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'Ainda estou aqui': 'É a cabeça da minha mãe avisando que não estava morta'

"A morte do meu pai é algo que não acaba nunca", disse para mim Marcelo Rubens Paiva, que ainda guardava e usava à época, em agosto de 2015, a gravata herdada do guarda-roupa do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido na ditadura militar.

Marcelo havia acabado de lançar "Ainda Estou Aqui", a obra que deu origem ao longa de Walter Salles, aclamado por nove minutos no Festival de Veneza no fim de semana, e deu a entrevista para a extinta revista VIP, da Editora Abril. A figura central do romance, autobiográfico como o primeiro, "Feliz Ano Velho", era Eunice, sua mãe, interpretada no filme por Fernanda Montenegro.

No mesmo condomínio de luxo em que morava entre os bairros de Vila Madalena e Sumaré, na zona oeste de São Paulo, residia Maria Eunice Beyrodt de Paiva. Aos 83 anos, a matriarca dos Paiva não reconhecia mais os filhos, confundia pessoas que já morreram com outras vivas e invertia a todo tempo o gênero de Joaquim, o filho de Marcelo então com pouco mais de um ano. Por vezes é ele, em outras é ela.

Eunice sofria de Alzheimer, e a família optou por interditá-la judicialmente em 2008, quando ainda estava lúcida. Marcelo tornou-se o responsável legal pela mãe, mas era a irmã Vera quem a levava para executar as questões simples do dia a dia, como cuidar do cabelo, fazer as unhas e ir ao dentista. A família se reunia semanalmente no restaurante ao lado da piscina no conjunto de prédios da zona oeste paulistana. Joaquim era quem mais a via, todos os dias.

'Ainda Estou Aqui' é uma frase que minha mãe falou de verdade, em seu grau avançado de Alzheimer. Quando ela falou, me deu um susto. Era o cérebro dela avisado: 'Estou incapaz, mas não morta'. Existe um dilema dos familiares de falarem sempre da pessoa no passado. Minha mãe, apesar de não ter nenhuma memória, ela tem uma dignidade, uma postura no olhar, muito forte. Ela senta na cadeira de rodas com a perninha cruzada, com um olhar sábio, um colarzinho de pérolas. Não tem uma postura de doentinha
Marcelo Rubens Paiva, para o autor, na época do lançamento do livro

O livro, que cruza as histórias de Rubens Paiva, Eunice e Joaquim, foi também um jeito de Marcelo contar a experiência de uma família da classe média alta paulistana alterada por um golpe de estado, como o de 1964. Ele olha para o passado para enxergar heróis diferentes que a esquerda e a direita no país escolheram. Para o escritor, seus pais não são apenas heróis domésticos mas também de uma resistência civil que repudiou os 21 anos de regime militar.

"Muitas pessoas acham que a luta contra a ditadura foi executada pelas forças armadas da esquerda. Não foi. Eles queriam lutar contra o sistema capitalista, da influência americana sobre o continente. O que o Zé Dirceu fez para lutar contra a ditadura, o que a Dilma fez? Nada. Foi presa, torturadaça e passou a ditadura presa. Agora, quem lutou contra a ditadura? Foi o Pasquim, foram os editores Ênio da Silveira e Caio Gracco, o Plínio Marcos, a Igreja Católica, o dom Paulo Evaristo Arns, a ABI, a Folha de S.Paulo, o Estadão, o Jornal do Brasil, a VEJA... O Caetano, o Gil, o Oficina, o Guarnieri, o Augusto Boal, o CPC, o Herzog. A minha mãe."

Eunice morreu três anos depois dessa conversa —de maneira emblemática, no mesmo 13 de dezembro de 2018 em que o Ai-5 completava 50 anos. Para Marcelo e a sociedade brasileira, estava claro: ela era uma heroína da luta contra a ditadura.

Essas pessoas [como ela] combateram a ditadura, e não a luta armada, que até atrapalhou um pouco.

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