidar com 'peso' de não ter resto do New Order
Claudia Assef
Colaboração para Splash, em São Paulo
28/08/2024 01h10
Final de novela, encontro da quinta série, clube dos escoteiros. Nenhuma dessas reuniões teria um setlist tão bem desenhado quanto o show que o baixista Peter Hook entregou nesta terça-feira (27) gelada no Audio em São Paulo.
Ele foi uma das mentes brilhantes por trás do New Order, um grupo criado no caldo do pós-punk que foi um dos responsáveis por popularizar a música eletrônica ainda nos anos 1980.
Com a casa de show lotada até os mais longínquos camarotes — devidamente populados por convidados — Hook fez jus à pontualidade britânica e deu as primeiras paletadas em seu baixo às 22h02, com dois minutos de atraso.
Parte 1: New Order
Hook abriu os trabalhos com "Dreams Never End", materializando um desejo de toda uma geração que viveu o auge do New Order nas Up & Downs da vida e hoje se fez presente depois de driblar planilhas, filhos, problemas de saúde quiçá e certamente ignorando a iminente ressaca do dia seguinte. O público ainda estava esquentando, depois de se animar com "Ceremony", "Everything's Gone Green" e "Temptation", quando, do nada, Hook solta os primeiros acordes de "Blue Monday".
Assista a trecho de 'Blue Monday', no Audio, em São Paulo
Com certeza a música-tema da maioria dos presentes, o single de sete polegadas mais vendido do mundo, a música que uniu o dance pop da Toco na Vila Matilde até o riquinho Area em Moema.
Um hino a gente conhece de longe, e o palmômetro da plateia do Audio confirmaram. Se alternando nos vocais, bateria eletrônica e sempre tocando baixo, Hook faz um show comandado por ele, sem se intimidar com o "peso" de não ter os vocais de Bernard Sumner, os teclados de Gilian Gilbert e a batera de Stephen Morris no seu palco. Ele sabe literalmente o peso que seu baixo teve na história do New Order e do Joy Division.
Se falta voz na hora de cantar "Thieves Like Us", como foi o caso na Audio, o público ajuda, e tudo bem. Acompanhado dos músicos David Potts (guitarra), Paul Kehoe (bateria), Martin Rebelski (teclados) e Paul Duffy (baixo) no palco, Hook está acostumado a tocar para os paulistas.
Ele sabe da paixão que nos une a Madchester, apelido carinhosamente atribuído à cidade inglesa que viu crescer toda uma cena de música eletrônica que se desenvolveu principalmente dentro do clube Haçienda, ao qual Hook dedicou seu talento como escritor, lançando um livro sobre os dias de glória e de perrengue da casa noturna que ele ajudou a imortalizar.
Como um parente querido que chega pra jantar, "Perfect Kiss" volta às atenções do púbico pro palco e, graças ao vocal médio agudo do guitarrista David Potts, o job é entregue à altura desse clássico das pistas.
A música está lá, como todo mundo sabia, já pré-gravada na programação eletrônica mas, valei-me, estamos vendo um rock-dance star performando sua verdade bem debaixo dos nossos narizes — que, por alguns longos minutos, conseguiram ficar distantes do brilho azul do celular.
"Subculture", a música preferida dos fãs da fase mais deprê, como esta repórter, traz Hook numa missão de muita coragem, que é encarar o vocal sozinho sobre o cara que gosta de sair de rolê no parque quando a noite cai. Pode-se dizer que Hook como vocalista é um grande baixista.
"Shellshock" levou muita gente de volta para as sessões da tarde sonhando com a garota de rosa-shocking ou com seu crush playboy. Hora do "Parabéns a Você": "Bizarre Love Triangle" chegou para botar os celulares nas mãos do público como se fossem velas pro santo.
Entre abraços, sorrisos, video-selfies, a plateia teve a chance de imortalizar a música da adolescência com seu criador presente, vivo e ativo. Que momento!
Já que a temperatura subiu, o clima ficou perfeito para "True Faith" — quem se lembra do videoclipe com dois dançarinos coloridos se estapeando e pulando, quase uma alegoria do que se achava da música eletrônica então?
"I used to think that the day would never come..." foi cantada em uníssono, como numa aula do Fisk, e aplaudida com a devoção de uma missa bem rezada. E foi.
Uma hora e vinte quatro minutos de show e uma pausa para respirar — e quem sabe tomar uma no camarim. Todos sabiam que Hook é inimigo do fim e não encerraria sem um adeus de verdade.
Parte 2: Joy Division
Depois de um intervalo de 15 minutos, o trio volta para a parte pós-punk do show, abrindo a hora Joy Division com "Komakino". O clima fica mais dark, sujo, punk.
Os fãs do New Order lotam o bar enquanto os Joy Divisioners (como seriam chamados se a banda vivesse nos tempos de TikTok, talvez) engatam aquelas dancinhas mais introspectivas, como se voltassem pra pista do Madame Satã.
Se for pensar sobre, é nos acordes soturnos do baixo punk de Hook que a música do New Order encontrou o seu diferencial. E nesta terça (27) pudemos viver esses dois tempos, o punk gótico e depressivo (e perfeito) do Joy Division e sua versão literalmente pós-punk e dançante materializada na dance music que conquistou o planeta com o New Order.
Se o alcance vocal do New Order nao era para Hook, a faixa sombria imortalizada por Ian Curtis cabe perfeitamente na voz cru do vocalista. "Disorder" e "Warsaw" foram momentos em que a plateia mostrou seu fandom com raízes na darkera.
Da matinê fofinha do clube Ipê, a noitada foi para a buraqueira gótica de clubes que foram pioneiros em hinos, como "Digital" e "Transmission", cantada pela pista do Audio quase como um karaokê. "Dance dance dance to the radio", virou um mantra entoado por uma totalidade de punks (pelo menos os de butique) da plateia, para a alegria visível de Hook.
Assista a trecho de 'Love Will Tears Us Apart'
É claro que teve "She's Lost Control", anunciada por Hook com o aparente mau humor que despista a alegria de estar entregando um show de verdade, sem pirotecnia, VJ, holografia, apenas boa música, acompanhada de programação eletrônica e de quatro caras num palco.
"Ian, this is for you, mate", Hook falou antes de tocar "Dead Souls"; "Atmosphere" criou o preâmbulo lento e ritualístico para o grand finale que todos aguardavam: "Love Will Tear Us Apart" começou com o tradicional coro de futebol que a música provoca no Brasil, ou-o-o-o-o-o-o-o-ouuu.
Lindo e potente e nada nunca vai diminuir o poder desse hino jamais. Oooou-o-o-o-o-o-o-o-ouuu vamos ouvir até dormir hoje e sempre. "God Bless", disse Hook antes de sair do palco, já sem camisa, e antes de partir para o próximo "culto" na Cidade do México.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL