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Ricardo Feltrin

Funcionários da Cinemateca pedem que governo não "mate" órgão

Ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, a quem carta aberta é endereçada -
Ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, a quem carta aberta é endereçada

Colunista do UOL

30/05/2020 08h28

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Uma carta aberta com tom de desespero foi publicada pelos funcionários da Cinemateca em São Paulo e por entidades de defesa dos trabalhadores em audiovisual.

Na carta, eles pedem que o governo não "mate" o órgão, que existe há mais de 70 anos.

O fechamento poderia provocar a destruição e perda total do acervo, além da demissão de mais de 70 funcionários, como esta coluna —infelizmente— antecipou ontem com exclusividade.

A proposta de fechar um dos maiores órgãos de acervo de cinema e audiovisual da América Latina foi feita em reunião ontem entre representantes do governo e da Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), entidade sem fins lucrativos.

No final do ano passado o Ministério da Educação cancelou o contrato de mais de 25 anos que tinha com a Acerp —que cuidava, além da Cinemateca, também da TV Escola.

O contrato com a Cinemateca, porém, só termina em 2021.

O governo quer rescindi-lo pura e simplesmente, sem qualquer ônus. A Acerp não aceita.

Sem dinheiro, se isso ocorresse a Acerp não teria como arcar com as demissões. O governo também não se compromete em pagar nem sequer isso.

Há funcionários que estão há 40 anos na Cinemateca, e boa parte deles é pessoal técnico.

Briga pode ir para os tribunais

Após a reunião de ontem, a Acerp convocou seu conselho para tomar medidas jurídicas contra as intenções do governo.

A primeira delas deve ser a cobrança judicial de cerca de R$ 11 milhões devidos ainda pelo Ministério da Educação sobre o contrato do ano passado (eram originalmente mais de R$ 9 milhões, mas o valor já cresceu).

Outra medida da Acerp é, provavelmente, pedido de liminar que impeça o governo federal de tomar qualquer decisão unilateral, descumprir ou romper o contrato.

A Roquette Pinto também quer se mobilizar para pedir dinheiro e ajuda a entidades civis para impedir o fechamento —e a deterioração— do incalculável acervo.

Leia a carta publicada pelos funcionários endereçada ao ministro do Turismo (que estava negociando a continuidade do contrato após a saída do Ministério da Educação da parceria) e à atriz Regina Duarte, que ainda está no cargo de secretária especial da Cultura.

Na semana passada o presidente Jair Bolsonaro e atriz anunciaram que ela assumiria um cargo na Cinemateca.

O problema é que o cargo dela não existe na entidade. Para contar isso estaria sendo costurada a nomeação da atriz para um cargo DAS no valor de cerca de R$ 15 mil mensais em São Paulo, provavelmente vinculado ao Ministério do Turismo.

Veja a íntegra da carta divulgada por trabalhadores e entidades trabalhistas:

"Salvem a Comunicação Educativa e a Cinemateca Brasileira

Nós, trabalhadores da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), através de nossos sindicatos, vimos através desta solicitar a imediata resolução deste grave imbróglio, que, mais do que nossas famílias, atinge diretamente os arquivos históricos da cultura nacional e o desenvolvimento da educação em nosso país.

Como é de conhecimento público, o contrato de gestão da TV Escola, firmado entre o Ministério da Educação e a Acerp foi rescindido unilateralmente pelo Ministério, sem qualquer precedente desde a criação do canal.

Esse rompimento acarretou na suspensão da entrada de verba para a gestão, não obstante as atividades da TV Escola terem sido mantidas. Igualmente importante é o contrato de gestão da Cinemateca Brasileira, aditivo do contrato de gestão da TV Escola, também afetado pela referida rescisão.

Até o presente momento, o Governo Federal não realizou o repasse à Acerp de cerca de R$ 12 milhões referentes à gestão da Cinemateca no ano de 2019. Esse repasse deveria ter sido feito ano passado.

A direção da Acerp tem nos pedido paciência na promessa de que tudo se resolverá através de um novo contrato firmado com a Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo.

Entretanto, já se passaram quase seis meses e o pior aconteceu: colegas de trabalho que ousaram cobrar e questionar foram demitidos, salários, serviços e demais benefícios deixaram de ser pagos e, em meio a pandemia que assola nosso país, podemos ficar sem plano de saúde.

