Manuela Dias: Sexualidade de Odete Roitman era 'encapada com perversidade'

Desde que foi anunciada pela Globo, a releitura de "Vale Tudo" vem despertando opiniões de toda ordem sobre a novela originalmente escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basséres em 1988 —da escalação do elenco à abordagem dos temas motivados pela questão central da trama, que parte do questionamento: "Vale a pena ser honesto no Brasil?"

Responsável pelo remake, a autora Manuela Dias conversou com Splash ao longo de uma hora e falou sobre os desafios e os prazeres de assinar a próxima novela das nove da Globo, que estreia em 31 de março, sob direção artística de Paulo Silvestrini.

Entre os vários pontos atualizados no enredo da vez, a própria escalação de Débora Bloch para ser Odete Roitman aponta claramente para uma personagem mais sensual que a original. A escolha ressalta as transformações conquistadas na sexualização de uma mulher de 60 anos.

Por que parece mais natural que Débora, hoje com 62 anos, viva um romance com um rapaz sarado, 20 anos mais jovem (Cauã Reymond, 44), do que o espanto causado pelo par formado entre Beatriz Segall (então com 63 anos) e Carlos Alberto Ricelli (42 na época)?

Odete mudou muito, assim como a contextualização de uma mulher de 62 anos que tem uma vida sexualmente ativa. Isso, em 1988, era socialmente encapado com uma certa perversidade. [Na época] Ter uma vida sexualmente ativa aos 62 anos, só se fosse uma pervertida. E hoje em dia, isso é uma grande conquista das mulheres e uma conquista que não está pronta, que não está feita, como toda grande conquista, das ditas minorias que não são minorias.
Manuela Dias

Odete (Débora Bloch) em 'Vale Tudo'
Odete (Débora Bloch) em 'Vale Tudo' Imagem: Estevam Avellar/Globo

Manu faz questão de defender a beleza de Segall. "Era uma mulher linda. E supersensual, dentro da aristocracia dela. Eu não a conheci pessoalmente, mas as pessoas que conheceram dizem que ela era super elegante. Tem cenas da Odete de 1988, de shortinho na lancha, e ela tinha umas pernocas da Madonna, entendeu? Então, a gente via ela menos sensual do que ela de fato era quando a gente vê hoje como ela era."

"Se por um lado a gente entendeu que mulheres de 60 anos transam e podem querer transar, a gente [ainda] persegue essa mulher que faz isso e ainda mais de forma aberta. Ela segue pagando um preço social", diz, em geral ocupando um posto privilegiado, "no topo das classes sociais."

Manuela avisa que Odete "vai causar muito", e não só pelo fato de ter uma vida sexualmente ativa. É também por "toda a liberdade de trânsito que ela tem com relação a qualquer espécie de preconceito e pudores".

O racismo de Odete Roitman e do público

Os preconceitos de Odete geram outro ponto nevrálgico da nova versão, que traz uma Maria de Fátima vivida por uma atriz negra, Bella Campos, o que acende um paradoxo no eixo principal do enredo. Como Odete, sendo racista como manda a gênese de sua vilã, vai conspirar a favor do casamento da moça com seu filho, Afonso, papel de Humberto Carrão?

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A autora gerou polêmica ao justificar inicialmente que os interesses de Odete superam qualquer outra questão, o que leva a ricaça a ver em Fátima não só uma aliada, mas um espelho seu quando jovem.

Bella Campos com visual de Maria de Fátima, sua personagem em 'Vale Tudo'
Bella Campos com visual de Maria de Fátima, sua personagem em 'Vale Tudo' Imagem: Reprodução/Instagram

Diante das discussões que apontam fragilidade nesse argumento, Manuela reforça a tese e devolve a provocação. "Na recepção da escalação existe um racismo, né? Acho que as pessoas estão tão preocupadas com o racismo da Odete, que não veem o seu próprio racismo, ao ficarem chocadas de a Maria de Fátima não ser uma atriz branca".

Para Manuela, Odete venera o capitalismo e sua ideologia é o dinheiro. "O que serve para Odete é o que está a favor dos seus planos. E do outro lado ela tem a Solange [Alice Wegmann], que não topa nada do que ela propõe.

