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Sexo lésbico e Casagrande nu: filme censurado pela ditadura volta ao cinema

De Splash, em São Paulo

27/03/2025 05h30

"Onda Nova" chegou aos cinemas em 1983, mas, com direção de Ícaro Martins e José Antônio Garcia, ficou disponível ao público por pouco tempo. O filme foi exibido na 7ª Mostra de Cinema de São Paulo, ocorrida naquele ano, mas, logo em seguida, foi proibido pela censura do regime militar.

Agora, quatro décadas depois, a produção foi restaurada e remasterizada em 4K, sendo relançado nos cinemas em uma distribuição entre Vitrine Filmes e Tanto Filmes. A obra chega às salas de exibição hoje, 27 de março.

A produção acompanha as histórias das jogadoras do Gayvotas Futebol Clube, um time feminino formado em 1983, em plena ditadura militar e ano em que o esporte foi regulamentado para as mulheres no Brasil, após ter sido banido por quatro décadas. Ao longo do filme, as jogadoras enfrentam os preconceitos de uma sociedade conservadora.

"Onda Nova" contou com o apoio de renomados jogadores da época, como Casagrande, Wladimir e Olivio Pitta. Os três jogaram pelo Corinthians e faziam parte da Democracia Corinthiana, movimento histórico no futebol brasileiro, no qual jogadores participavam ativamente das decisões do clube e lutavam contra a ditadura militar.

As presenças de Casagrande e Wladimir, inclusive, chamam a atenção por serem inusitadas. Walter Casagrande, por exemplo, interpreta ele mesmo e, em sua cena, é abordado por uma fã que pede para o jogador tirar sua virgindade. Ele aceita o convite e, depois, aparece nu, vivendo uma cena de sexo com a garota.

Eu tinha 19 anos, era solteiro, não gostava de compromisso e quando me convidaram aceitei inclusive as cenas de sexo. Desde 1982, já apoiava o futebol feminino e vi ali um modo de ser mais direto, mas também queria curtir fazer esse filme. Me diverti bastante, mas fiquei supertímido e envergonhado nas cenas de sexo e nas outras.
Casagrande, a Splash

A timidez sentida por ele durante as filmagens, no entanto, não tira a empolgação pela nova exibição do filme. O jogador e colunista do UOL disse apoiar a volta de "Onda Nova" aos cinemas.

Wladimir aparece vestido de mulher, logo no início do filme, enquanto Pitta teve várias participações em cenas de sexo. Outra aparição de peso no longa é a de Caetano Veloso. O compositor baiano dá uns amassos em uma atriz no banco de trás de um táxi. Com o clima esquentando, a motorista pensa alto: "Será que estão indo para uma suruba?".

Tânia Alves, Wladimir e Regina Casé em cena Imagem: Divulgação/ Vitrine Filmes

"Nunca seria feito hoje"

Em entrevista a Splash, o diretor Ícaro Martins conta que "Onda Nova" foi feito com um baixíssimo orçamento, como era comum no cinema produzido na Boca do Lixo —termo usado para a região do centro de São Paulo de filmes de baixo orçamento e com liberdade criativa—, mas que contou com uma liberdade que não existiria atualmente.

Segundo conta, os produtores da época não interferiam durante a produção, e era preciso somente seguir algumas regras. "Eles chegaram a um acordo. O filme vai custar tanto, tem que filmar em tanto tempo, e tem que ter 15 cenas de sexo, cinco mais demoradas, pelo menos uma de lésbica. Se fizer isso, eles não interferiam absolutamente na história. Eventualmente perguntavam uma coisa ou outra, por que isso ou aquilo, mas não interferiam. Ao contrário de hoje, onde streamings, patrocinadores e não sei mais quem interferem, distribuidores interferem desde o começo."

Para Martins, um exemplo disso são os patrocinadores, que hoje não liberariam um jogador para aparecer travestido de mulher "apenas pela piada e diversão". Outros assuntos abordados em "Onda Nova" também seriam empecilhos para conseguir investimento, como aborto, sexo gay, suicídio e drogas.

Brinco que antes a censura era estatal, institucional. Hoje, ela foi privatizada. Não existe mais o Departamento de Censura do governo, mas existe a censura privatizada.
Ícaro Martins

Olívio Pita e Neide Santos são um casal em 'Onda Nova' Imagem: Divulgação/ Vitrine Filmes

O diretor conta ter ficado bastante surpreso quando soube que o filme não teria somente cenas retiradas pela censura, como poderia acontecer, mas, sim, proibido por completo de ser exibido. Para ele, isso se deve ao caráter não moralista da produção, afinal as mulheres são protagonistas que decidem sobre suas vidas sexuais e profissionais.

O problema das pornochanchadas é que, em geral, apesar de terem cenas eróticas, elas são moralistas. Mesmo as cenas eróticas são feitas com um viés supermachista. As mulheres, os gays e até mesmo homens heterossexuais são sempre enquadrados de um ponto de vista machista e moralista.

Agora, 40 anos depois, "Onda Nova" continua original e transgressora. Julia Duarte, a responsável pela restauração e sobrinha de José Antônio Garcia, conta que a produção era até mesmo vista como "maldita" na família. "Todo mundo falava como se fosse o pior filme do Zé", conta. No entanto, com o passar dos anos e, após ter estudado cinema e assistido ao título, entendeu a importância dele.

Desde que vi esse filme, faz 20 anos, ele foi se mostrando atual, com discussão de gênero, com o futebol feminino ganhando espaço. Parece que fomos ganhando certas batalhas como sociedade que o 'Onda Nova' parecia já predicar lá atrás.
Julia Duarte

"Onda Nova" foi restaurado e remasterizado em 4K por Julia Duarte, Aclara Produções Artísticas e a família de José Antonio Garcia, com a colaboração da Cinemateca Brasileira/SAC - Sociedade de Amigos da Cinemateca, Zumbi Post e JLS Facilidades Sonoras. O elenco conta também com Regina Casé, Osmar Santos, Carla Camurati, Tânia Alves e Vera Zimmermann.