'De Onde Eles Vêm': leia trecho do livro de Jeferson Tenório
De Splash, em Paraty (RJ)
12/10/2024 05h30
Jeferson Tenório, vencedor do prêmio Jabuti por "O Avesso da Pele", lança seu novo romance, "De Onde Eles Vêm", no dia 25 de outubro pela Companhia das Letras. O autor é uma das atrações da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) neste sábado (12).
A obra aborda a lei de cotas raciais como tema central, explorando o preconceito, a luta, a exclusão e o sonho em uma história que se passa em Porto Alegre nos anos 2000. O livro acompanha o despertar racial do narrador, Joaquim, em um ambiente hostil, tendo como pano de fundo o ingresso dos primeiros cotistas na universidade brasileira.
"De Onde Eles Vêm" retrata sua jornada de obstáculos em um momento em que políticas para amenizar desigualdades eram vistas como problema e não como solução. A trama dá corpo e rosto à Lei de Cotas, frequentemente atacada em debates públicos superficiais e permeados por preconceitos.
Splash teve acesso exclusivo a um trecho exclusivo do novo livro de Jeferson Tenório.
Leia abaixo:
Uma ocasião, Sinval me disse que escrever um bom livro dependia do quanto a gente tinha sofrido na vida. Embora fosse jovem e não tivesse consciência disso, eu ainda não havia conhecido o rancor, não de maneira visceral. Mesmo assim, sabia que a tristeza me dava uma certa vantagem. Acontece que essa sensação também me causava algum desconforto, pois, quanto mais eu refletia sobre a escrita, mais avaliava se valia a pena, se seria esse o preço a pagar. Ganhar experiência através das humilhações, da violência, e de todas as outras situações degradantes só para ter o que contar depois? A literatura vale tanto assim? Por outro lado, que garantia eu tinha? Porque nada me dava a certeza de que o sofrimento me faria escrever melhor. Tudo que havia em mim era ingenuidade, que é onde tudo começa, pensei, porque você só decide escrever depois de acreditar que pode fazer algo importante com as palavras. Talvez a ingenuidade seja necessária até o fim da vida para quem escreve. Na adolescência, meus primeiros poemas foram desastrosos. Para me curar da frustração, comecei a escrever diários, que aos poucos foram se tornando um cemitério de palavras: quase nada do que eu anotava neles servia para alguma coisa em termos de ficção.
10.
Escrevi meu primeiro poema porque queria ser leitor. Um dia me deitei na cama e olhei para minha estante de livros. A maioria eu tinha comprado, alguns tinham sido roubados da escola, da biblioteca ou de livrarias. Outros foram dados pelo Sinval. Havia um livro verde de capa dura, antigo, com as pontas danificadas pelo tempo. Era sobre o valor nutricional das frutas. Ganhei da minha mãe quando tinha uns cinco anos. Embora ela não fosse uma grande leitora, acreditava nos livros e queria que eu também acreditasse. Minha mãe morreu quando completei doze anos. Ela teve uma grave doença no coração. Ainda hoje, sempre que sinto palpitações, lembro dela. Talvez tenha sido essa lembrança que me levou a pegar aquele livro. Eu ouvia os latidos dos cães lá fora, vizinhos falando alto, carros passando e motos barulhentas. Peguei meu caderno de notas e escrevi: estante revisitada. Era ali o início do meu poema? De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos. Descobrir a origem de um texto o mataria? Permaneci olhando para a capa verde daquele livro. Até os meus dez anos, eu nunca o havia lido. Eventualmente o abria numa página qualquer, mas acontece que o livro tinha outras funções na minha vida. Servia de brinquedo, objeto que eu jogava de lá para cá, nunca para leitura. Mas penso que, de certa maneira, o livro cumpriu seu papel comigo. Foi útil para as necessidades básicas que eu tinha. Então, uma vez, ainda na infância, quando me senti entediado, abri o livro. Lembro que me deitei no sofá e comecei a ler sobre maçãs, bananas e abacaxis. Aquela imagem de uma pessoa deitada no sofá lendo um livro me atraía. De algum modo, tornei-me leitor não por causa da leitura em si, mas porque eu gostava daquela imagem: alguém que lê. Era disso que eu lembrava quando comecei a escrever o poema para a disciplina na faculdade. Terminei-o quase às três da manhã. Eu não estava satisfeito, mas foi o que pude fazer. Julgava que o poema era ruim, ainda assim me senti animado, porque a literatura fazia com que eu me sentisse grande diante das coisas, e aos vinte e quatro anos eu precisava dessa grandeza para não sucumbir. Diante do texto eu me sentia íntegro e precário. Eu não tinha muita consciência do que aquele poema significava. Eu já não tinha mais tempo para escrever outro. Então decidi que seria aquele mesmo que eu levaria para a aula.
[...]
27.
Passei outra noite no quarto com minha avó. Ouvi gemidos esporádicos dos pacientes que estavam por ali. Minhas costas doíam. Talvez a cadeira desconfortável sirva para que os acompanhantes tenham alguma noção do que o enfermo está passando, como se pudéssemos nos sentir um pouco doentes também. Elisa me mandou uma mensagem querendo saber como minha avó estava. Eu a atualizei. Em seguida disse para eu me cuidar, que agora ela precisava ir dar aula e que depois ia sair com os colegas para comer algo. Ao ler aquela mensagem, eu tive vontade de jogar o celular no chão. Meu ciúme tinha voltado com força. Respondi apenas com um divirta-se. Ela me mandou um beijo. Eu desliguei o celular. Tudo à minha volta era um show de horrores: eu estava sem dinheiro, desempregado, minha avó internada, minha namorada com aqueles colegas idiotas dela. Eu sem nenhuma vontade de ir para a universidade. Conferi o celular novamente, com alguma esperança de que Elisa tivesse me enviado outra mensagem. Mas nada. Eu estava com fome. Desci e fui a um caixa eletrônico sacar dinheiro. Eu tinha exatos vinte e sete reais e noventa centavos. Saquei dez reais e fui atrás de um cachorro-quente. Achei um por quatro reais, com duas salsichas. Comi ali mesmo, na frente do hospital. Já com o estômago cheio, tomei coragem e mandei uma mensagem para o Lauro pedindo cinquenta reais. Era para comprar comida, e o pouco que sobrasse, para minhas passagens de ônibus. Na verdade, eu já estava devendo pelo menos uns duzentos reais para ele. Eu sabia que ele era tão fodido quanto eu, mas pelo menos ele tinha um emprego, quer dizer, um estágio, portanto tinha um salário que caía na sua conta todo mês. Ele não respondeu. Subi para o quarto onde minha avó estava. Tia Julieta chegou e disse que, se eu quisesse, podia ir para casa descansar que ela me substituiria. Foi o que fiz. Andei até a parada de ônibus. Estávamos no outono, o calor já não nos acossava. E era possível pelo menos manter um pouco de dignidade. Peguei dois ônibus. Um até a avenida Protásio Alves, e outro até Alvorada. Enquanto esperava, recebi a mensagem de Lauro dizendo que podia me emprestar cem reais. Lauro era assim, sempre generoso. Me ofereceu mais do que eu havia pedido. Eu aceitei. Ele disse que passaria no hospital mais tarde para me levar o dinheiro. O ônibus chegou e me senti mais animado. Incrível como ter dinheiro, um pouco que seja, mexe com nosso humor. Cheguei em casa e fui direto para o banho. Me sentia sujo, precisava da água quente no corpo. Depois comecei a massagear meu pau, não pensei em Elisa, mas em Paola. Imaginei-me saindo do banho, minha toalha caindo sem querer, e ela vindo me ajudar e depois se ajoelhando na minha frente e começando a me chupar. Eu tive dificuldade para continuar porque vinha um cheiro de fio queimado do chuveiro, eu meio que tinha de ficar regulando o tempo para que aquilo não queimasse na minha cabeça. Não demorou e o chuveiro queimou. Saíram faíscas e alguma fumaça de dentro dele. Me arrependi de ter ficado tanto tempo no banho. Mais uma coisa para comprar. Além disso, tinha a conta da luz que sempre nos dava um susto. O Caminhão me disse uma vez que era para a gente fazer um "gato" no poste. Vale muito a pena. A gente paga uns quinze reais de luz, ele disse. Pensei que seria uma boa fazer isso. Enquanto me vestia, comecei a pensar no que mais dava para economizar. Cogitei em ir ou voltar a pé da faculdade duas vezes por semana. Parar de tomar cafezinho no bar da letras também era uma boa. Talvez eu devesse mesmo era esquecer toda aquela história de escrever. Também não me via como professor. Não era a minha vontade, embora Saharienne tivesse me dito que bastava começar a dar aulas para se acostumar. Talvez fosse uma saída, pensei. Mandei uma mensagem para o Lauro agradecendo novamente o empréstimo, disse que pagaria assim que pudesse. Depois mandei outra perguntando se já haviam aberto as entrevistas para o emprego no call center. Todas aquelas atitudes evitavam que eu sentisse pena de mim, o que poderia ser o meu fim, digo, poderia me colocar num lugar onde eu não queria estar. Mas essa minha postura não me livrava da raiva. Como era possível, eu pensava, que eu não tivesse o mínimo de condições para continuar na faculdade. Eu me sentia solitário, porque na universidade a maioria dos meus colegas cotistas tinham receio ou vergonha de se identificar como cotistas, tinham receio de sofrer algum tipo de retaliação da parte dos professores ou dos próprios colegas. Então