Topo

Manuscrito de 'A Hora da Estrela', de Clarice Lispector, é publicado na França

A escritora e advogada ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector - Reprodução
A escritora e advogada ucraniana, naturalizada brasileira, Clarice Lispector Imagem: Reprodução

03/05/2021 09h33

A nordestina Macabéa - e suas desventuras como datilógrafa no Rio de Janeiro - acaba de ganhar as ruas de Paris. A responsável pela proeza é a editora francesa Les Saint Pères especializada na publicação de manuscritos de grandes nomes da literatura e da ciência mundial. Restaurados, os rascunhos de Clarice Lispector deram origem a uma bela edição de luxo, um livro-objeto fenomenal de grandes proporções. O lançamento figura a partir desta segunda-feira (3) no catálogo da Les Saint Pères, num lançamento conjunto na França, Portugal e no Brasil.

No catálogo da editora Les Saint Pères (SP Edições, na versão em português), constam manuscritos como os de "A Peste", de Albert Camus, "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf, "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust e até mesmo da Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. O manuscrito de "A Hora da Estrela" se torna o primeiro texto de língua portuguesa publicado pela Les Saint Pères, um rastro tardio das comemorações do centenário da escritora brasileira Clarice Lispector no mundo.

Depositários da memória, os manuscritos são publicados em fac-símile, para oferecer ao leitor a reprodução mais fidedigna possível da obra original. A cada publicação, é realizado um trabalho de restauração gráfica comparável a uma restauração de arte, uma vez que o papel é uma matéria viva e a passagem do tempo muitas vezes imprime no mesmo uma marca indelével. Segundo Jessica Nelson, co-fundadora da editora, o objetivo é "restituir a escrita à mão à sua aparência original, como se a tinta tivesse acabado de secar no papel".

"É também uma maneira de devolver uma espécie de nobreza ao objeto-livro. Não negamos a modernidade, prova disso é que funcionamos muito bem por meio de nosso site e dos serviços online, mas o manuscrito recupera essa aura nobre da escritura", pondera a editora.

Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice, integra o lançamento tendo aberto os arquivos de sua mãe para a recuperação dos manuscritos, mas também participou da elaboração do texto que acompanha a publicação. "Conheço a obra de Clarice há um bom tempo, graças às Éditions des Femmes, e Paulo nos deu acesso às imagens do manuscrito de 'A Hora da Estrela', ele gostaria que o material fosse publicado. O trabalho é fruto deste encontro. Nos encontramos em Paris há alguns anos e depois o trabalho continuou a ser feito por minha equipe, sempre consultando o Paulo durante o estudo do material. Não quis acelerar o processo para coincidir com as comemorações do centenário, queria que o projeto existisse em seu próprio tempo", conta.

Jessica Nelson conta que o manuscrito permite que os leitores descubram a obra de um autor de uma maneira inédita. "Com as anotações, é possível encontrar e decifrar a origem dos trechos que mais nos marcaram nas obras dos autores que gostamos, e a maneira como esses trechos foram concebidos. É uma descoberta incrível que nos dá a impressão de estarmos mais próximos do autor", diz. "É uma experiência de leitura extraordinária, temos a impressão de redescobrir o texto, é uma outra experiência de compreensão do texto, porque o manuscrito mostra a maneira como a frase foi trabalhada anteriormente", complementa.

Trabalho memorial

Numa era que os escritores praticamente não usam mais a caligrafia para escrever seus livros, a publicação de manuscritos ganha uma aura memorial, restaurando o processo criativo da escrita para os leitores, sobre os escritores de uma época que não existe mais. "Clarice tinha um jeito binário de elaborar seu texto. Ela tinha uma escritura contínua, uma escritura de trabalho, ela escrevia a história por blocos, mas, na sequência, havia também uma tomada de notas a qualquer momento do dia, em qualquer circunstância. Nota-se que a versão final do texto, em seu livro, é, finalmente, uma adição destas notas à sua escritura", conta a editora, que contou com a ajuda de uma especialista brasileira para estudar o texto em português.

Para Nelson, o manuscrito de "A Hora da Estrela" seria o encontro entre o trabalho do escritor, e o escritor em seu cotidiano, uma vez que Clarice costumava fazer suas anotações em cartões de visita, guardanapos ou qualquer pedaço de papel que visse pela frente. "Mesmo quando ela não estava trabalhando, sua imaginação continuava funcionando", diz.

"O objetivo de nossa editora especializada na publicação de manuscritos é mostrar o trabalho do escritor sob um outro ângulo. Um manuscrito é uma matéria viva, ao contrário da versão definitiva das obras publicadas, que são fixadas por escolhas editoriais, pelo trabalho do editor junto ao autor etc. O manuscrito pertence a esse estágio anterior que tem qualquer coisa de emocionante, porque é ali que entramos no laboratório do escritor e compreendemos certas escolhas, questões, dúvidas", lembra Jessica Nelson.

"Entendemos, por exemplo, em que momento o escritor se irritou, estamos falando da genética da escritura, de como partimos de um rascunho em direção à obra. Esta ideia de mostrar a 'cozinha' dos escritores nos agrada muito na Les Saint Pères", diz. "O manuscrito também oferece chaves de leitura diferentes. Vemos, por exemplo, no manuscrito de Clarice, uma alternância de pronomes pessoais na figura do narrador. Isso levanta várias questões de compreensão de sua obra e é uma coisa que, é claro, não vemos na versão final publicada. Mas o manuscrito coloca em evidência essa confusão e mostra como a autora se identificava neste livro", aponta a editora francesa.

O manuscrito de "A Hora da Estrela" pode ser adquirido no site da Les Saint Pères, num lançamento conjunto no Brasil, na França e em Portugal.