França celebra 100 anos de Clarice Lispector com box especial que mostra fascínio pela escritora
"Um grito lançado em uma língua poética loucamente inventiva, mas de grande simplicidade". A frase, publicada na revista francesa Télérama, ecoa o fascínio do público francês com a literatura de Clarice Lispector, desde a década de 1970. Para celebrar os 100 anos do nascimento da escritora brasileira, a mítica Éditions des Femmes lança uma caixa especial com a versão francesa de "A Paixão segundo GH" e "A Hora da Estrela".
A RFI conversou sobre a homenagem com a escritora francesa Hélène Cixous, com o filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente, e a editora francesa da caixa, Christine Villeneuve.
Clarice Lispector já havia terminado sua jornada poética nesse mundo quando Antoinette Fouque, à frente da histórica Éditions des Femmes, em Paris, publicou, em 1978, a primeira versão francesa de "A Paixão segundo G.H".
"Antoinette encontrou no texto de Clarice uma dimensão que nunca havia visto em lugar algum. Este centenário é uma nova possibilidade de homenagear esta imensa escritora, que é, para nós, uma das maiores vozes da literatura do século 20", afirma, categórica, Christine Villeneuve, a editora francesa que assina a direção desse "coffret", a caixa comemorativa do centenário de Clarice Lispector na França.
Vale lembrar que o emblemático texto de "A Paixão segundo G.H." mereceu outras duas aparições pela Éditions des Femmes: uma reedição em 2014, e uma nova tradução para o box do centenário, em 2020.
Villeneuve explica a escolha editorial dos elementos do "coffret": "São dois textos emblemáticos da pesquisa experimental sobre o trabalho de Clarice Lispector. A Paixão segundo G.H. é o texto que a tornou conhecida fora do Brasil, a partir dos anos 60 e é também o primeiro texto que a Éditions des femmes publicou de Clarice, em 1977", argumenta.
"Neste texto especifico, podemos dizer que está o âmago da pesquisa experimental de Clarice, desta busca da verdade do que existe até mesmo antes das palavras, ecoando a história pessoal da autora, sua relação com a mãe, uma história que também se encontra presente na nordestina pobre de A Hora da Estrela, de sua primeira infância no Recife", aponta a editora francesa.
Villeneuve avalia a evolução da predileção do público francês pela escritora brasileira. "Até publicarmos a biografia de Clarice Lispector, havia um público apaixonado, mas sobretudo universitário, que fazia trabalhos de pesquisa sobre ela e sua obra. Mas hoje esta audiência se expandiu e eu acredito que estamos descobrindo a verdadeira literatura de Clarice em sua dimensão mais ampla", afirma a editora. "As crônicas, novelas e a integralidade de sua correspondência que publicamos traz ao público francês a riqueza e o caráter polimórfico de sua obra", acredita.
Figura icônica de Maio de 68 na França e criadora do primeiro Doutorado em Estudos Femininos da Europa, em 1974, a escritora Hélène Cixous foi talvez a primeira personalidade a introduzir o nome e a obra de Clarice Lispector nas rodas intelectuais da França. "Acredito ter sido a primeira a falar sobre ela por aqui. Em 1975, eu tive a sorte de ser contactada por uma jovem pesquisadora brasileira, Regina Prado, que me disse que gostaria de fazer uma tese sobre Clarice Lispector. Nesse momento, pensei: puxa, não sei de quem se trata", lembra Cixous.
"Não havia grande coisa dela na França, apenas A Maçã no Escuro, publicada pela Gallimard, mas, nesse momento a Éditions des Femmes lançou uma antologia chamada Brésiliennes, com textos de autoras brasileiras, onde encontrei três ou quatro páginas de Clarice pelas quais fui completamente capturada. Eu me disse que ou se tratava de um acidente milagroso, três páginas que eram como diamantes, ou senão era mesmo uma grande escritora", afirma a francesa.
Trata-se de alguém absolutamente única, imensa, e que, aliás, preenchia naquele momento um desejo que eu tinha - eu precisava desesperadamente ver uma mulher escrevendo com a potência de pensamento dos grandes escritores homens. Eu não encontrava isso. Eu diria que Clarice se trata, utilizando um termo neutro, da grande escritura", diz Cixous.
Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, escreveu um posfácio especial para a edição comemorativa no centenário da escritora em terras francesas, onde relembra uma Clarice com tonalidades sociais."Uma surpresa, caso não houvesse referências precisas sobre sua vida". Valente destaca no texto o prefácio de Eduardo Portella para a primeira edição de A Hora da Estrela, que cita "o coração selvagem comprometido nordestinamente com o projeto brasileiro".
"O meu posfácio para o livro fala sobre questões que sublinham a preocupação social da Clarice Lispector", conta Paulo em entrevista à RFI. "Por acaso, esses dois livros que foram escolhidos têm preocupações sociais. A Hora da Estrela fala de uma pessoa desprotegida pela metrópole brasileira e a Paixão segundo G.H. também fala, com um pouco menos de força, de uma discriminação entre classes sociais. Os dois livros também foram escolhidos [para compor o box] porque são muito significativos na obra dela", afirma.
"A Paixão segundo G.H. ganhou este ano um filme [com a atriz Maria Fernanda Cândido], a partir do texto de Clarice. Este filme será exibido na França e o romance está com uma nova e muito interessante tradução [para o francês]", diz Valente.
"Ela sempre se afirmou como uma brasileira, é verdade", lembra Hélène Cixous. "Em sua vida pessoal, ela se casou com um diplomata brasileiro, e existem traços brasileiros em suas obras. Por exemplo, a descrição que ela faz da sociedade brasileira daquela época, com as mulheres burguesas e suas empregadas, com relações de classe muito definidas. Mas para mim, a obra de Clarice faz parte de um grande imaginário universal", finaliza a autora francesa.
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