"Ela começa propondo para Solange: 'Vem cá, me ajuda a levar o Afonso para Paris e tal'. E a Solange fala: 'O quê? Você está louca que eu vou fazer essa aliança com você? Vai embora da minha casa agora!'. Então, quando a outra opção é Solange e quando ela parece uma menina que sofre, a Odete tem uma incrível transferência com relação a Maria de Fátima. Ela fala: 'Você me lembra mim mesma'."

A ambição que elas compartilham e a falta de pudor com relação a qualquer ética, isso as une tanto, que ficou muito mais forte assim", acredita a dramaturga. "E eu acho que sim, Odete se uniria a quem fosse, de qualquer lugar, de qualquer cor, de qualquer classe, de qualquer jeito.
Manuela Dias

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Contrato com o capeta

Manu observa que esta é uma "Vale Tudo" muito mais negra do que era lá em 1988. "Na época, esse debate da representatividade racial não existia" e havia apenas dois negros no elenco: uma doméstica que morava com uma família de bem e era convocada a fritar ovo até num sábado à noite, e Gildo, menino que roubava Raquel, então vivida por Regina Duarte.

Jarbas (Leandro Firmino), André (Breno Ferreira), Consuelo (Belize Pombal) e Daniela (Jessica Marques) em 'Vale Tudo'
Jarbas (Leandro Firmino), André (Breno Ferreira), Consuelo (Belize Pombal) e Daniela (Jessica Marques) em 'Vale Tudo' Imagem: Fábio Rocha/Globo

Gildo (Fernando Almeida no original) agora é Gilda, papel de Letícia Vieira. Ela também não é menor de idade, o que configuraria exploração de trabalho infantil, algo que ninguém notou em 1988, sob a ideia de que Raquel, afinal, tentava apenas acolher um garoto pobre.

No grande pacote de transformações vivenciadas ao longo de quase quatro décadas, outra mudança na releitura da novela está na ocupação de Solange Duprat (Lídia Brondi/Alice Wegmann). Ela trabalhava em uma revista de moda em 1988 e agora dá expediente em uma agência de influenciadores. É lá que Fátima, vocacionada para o alpinismo social, vai parar, em busca dinheiro com o mínimo de esforço —há 38 anos, na pele de Glória Pires, a personagem tentava ser modelo.

Solange (Alice Wegmann) em 'Vale Tudo'
Solange (Alice Wegmann) em 'Vale Tudo' Imagem: Fábio Rocha/Globo
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Hoje em dia, entrar no mercado de trabalho é muito diferente de entrar no mercado de trabalho em 88. A ideia da construção de uma carreira, da preparação para uma carreira, a ideia de ser estagiário, de aprender... A própria ideia de carreira dentro de uma empresa, a expectativa de uma carteira assinada, de uma CLT, tudo isso é muito diferente hoje em dia.
Manuela Dias

Como ouviu de um amigo, a autora concorda que a lista de adaptações do enredo renderia uma tese de mestrado.

7 comentários

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Andrea de Almeida Assis

Olá, Filipe Pavão  e Cristina Padiglione, Muito boa a matéria no Splash.  Apenas um detalhe: no mestrado, existe uma pesquisa que é a dissertação defendida no final do curso diante de uma banca. Tese, é quando isso tudo é feito no doutorado, degrau alcançado, na maioria das vezes, depois do mestrado.

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Jane Tadeu da Silva

Faz muito que deixei de assistir novelas, e essa Vale Tudo na época de 30 anos atras, ainda fiz questão de assistir alguns episódios, e pelo que vi na época, era bem assistida na minha cidade e no Brasil, foi uma das 20 melhores novelas de todos os templos da Globo, agora essa da Familia Negra é muito Legal e ver o grande Ator Leandro Firmino com um personagem forte como esse, e mostrar que tem que ter mais oportunidade nas novelas e trabalhos na TV, e também que uma das personagens protagonista vai ser feito por essa nova sensação novata de Atriz a Bella Campos e ver de volta de atriz que gostava muito de ve-la la atrás onde era novata ainda a Atriz Debora Bloch já com 62 anos inacreditável acreditar.

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Moises Solon

poderiam ter feito a novela baseada na decada de 80, pois vale tudo original é perfeita, pelos atores que eram simplesmente maravilhosos e nao esses de hoje

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