ninguém procurava ninguém. Às vezes eu me sentia triste e percebia que aquele sentimento de liberdade de poder fazer o que quisesse com a minha vida era falso, ou só funcionava quando eu estava à beira de um penhasco, ou em cima de uma mureta no décimo quinto andar. Me levantei, porque lembrei que precisava escrever um ensaio sobre a Odisseia usando a Poética de Aristóteles como suporte teórico, eu não tinha o menor saco para aquilo. Mesmo assim, peguei as cópias e os polígrafos e levei-os para a mesa, a fim de me sentir menos culpado. Fiquei debruçado em cima deles por meia hora, até que meu estômago começou a dar sinais de que eu precisava comer de novo. Fui à geladeira. Fazia dias que tia Julieta não cozinhava. Havia um resto de feijão que estava com um cheiro duvidoso e um pouco de carne moída que parecia boa. Fiz o arroz e deixei o feijão de fora. Depois liguei a TV enquanto fazia a digestão. Assisti a um capítulo de uma novela reprisada, no Vale a Pena Ver de Novo. Senti um pouco de sono. Olhei o celular, já era hora de voltar para o hospital. Tia Julieta precisava descansar. Peguei uns livros e os polígrafos para rascunhar meu ensaio. Levei também o segundo volume de Em busca do tempo perdido. Eu tentava ler Proust mais por consideração ao Sinval. A presença dele havia diminuído em minha vida, mas era com aqueles livros que eu o resgatava na memória. Às vezes tinha vontade de procurá-lo, sabia que ele havia adoecido e fechado o sebo. Na verdade, eu tinha medo de encontrá-lo debilitado. Acho que não suportaria vê-lo assim.
[...]
2.
Rufus, o personagem de Baldwin, me ajudava a suportar a rotina. Eu punha o livro em cima da mesa onde atendia. No entanto, meu supervisor, Cristiano, que tinha a minha idade, disse que eu não podia ter nada em cima da PA, a Posição de Atendimento. Argumentei que não ia ler durante o expediente. Se não vai ler, então pra que ficar com o livro em cima de mesa?, ele perguntou. Para eu não me esquecer dele, respondi. Cristiano achou estranha minha resposta. Acho que é mais fácil você esquecer o livro em cima da mesa, deixa em casa, ele disse. É que o Rufus me faz companhia, eu disse. Quem é Rufus?, ele perguntou. O personagem, eu preciso da companhia dele pra eu não esquecer que gosto de livros, eu disse. Cristiano não me entendia. Disse para eu guardar o livro senão eu tomaria uma advertência e, se eu tomasse três advertências, era motivo para ser demitido por justa causa, embora eu não achasse nada justo ser mandado embora por colocar um livro sobre a mesa. Mas, quando o Cristiano virava as costas, eu tornava a pôr o livro na PA. Acho que a presença do livro era um modo de dizer a mim mesmo que os livros tinham de fazer parte da minha vida, mesmo que tudo estivesse me levando para o contrário. Pensei que de nada adiantava o sistema de cotas. Não daquela forma. Eu não tinha créditos suficientes nem para conseguir um estágio remunerado. Só apareciam trabalhos voluntários para fazer. Mas eu precisava escolher entre ter um emprego e ter experiência na minha área, sem ganhar nada. Além disso, eu estava deprimido e parei de me importar com minha aparência e com as roupas que usava. Evitava me olhar no espelho. Tinha a sensação de estar vivendo, mas como se estivesse morto. A perda de tempo com coisas inúteis me era dolorosa. Aquele trabalho não fazia o menor sentido para mim. Eu desperdiçava meu tempo e mesmo assim tinha consciência de que era necessário aceitar minha condição. Era o melhor a fazer, pensei. Talvez fosse menos sofrível. O mais honesto era me ver como um doente que aceita seu diagnóstico grave e procura um tratamento, não mais para se curar, mas para atravessar a doença com dignidade. Ora, então não havia um preço a pagar por ter ido tão longe? É claro que sim. Entretanto, eu já tinha me tornado um leitor, e já havia lido o suficiente para me revoltar. Tinha os instrumentos necessários para uma insurgência contra a vida: eu tinha saúde física e era leitor. No entanto, meu ímpeto era constantemente atropelado pela baixa autoestima. Eu me sentia incapaz de contestar minha condição e, na maioria das vezes, preferia me acomodar. Havia, sem que me desse conta, um certo prazer no meu sofrimento. Apeguei-me à solidão e à autopiedade. Como se aquele lugar de resignação e apatia me trouxesse algum tipo de recompensa interna. E, por muitas vezes, para tentar fugir daquela roda-viva, pensava como Sinval se sairia se estivesse no meu lugar. Talvez esse seja o pensamento mais comum quando temos alguém como exemplo.