Receita x TV Globo: Advogado analisa "pejotização" de artistas
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O ano de 2020 ficará marcado como aquele em que o governo federal usou alguns expedientes para calar, perseguir ou sufocar seus inimigos. Não é segredo para ninguém que no topo da lista está a TV Globo.
Um desses expedientes tem sido travado no âmbito fiscal: a Receita Federal autou mais de 40 artistas da emissora além da própria.
Na lista de "autuados" estão Deborah Secco, Reynaldo Gianecchini, Malvino Salvador e Maria Fernanda Cândido, por exemplo.
Organização criminosa
Como o site "Notícias da TV" informou com exclusividade anteontem (15), a Receita acusa artistas e TV de "associação criminosa" com o objetivo de fraudar o Fisco.
Globo, em nota enviada a esta coluna em janeiro, afirmou que todos os contratos estão legais.
De forma geral os artistas de TV (não só da Globo) não são contratados com carteira de trabalho. Devido à natureza de seu trabalho eles são prestadores de serviço e registrados em regime de PJ (pessoas jurídicas).
Por quê?
Ora, porque artistas de forma geral não trabalham apenas numa TV. Eles vivem de sua própria imagem também em propagandas, campanhas, no teatro e eventualmente em outras áreas artísticas.
A investigação começou no ano passado. Boa parte dos atores está sendo defendida pelo advogado tributarista Leonardo Antonelli.
Enquanto isso ocorria o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu em outro caso concomitante que "é constitucional a aplicação do regime fiscal e previdenciário de pessoa jurídica a prestadores de serviços intelectuais, inclusive de natureza científica, artística ou cultural."
Esse caso do STF vinha sendo acompanhado também pelo advogado Alexandre Luiz Monteiro, sócio do Bocater Advogados.
A coluna o procurou para que opinasse sobre o assunto.
Embora não possa falar especificamente sobre a autuação dos atores da Globo, ele aceitou comentar a decisão do STF e suas consequências.
Também analisa que "o simples fato dos serviços artísticos serem prestados por meio de pessoa jurídica não poderia ser fundamento para autuação".
Veja a íntegra da entrevista:
Antes de mais nada: doutor, por que o escritório do senhor estava acompanhando o julgamento da controvérsia sobre a Lei nº 11.196/05?
Alexandre Luiz Monteiro - Particularmente, estou acompanhando esta discussão há tempos, desde que se iniciou a celeuma a respeito da possibilidade de prestação de serviços, em especial de natureza personalíssima, por pessoas jurídicas.
Há inúmeras autuações anteriores à inserção da regra do artigo 129 da citada lei (nota: aborda a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo) no Carf - órgão de 2ª instância que julga casos tributários na esfera administrativa - anteriores ao referido texto de lei.
No início, com a inserção do dispositivo, havia muita discussão a respeito da possibilidade de sua aplicação retroativa às referidas autuações, havendo muitos que alegavam que seria uma decorrência lógica do próprio sistema e que, portanto, deteria uma natureza interpretativa.
Tal discussão foi, durante muito tempo, corrente no Carf.
Além do aspecto profissional, haja vista que atuo e atuei em casos deste tipo, também possuía interesse acadêmico no tema, tendo escrito dois artigos a respeito —para comentar os casos do apresentador Ratinho e também o do treinador Luís Felipe Scolari (Felipão).
Essa questão tem sido muito discutida: quando pode ocorrer a "venda" de um serviço por meio de pessoa jurídica ou física. A tal reforma da Previdência não deveria ter solucionado essas questões?
Alexandre Luiz Monteiro - Entendo que são assuntos que andariam de forma segregada, a princípio.
A Reforma da Previdência teve um foco um pouco mais voltado para a parte da fruição dos benefícios e no respectivo regime jurídico.
Aqui há uma discussão interpretativa na legislação tributária, que impactaria o recolhimento do imposto de renda (distinto na Pessoa Física e na Pessoa Jurídica), além de reflexos na base de cálculo e na arrecadação das contribuições previdenciárias sobre a folha de salários.
Para mim, trata-se de um assunto de interpretação, legal e constitucional, dos limites da chamada ?pejotização? para fins tributários, debatendo-se em que casos poderia ser considerada como ilegal ou simulada.
No entanto, com a evolução da sociedade e das relações de trabalho me parece (impressão pessoal) óbvio que muitas vezes o trabalhador é obrigado a ser PJ se quiser sobreviver, não?
Alexandre Luiz Monteiro - O senhor. tem razão quando coloca este ponto de vista. Em muitos segmentos é bastante dificultada a prestação de serviços diretamente por pessoas físicas, justamente em virtude do alto custo de contratação de empregados ou trabalhadores autônomos.
Parece-me, contudo, que a análise deste prisma deveria partir de uma forma mais global, sob o prisma do nosso sistema jurídico.
Há que se separar os casos em que haja simulação na utilização de pessoas jurídicas para prestação de serviços, daqueles em que haja a organização da prestação, em virtude da plena aplicação da livre iniciativa, por meio de pessoa jurídica.
Para mim, muito embora haja esse reflexo social, que inclusive coloca em questão o próprio sistema jurídico e os custos da formação de relação de emprego ou de trabalho, a análise jurídica não poderia considerar um cenário que seja patológico e ratificá-lo apenas em razão de ser o que muitos aplicam na prática.
Há que se separar o que é patológico —mesmo que comum— do que seria lícito e legítimo na organização normal das atividades.
