Morte de cão e instrumento mágico: quais obras inspiraram Suassuna em Auto?
"O Auto da Compadecida 2" estreou nos cinemas em 25 de dezembro, dando continuidade à adaptação da minissérie de 1999, que por sua vez é baseada na peça de Ariano Suassuna escrita em 1955.
Embora muitos acreditem que a principal inspiração de Suassuna tenha sido "O Auto da Barca do Inferno" (1517), clássico do português Gil Vicente, o autor, na época com 28 anos, se inspirou em três obras da literatura nordestina para criar o "O Auto da Compadecida".
As referências de Suassuna
Essas influências incluem contos que envolvem temas como morte, ressurreição e valores religiosos. Em conversa exclusiva com Splash, Zé Salvador, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, escritor e especialista no tema, ressalta ainda a crítica social via elementos típicos da cultura popular nordestina.
A primeira delas é "O Cavalo que Defecava Dinheiro", de Leandro Gomes de Barros, o "pai" da literatura de cordel, nascido na Paraíba em 1865. O conto narra um contrato envolvendo a negociação de uma tira de couro, a simulação de uma morte com o sangue de uma galinha e a ressurreição via um instrumento musical —na obra, trata-se de uma viola. No filme, Chicó (Selton Mello) "ressuscita" João Grilo (Matheus Nachtergaele) com uma gaita.
Outra obra de Barros que influenciou Suassuna foi "O Testamento do Cachorro", que abordou uma questão religiosa. No conto, tal qual no filme, personagens ricos se empenham em oferecer um enterro ao animal de estimação da família, além de dividir os bens entre os familiares.
"O Castigo da Soberba", de Silvino Pirauá de Lima, também foi fonte de inspiração para o sucesso de Suassuna. A obra retrata um cidadão acusado de enganar pessoas em seu julgamento divino, sendo, como João Grilo, ressuscitado após apelar para Nossa Senhora, respondendo às acusações do diabo.
Quanto à relação entre a obra de Suassuna e "O Auto da Barca do Inferno", Zé Salvador explica que a única semelhança entre as duas é o nome. "Em momento nenhum, Suassuna se refere a uma longa viagem após a morte. Quando João Grilo morre, ele chega ao céu de maneira rápida. Já Gil Vicente tem uma história na linha de Dante Alighieri, com um grande deslocamento pós-morte."
'Oração' de João Grilo
Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio, agora sou escaler.
Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!
A oração de João Grilo, cujos versos se tornaram conhecidos após o primeiro "O Auto da Compadecida, tem raízes profundas na literatura de cordel. As frases, recitadas por João Grilo momentos antes da aparição de Nossa Senhora (Fernanda Montenegro), que o defende das acusações do diabo (Luís Mello), trata-se de um verso de Canário Pardo, poeta popular nordestino, segundo o artigo científico "Valha-me Nossa Senhora! - A devoção Religiosa Apresentada no Filme O Auto da Compadecida", de Marcelo Pires de Oliveira e Milena de Menezes Nascimento, publicado na Revista Internacional de Folkcomunicação, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR).
A origem da oração, porém, é controversa. Canário Pardo é citado no texto original da peça de Ariano Suassuna. No entanto, a reportagem não encontrou outras referências ou obras do autor, além de não localizar o livro em que poema aparece.
Zé Salvador defende que Ariano Suassuna escreveu a oração com base em diálogos de "O Castigo da Soberba". Ele afirma não existir outras publicações da literatura de cordel que apresentem exatamente essa citação —poema não aparece nem no livro "As Proezas de João Grilo", escrito por João Martins de Athayde, em 1951.
Esse tipo de oração é típico de Ariano Suassuna. Ele é um gênio em escrever tramas e gosta muito da loucura. Então, acredito que ele juntou falas e acrescentou vocábulos. Zé Salvador
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