Principal produto da TV brasileira, as telenovelas estão passando por uma transformação.
Se há pouco tempo eram praticamente um monopólio da Globo, agora os folhetins estão ocupando espaço em plataformas de streaming como Netflix e Max (antiga HBO).
O sucesso da vez é "Pedaço de Mim". Estrelada por Juliana Paes e Vladimir Brichta — que já fizeram parte do "time A" da Globo —, a novelinha em 17 capítulos da Netflix precisou de só duas semanas para chegar ao primeiro lugar de audiência na plataforma.
Figurou no top 10 por seis semanas.
Nos próximos meses, os noveleiros terão Camila Pitanga com "Beleza Fatal" e até remake de "Dona Beja", com Grazi Massafera no papel que já foi de Maitê Proença. Ambas são apostas da Max para 2025.
Uma nova versão de "Pai Herói", trama clássica de Janete Clair que foi exibida na Globo em 1979, também está nos planos da Max para o segmento.
Embora continue produzindo suas novelas para a TV aberta, que a cada ano amarga índices menores de audiência, a própria Globo tem investido mais no seu serviço de streaming, a Globoplay.
A empresa afirma que um quarto da audiência da plataforma no streaming vem apenas de seus catálogos de novelas antigas.
Do Projac ao "Projasco"
Nos últimos anos, enquanto a Globo se reorganizou e dispensou atores, produtores e diretores do contrato de exclusividade, as plataformas Max e Netflix investiram em contratos com esses mesmos profissionais para produzir suas próprias minisséries e novelas.
Com um plano ambicioso de produzir seis novelas originais voltadas ao público latino em três anos, a Max reuniu figurões da Globo como Silvio de Abreu, Camila Pitanga e a diretora de talentos Mônica Albuquerque para compor seu núcleo de dramaturgia.
"Foi como se eu estivesse começando de novo aos 47 anos", afirma Pitanga, sobre o frio na barriga de encerrar 25 anos de contrato de exclusividade e acertar com a Max, onde assumiu também a função de produtora executiva.
Fora dos estúdios do Projac, a atriz vê um momento de renovação do formato que atravessou gerações engajando o brasileiro.
Todo mundo está sendo instigado, e o público se beneficia desse cardápio diverso. Você fala: 'Gostei muito desse trabalho. Ah, então qual é o próximo?' Camila Pitanga
Mas os planos da Max sofreram mudanças no meio do caminho. Em 2022, os trabalhos do núcleo de novelas tiveram o freio de mão puxado, enquanto a empresa reavaliava investimentos durante a fusão entre Warner (dona da HBO) e Discovery.
"Foi a novela da novela. Cheguei a fazer prova de figurino, e aí falavam 'não vai ser agora por causa da fusão'.", conta Pitanga.
A aprovação para "Beleza Fatal", de autoria de Raphael Montes, escritor de sucesso de romances policiais, veio apenas no segundo semestre de 2023. As gravações ocorreram em uma antiga fábrica em Osasco, na Grande São Paulo, que os atores passaram a chamar de "Projasco".
Com o novo formato — menos episódios, tramas mais aceleradas e sem alterações de roteiro guiadas pelo retorno da audiência —, os atores tiveram de se adaptar a uma nova logística de gravações.
Diferentemente das produções globais, em que gravam na ordem da exibição dos capítulos, no "Projasco" a escala era por cenário.
Em um mesmo dia, Pitanga registrava cenas de várias fases de sua personagem no mesmo ambiente.
Mas houve benefícios. "Cinco dias de trabalho e dois dias de descanso", ri a atriz. "Ralamos para cacete, mas isso é qualidade de vida. Salve a [jornada de trabalho] 5 para 2."
Problemas e contratempos
A nova "Dona Beja", versão de novela exibida originalmente na extinta Rede Manchete em 1986, será ainda mais ousada em cenas de sexo e violência.
Escrita por Daniel Berlinsky, com Bianca Bin e Grazi Massafera — que, a exemplo da Camila, estavam soltas no mercado —, a novela ganhou mais espaço nas páginas de fofoca durante a produção.
"Dona Beja" será "totalmente um híbrido", diz Berlinsky — uma novela com história fechada, diferente do que acontece com as novelas em TV aberta brasileiras, especialmente as da Globo.
"[As plataformas] estão de olho em um 'know-how' que só a Globo tinha, assim como na velocidade com que se escreve para a TV aberta", explica Berlinsky.
Desta vez, houve reclamações da equipe e do elenco com a produção, acostumada a projetos de séries e filmes.
"É uma matemática nova para se ensinar para o mercado. E isso só se justifica tendo frequência", observa Mônica Albuquerque.
Albuquerque deixou o posto na Max após conversar com o UOL, em meio a uma nova onda de reestruturação da empresa. Em seus últimos dias na função, ela apostava no projeto que ajudou a criar.
Esse estilo de novela brasileira conversa muito com as séries norte-americanas. Não tenho dúvida de que é um bom negócio no leque de ofertas. E o sucesso de 'Pedaço de Mim' é um sinal. Mônica Albuquerque diretora de talentos
Um pedaço de Juliana Paes
O investimento da Netflix em sua primeira novela brasileira começou em 2021.
Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da Netflix no Brasil, foi contratada nessa época para expandir a oferta de produções nacionais.
Tramas bíblicas da Record, as longas novelas turcas e até séries com cara de novela, como "Bridgerton", já bombavam na plataforma.
O melodrama é uma forma narrativa profundamente enraizada na cultura do país, tem um apelo emocional e um poder de conexão muito fortes. Elisabetta Zenatti vice-presidente de conteúdo da Netflix
Foi assim que chegou à equipe o texto de "Pedaço de Mim", de Angela Chaves, que estava sem contrato fixo após 15 anos de Globo (são dela a série "Os Dias Eram Assim" e o remake de "Éramos Seis").
A opção por uma trama resumida em 17 episódios pareceu o formato menos arriscado para a primeira tentativa.
Apesar do sucesso de "Pedaço de Mim", a Netflix não revela os próximos passos.
Sem contrato de exclusividade com a Netflix, Juliana Paes também pode ser vista em outra produção da Disney+, também com ares de série policial, "Vidas Bandidas", que ainda será exibida pela TV Bandeirantes.
Procurada pelo UOL, a assessoria da atriz não retornou os pedidos de entrevista.
Novela, série ou tudo ao mesmo tempo agora?
Um dos maiores nomes das telenovelas brasileiras, autor de clássicos como "Sassaricando" e "Rainha da Sucata", Silvio de Abreu ajudou a Max a traduzir o formato das novelas globais para o público do streaming.
Uma das providências foi enxugar as tramas de "Beleza Fatal" e "Dona Beja" para cerca de 40 capítulos, após corte no orçamento.
Ele não se importa se alguém prefere chamar os produtos de "séries" — na essência, para ele, continuam sendo novelas, por terem "linguagem de novela, emoções mais viscerais, relacionamento, segredos, quem é pai de quem".
Mas essa fronteira ficou borrada.
Uma técnica para novela de 200 capítulos angariar mais audiência é a reiteração. Para quem assiste todo dia, dá a sensação de repetição. Esta técnica não funciona para streaming. Silvio de Abreu
"A novela tem capacidade de fidelizar audiência que as séries não necessariamente têm, por acontecerem por temporada", explica Leonardo Moura, autor de "Como Analisar Filmes e Séries na Era do Streaming" e professor na Faculdade Cásper Líbero.
A Globo aposta na tradição com toques de modernidade para manter a audiência de sua novelas, que já foi muito maior no passado.
Para a Globoplay, sua próxima aposta é "Guerreiros do Sol", com apenas 45 episódios.
Já na TV aberta, a aposta é "Mania de Você", novela de João Emanuel Carneiro, conhecido como "rei do gancho", que estreou nesta segunda (9).
"O gancho final dos episódios, um atributo clássico das novelas, foi uma grande ferramenta para as obras do streaming. A série pode ter estimulado a novela a apurar ainda mais seus ganchos, com tramas mais aceleradas e cada vez menos 'barrigas'", diz José Luiz Villamarim, diretor de dramaturgia dos Estúdios Globo.
Por dentro da fábrica
Enquanto outros buscam acertar o formato, a Globo continua investindo nas novelas em todas as frentes.
"Brasileiro adora novela. E ela nunca esteve tão na moda", diz Villamarim.
A última das 9, "Renascer", nem de longe repetiu grandes feitos na audiência, mas chegou a 65 milhões de pessoas por semana, segundo a Globo.
"Esse é um número que uma plataforma de streaming paga demora quase um ano para alcançar", explica Leonora Bardini, diretora de programação da TV Globo.
Por isso, há anos as novelas da Globo têm se desdobrado em ações de conteúdo (merchandising) dentro da própria narrativa. Só em "Renascer" foram mais de 70 ações integradas à história.
"O enorme poder de gerar audiência, conversa e identificação ainda é o maior atrativo para qualquer marca", explica Bardini.
O espaço das novelas na TV aberta ainda é muito valioso para o mercado publicitário. Plataformas de streaming também querem parte dessa receita.
A Netflix, por exemplo, já incluiu opções de assinatura que contam com anúncios.
"A retenção da audiência é o foco principal, mas eu acredito que tenha muita oportunidade comercial [nos streamings]. A questão é que o próprio mercado vai ter que aprender", avalia Mônica Albuquerque.
Ciente do poder de seu principal produto de exportação, a Globo também colocou à venda textos originais de sucessos como "Verdades Secretas", "A Vida da Gente", "A Favorita" e "Avenida Brasil", para serem refilmadas em outros países.
Camila Pitanga torce para que benefícios sejam garantidos no mercado brasileiro, como a lei que obriga plataformas a oferecer uma cota de produções nacionais, cujo projeto foi aprovado em abril no Senado.
"Dá uma dimensão de médio a longo prazo, porque também é importante para o mercado publicitário criar uma estabilidade. Essa nossa arte de primeiríssima qualidade a gente exporta."
A minha conclusão é que o que importa é o conteúdo. A gente vai continuar ouvindo essas histórias seja em volta da fogueira, seja em volta de uma tela de televisão, celular ou computador. Rosane Svartman autora da novela "Vai na Fé" e do livro "A Telenovela e o Futuro da Televisão Brasileira"
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