Os trabalhadores e prestadores de serviço seguem desempenhando suas funções sem receber para tanto. Sem falar no risco de outros tantos trabalhadores de empresas que dependem da Acerp de perderem seus empregos e serem colocados na mesma situação

Mas, para além de nossos problemas pessoais, gostaríamos de compreender qual objeção teria um governo com um projeto de comunicação educativa e com a preservação de nosso patrimônio cultural?

A Acerp tem sob seu guarda-chuva projetos da maior relevância para a cultura e a educação brasileiras - a TV Escola, a TV INES e a Cinemateca Brasileira.

A TV Escola tem 25 anos de relevantes e reconhecidos serviços prestados à educação. Ela faz parte da Associação de Televisão Latino-americana e recebeu, ao longo desse tempo, prestigiosos prêmios no Brasil e no exterior.

Além dos programas que transmite, gera conteúdo para ações educativas nas redes sociais. A TV Escola é a herdeira e continuadora do sonho centenário do grande educador Edgard Roquette-Pinto e produz ferramentas importantes para a formação de alunos, professores e profissionais da educação.

Importância esta reconhecida pelos próprios técnicos do Ministério da Educação, quando no ano passado atribuíram nota 9,7 de média para a TV e deram, por escrito, o aval para a renovação do contrato com o Ministério, o que foi ignorado pelo atual titular da pasta.

A atitude de cortar unilateralmente o contrato, inclusive ignorando cláusula contratual de aviso prévio, sacramentou a falência da instituição e condenou centenas de famílias a ficarem sem seu sustento.

A TV Ines é a primeira webTV em Libras (Língua Brasileira de Sinais), com legendas e locução —o que a torna única na proposta de integrar os públicos surdo e ouvinte numa grade de programação bilíngue, já que Libras não é a simples gestualização da língua portuguesa e tem gramática, sintaxe e léxico próprios.

Já a criação da Cinemateca Brasileira remonta ao Clube de Cinema de São Paulo, da década de 1940.

Nos seus mais de 70 anos de lutas por aprimoramento e reconhecimento, foi dirigida por Paulo Emílio Sales Gomes, seu principal fundador e defensor até os anos 1970.

Vinculada à Secretaria do Audiovisual em 2003, o descaso do próprio governo federal em 2013 trouxe impactos diretos, ocasionando o quarto incêndio de sua história, em 2016.

Reconhecida internacionalmente, a Cinemateca abriga e preserva um patrimônio audiovisual imprescindível para a compreensão da nossa cultura e história dos últimos 120 anos. E que sobrevive para a sociedade brasileira, e para o mundo, graças a um quadro de trabalhadores já bastante reduzido, mas com inquestionável expertise voltada para a própria instituição.

A não renovação do Contrato de Gestão implicará tanto a descontinuidade desses profissionais, como dos serviços essenciais de manutenção, segurança, limpeza e brigadista; corte de energia e prejuízos irreversíveis para o acervo e equipamentos, ocasionando a interrupção imediata das atividades da Cinemateca.

Somos profissionais —contratados por regime CLT e com contratos de prestação de serviços— e compreendemos a importância do nosso trabalho para a efetiva cidadania brasileira.

O que explica, inclusive, o nosso compromisso e esforço em manter a TV Escola e a Cinemateca funcionando nos últimos dois meses, mesmo com os pagamentos atrasados.

A TV Ines, embora esteja com os salários em dia, também corre grave risco de extinção se a Acerp acabar.

Trabalhamos para uma Organização Social sem fins lucrativos, fundada em 1995, com uma missão inconteste: promover a inclusão na educação e cultura brasileira e gerar valor agregado para a sociedade.

Pelo que lhes é intrínseco, a TV Escola,a TV Ines e a Cinemateca Brasileira nunca tiveram sua relevância questionada por qualquer governo. Como pode o Governo Federal ignorar algo tão relevante?

Vale ressaltar, que ao suscitar rescindir contratos ou dar calote na Acerp, o Governo também joga fora todo o patrimônio, tangível e intangível, construído até aqui, em mais de décadas, com dinheiro público.

Dito tudo isto, apelamos para que os contratos sejam imediatamente regularizados, trabalhadores readmitidos, salários e benefícios postos em dia e que assim possamos voltar a construir inclusão em nosso país.

Atenciosamente,

Sindicato dos Trabalhadores em Rádio e TV do Rio de Janeiro

Sindicato dos Trabalhadores em Radiodifusão e Televisão no Estado de São Paulo

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro

Federação Nacional dos Radialistas - Fitert

Central Única dos Trabalhadores - CUT

Intersindical - Instrumento de luta da classe trabalhadora."

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