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Com 'Ainda Estou Aqui', Brasil encara fantasma da ditadura

AFP

30/01/2025 15h16

"Se ganharmos, vamos comemorar igual a uma Copa do Mundo", promete Isabela Caetano, uma estudante de 19 anos de São Paulo que, como milhões de brasileiros, vive as indicações ao Oscar de "Ainda Estou Aqui" como uma questão de orgulho nacional.

Nas ruas e nas redes sociais, cidadãos, artistas e políticos - incluindo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva - aderiram à onda de euforia com o filme do cineasta Walter Salles, que aborda o desaparecimento do ex-deputado progressista Rubens Paiva em 1971.

Indicado ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional, "Ainda Estou Aqui" confronta o Brasil com o fantasma de sua ditadura militar (1964-1985), um tema por décadas nas margens do debate público.

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Uma mulher tira fotos do túmulo de Eunice Paiva no Cemitério do Araçá, em São Paulo - Carlos Fabal/AFP
Uma mulher tira fotos do túmulo de Eunice Paiva no Cemitério do Araçá, em São Paulo Imagem: Carlos Fabal/AFP

Quase quatro milhões de brasileiros já assistiram ao filme nos cinemas, enquanto o país descobre revelações sobre o recente envolvimento de militares em uma suposta trama golpista.

Estrelado por Fernanda Torres, vencedora do Globo de Ouro e indicada ao Oscar de Melhor Atriz, o longa narra a luta de Eunice Facciolla Paiva, esposa de Rubens, para esclarecer o sequestro do marido pelas forças armadas.

O corpo do ex-deputado jamais foi encontrado e o crime segue impune. Em 2012, a Comissão Nacional da Verdade concluiu que o Estado foi responsável por sua morte.

Da tela para as ruas

O sucesso de "Ainda Estou Aqui" inspirou uma ideia inusitada em São Paulo. O túmulo de Eunice Paiva, falecida em 2018, foi incluído como atração em uma visita guiada ao Cemitério do Araçá, um dos maiores da cidade, organizada pelo projeto "O que te assombra?".

A historiadora Viviane Comunale e Thiago de Souza leva um grupo de visitantes ao túmulo de Eunice Paiva no Cemitério do Araçá, em São Paulo Imagem: Carlos Fabal/AFP

"Vim homenagear a Eunice porque é importante lembrar o que sua luta nos diz sobre o nosso país de hoje", diz Mirella Rabello, médica de 28 anos, que deixou flores no túmulo.

No Rio de Janeiro, a casa onde foi rodado o filme - que é baseado no livro de mesmo nome de um dos filhos dos Paiva, Marcelo Rubens Paiva - atrai turistas de todo o país mobilizados pela história.

Pessoas se reúnem em frente à casa onde o filme "Ainda Estou Aqui" foi filmado, no Rio de Janeiro Imagem: Pablo Porciuncula/AFP

"Sou de Brasília e fiz questão de visitar essa casa e registrar para minha família, meus netos, o quão importante pode ser um filme para guardar a memória de um país", afirma Silvana Andrade, professora de 55 anos, em frente à residência localizada no bairro da Urca.

"Percebemos que também é um filme para entender o presente", declarou Walter Salles, cujo longa "Central do Brasil" (1998) também foi indicado ao Oscar, em uma recente entrevista à AFP.

Pessoas posam para fotos na casa onde o filme "Ainda Estou Aqui" foi gravado, no Rio de Janeiro Imagem: Pablo Porciuncula/AFP

Em novembro, a Polícia Federal acusou o ex-presidente Jair Bolsonaro, capitão reformado do Exército e nostálgico da ditadura, de um suposto plano para impedir a posse de Lula em 2022.

Bolsonaro e comandantes das forças armadas foram indiciados por conspiração contra a democracia. O ex-presidente se declara inocente e afirma ser um "perseguido".

Após a estreia de "Ainda Estou Aqui" em novembro, contas associadas à extrema-direita convocaram nas redes sociais um "boicote" ao filme.

Um país "mais sensibilizado"

O Brasil nunca julgou os crimes cometidos durante a ditadura, que, segundo dados oficiais, deixou 202 mortos, 232 desaparecidos e milhares de vítimas de torturas e detenções ilegais.

Uma lei de anistia aprovada em 1979 pelo regime militar impediu a punição dos culpados.

No entanto, em dezembro, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), interpretou pela primeira vez que a anistia não pode incluir a ocultação de cadáveres.

Em sua decisão, que ainda precisa ser analisada pelo plenário do STF, Dino citou "Ainda Estou Aqui", lançado um mês antes.

A sala onde uma das cenas icônicas de "Ainda Estou Aqui" foi gravada, no Rio de Janeiro Imagem: Pablo Porciuncula/AFP

"Hoje o Brasil está mais sensibilizado sobre a ditadura, graças a fatores que vão desde um filme até notícias sobre uma conspiração militar", afirma Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Segundo Gonzaga, o número de vítimas do regime militar pode ser muito maior do que o oficial, se forem considerados grupos não vinculados a partidos, como indígenas atingidos pela repressão.

Para os mortos oficialmente contabilizados, a Justiça determinou em dezembro que seus atestados de óbito sejam corrigidos para explicitar que morreram pelas mãos do Estado. Também serão emitidas declarações para os desaparecidos.

Reconhecido como morto em 1996, Rubens Paiva é uma das vítimas cujo atestado de óbito agora indica morte "não natural; violenta; causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964".