Cabe ao sistema dar respostas rápidas e coibir cenários ilícitos, impedindo que eles se propaguem e se tornem a "regra do jogo".
O STF declarou constitucional a aplicação do regime fiscal e previdenciário de pessoa jurídica a prestadores de serviços intelectuais, inclusive de natureza científica, artística ou cultural. Essa decisão póde ser uma jurisprudência e ter influência em todos os processos que correm sobre o assunto nas diversas instâncias das Justiças (civil e trabalhista)?
Alexandre Luiz Monteiro - Essa decisão foi firmada em uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC 66), tendo o STF, por oito votos a dois, afirmado que o dispositivo é constitucional e deve ser observado.
Tais decisões têm o que se chama de eficácia 'erga omnes'. Isto é, alcançam a todos, sendo vinculante no Poder Judiciário e também à Administração Pública, como dispõe o art. 28, parágrafo único, da lei 9.868/991.
Neste momento, a Receita Federal está em uma disputa com a TV Globo e com artistas e ex-artistas da emissora. Ontem, como o site Notícias da TV revelou, a Receita chega a acusar as duas partes (TV e artistas) de organização criminosa. Tem cabimento isso que está acontecendo?
Alexandre Luiz Monteiro - É difícil me pronunciar sobre fatos e autuações que não possuo informações suficientes.
A autuação, defendida pelos advogados da TV e dos profissionais, é dotada de sigilo fiscal, de modo que seria leviano me pronunciar sobre fatos que desconheço.
Em todo caso, o que se pode afirmar é que o simples fato dos serviços artísticos serem prestados por meio de PJ não poderia ser fundamento para autuação.
Entendo que a legitimidade da autuação dependeria da demonstração de abuso de personalidade jurídica, caso em que caberia a efetiva demonstração e observância das regras do art. 50 do Código Civil (2), ou na hipótese de restar patente a tentativa de ocultação de vínculo empregatício entre prestador e empregador (cf. art. 3º da CLT3).
A Receita Federal, no âmbito de sua atuação, deteria poderes para aferir a existência dos referidos vínculos para fins exclusivos de apurar a regularidade da arrecadação, notadamente à Seguridade Social, na medida em que consiga demonstrar, cabalmente, que a constituição da pessoa jurídica ocultou a efetiva existência do referido vínculo, isto é, que houve simulação em sua utilização
Isso ocorre, na maioria das vezes, quando se verifica a existência de 'subordinação' entre o prestador e o tomador dos serviços, o que, em muitos dos casos, não é efetivamente demonstrado na autuação, ao menos naquelas em que analisei.
Há também alguns que argumentam que a Receita está entrando na área da Justiça do Trabalho e na das relações pessoais e profissionais da sociedade...
Alexandre Luiz Monteiro - Vide resposta acima. Entendo que há competência da Receita Federal no que se refere à aferição da regularidade da arrecadação dos tributos.
Há competências distintas e complementares buscando formar uma unidade no sistema jurídico.
O senhor acha que essa nova decisão do STF poderia por fim a essa acusação da Receita contra Globo e artistas?
Alexandre Luiz Monteiro - Novamente, não conheço detalhadamente os casos sujeitos à autuação neste momento.
Caso a autuação tenha sido lastreada no simples fato de se tratar de um serviço personalíssimo, entendo bastante dificultada a manutenção dos autos de infração, na medida em que seria aplicável o art. 129 da Lei n.º 11.196/05.
De todo modo, há que se aferir, em cada caso específico, a existência de elementos que possam apontar para uma simulação.
Novamente, personalidade jurídica é uma ficção criada pelo ordenamento no âmbito da ordem econômica, e em linha com a livre iniciativa.
Não há —ou não deveria haver- uma análise de qual ou quais serviços, em essência, poderiam ser prestados por PJ, na medida em que cabe à lei determinar o alcance disso.
O que deve haver, por óbvio, é uma avaliação e segregação dos casos ilícitos daqueles legítimos e legais, o que é fato caso a caso.
Ressalto, novamente, que há uma gama de casos julgados pelo Poder Judiciário e, em especial, pelos órgãos administrativos como o Carf, relacionados ao tema.
Certamente a decisão é bastante relevante na determinação de que a constituição da PJ, por si, não seria abusiva, cabendo a análise casuísta da existência, ou não, de simulação ou abuso na utilização da personalidade jurídica.
Vamos tentar um exemplo prático: sou jornalista e músico. O STF (por meio de sua decisão) garante que eu posso prestar serviços de jornalista e pianista como PJ? É isso?
Alexandre Luiz Monteiro - Não é exatamente isso.
Na realidade, não cabe ao STF a análise de fatos e provas, por ser um órgão voltado à guarda da Constituição.
O que o STF faz, e fez neste caso, foi aferir se determinada regra da legislação está ou não em consonância com a Constituição.
Isso pode ser feito de forma concentrada - isto é, nas ações diretas de inconstitucionalidade ou declaratórias de constitucionalidade, como foi o caso da ADC 66 - hipótese em que seus efeitos serão 'erga omnes', ou de forma específica, quando em um caso tenha havido ofensa à Constituição na aplicação do direito.
No caso específico, o STF entendeu que a regra em questão é constitucional, não podendo ser questionada a possibilidade de prestação de serviços personalíssimos, intelectuais, artísticos, entre outros, por meio de pessoa jurídica, entendimento este que, a meu ver, está correto e consistente com o nosso ordenamento jurídico.
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