OPINIÃO
Caetano e Bethânia também celebram a fé do povo negro no palco de sua turnê
Thiago Varella
Colaboração para Splash, em São Paulo
17/12/2024 19h00
Dizem que Santo Agostinho um dia falou que que cantar é rezar duas vezes. Posso não ter rezado a novena de Dona Canô, mas cantei — e orei duas vezes — com Caetano e Bethânia. Eu e os milhares presentes nessa louvação coletiva realizada no último domingo (15), no Allianz Parque, em São Paulo (a dupla também se apresenta nesta quarta, dia 18).
Pode não ter sido a intenção principal dos filhos de Dona Canô, mas a turnê que já percorreu várias capitais brasileiras presta uma grande homenagem à fé do povo brasileiro, mais precisamente àquela professada pelos negros. Na primeira metade do show, Caetano e Bethânia falam da fé das religiões de matriz afro-brasileira.
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Caetano é ateu, mas em "Milagres do Povo" admite que, como Jorge Amado, um dia o respondeu, viu milagres e canta Xangô, Oxum, Iemanjá e outros orixás cultuados na Bahia. Em "Dedicatória", os irmãos celebram Mãe Menininha do Gantois, ialorixá baiana, negra, eternizada nos versos de Dorival Caymmi, conselheira espiritual de Maria Bethânia, e uma das poucas pessoas que já fez Caetano duvidar de seu ateísmo. Durante a canção, uma imagem de Mãe Menininha é mostrada no telão, para o aplauso da plateia.
Em "Marginalia II", Bethânia, a menina dos olhos de Oyá, se transforma em algo além da sacerdotisa que comanda a louvação. Ela, que interpreta a canção sozinha, sob o olhar admirado de seu irmão mais velho, vira uma profetiza quase bíblica e decreta, quase subvertendo o sentido do verso do poeta Torquato Neto: "Aqui é o fim do mundo!"
Não apenas se referindo ao lugar, ao Brasil de "tropical melancolia, negra solidão", mas ao tempo do apocalipse. Um teólogo especialista em escatologia cristã com certeza olharia para o céu para verificar se Bethânia não estava se referindo à volta do Cristo.
Ainda em seu papel de profetiza, Bethânia diz ser "o início, o fim e o meio", na canção "Gita", de Raul Seixas e Paulo Coelho, inspirada no Bhagavad Gita, poema sagrado dos hindus. Aqui a celebração não é à fé afro-brasileira, mas por que não ao sincretismo tão presente no nosso povo, capaz de colocar no mesmo altar Nossa Senhora Aparecida, Ganesha, Buda e um brasão do Corinthians —afinal de contas, vai quê, né?
Mais perto do fim do show, os irmãos também cantam "Fé", de Iza, que pode não ter a autoridade religiosa de Mãe Menininha, mas é uma mulher negra brasileira que soube traduzir nossa espiritualidade em um clamor divino: "Ô Mãe do céu, abençoai a correria". Afinal, como escreveu Iza e cantou Bethânia, com a boca cheia de razão, "É preciso fé para enfrentar esses filha da puta".
Falei muito de Bethânia, mas o ápice da celebração da fé negra, afro-brasileira, nesse show é cantada na voz de Caetano Veloso. Na metade do espetáculo, cada irmão, sozinho no palco, canta de 4 a 5 canções. Além de obviedades obrigatórias, como "Sozinho", "Leãozinho" e "Você Não Me Ensinou a Te Esquecer", o cantor faz uma escolha que passa longe do lugar-comum e que gera até alguns narizes torcidos na plateia.
Caetano escolhe interpretar um louvor escrito pelo pastor e cantor Kleber Lucas, negro, nascido na favela, batista, progressista e doutorando em história pela UFRJ. "Deus Cuida de Mim" é um de seus grandes sucessos. Lançada em 1999, a canção com certeza já foi exaustivamente tocada e cantada em igrejas evangélicas espalhadas por todo o Brasil, sobretudo nas periferias.
O Brasil atual é negro e é evangélico. Muitos progressistas ainda não sabem lidar com isso. Caetano provou que sabe. Se faz sentido celebrar a fé negra dos orixás ou a fé negra de Iza, também faz louvar a fé negra dos evangélicos como Kleber Lucas.
Santo Amaro, cidade natal dos irmãos Caetano e Bethânia e onde Dona Canô rezava suas novenas, é conhecida no Recôncavo Baiano por seus terreiros de candomblé, pela fé católica da Igreja da Purificação, pelo avanço evangélico e pelo diálogo inter-religioso.
Seus filhos mais famosos sabem disso e trouxeram a fé de seu povo para ser louvada. Sem nenhum traço de puritanismo, moralismo ou intransigência. Afinal, a vaca profana segue derramando o leite bom nas nossas caras e o leite mau na cara dos caretas. Amém?
Caetano & Bethânia
Quando: quarta (18), às 20h30
Onde: Allianz Parque (São Paulo, SP)
Ingressos esgotados
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL