Só sei que foi assim!

Com tiroteios, bar e 'crise' de viúva, fenômeno do cinema brasileiro virou sertão paraibano do avesso

Weslley Neto e Bruno Lira De Splash, em São Paulo, e colaboração para Splash, de Cabaceiras (PB) Bruno Lira
Arquivo pessoal
Igreja central de Cabaceiras, local em que foram gravadas cenas importantes de "O Auto da Compadecida"

Cabaceiras (PB) deixou de ser apenas uma pacata cidade do sertão paraibano, localizada a 166 km de João Pessoa, após ser escolhida para representar Taperoá (PB) como cenário de "O Auto da Compadecida" em outubro de 1998. O elenco da então minissérie, adaptada para os cinemas em 2000, permaneceu na cidade por cerca de 30 dias.

Desde o nascimento do "fenômeno" do cinema brasileiro, Cabaceiras é considerada a "Hollywood" nordestina. Outras 50 obras, entre documentários, novelas, séries e filmes nacionais, também escolheram Cabaceiras para a realização de gravações Uma das obras mais recentes foi "Onde Nascem os Fortes", série da Globo exibida em 2018.

A presença da equipe dirigida por Guel Arraes gerou transformações na cidade. Nem todas as ruas eram pavimentadas, e não havia preocupação com a preservação arquitetônica antes das filmagens. As mudanças também foram comportamentais — era o primeiro contato da maioria dos moradores com o universo cinematográfico.

Splash relata histórias contadas por quatro pessoas que conviveram com atores, produtores e equipe de filmagem de "O Auto da Compadecida". O grupo, que ainda vive na cidade, conta como foi a passagem de Selton Mello, Matheus Nachtergaele e companhia pelo sertão paraibano.

O projeto começou com uma "operação especial". Para abrigar o elenco e a equipe de 65 pessoas, foram alugadas 12 casas, duas fazendas, um rancho e todas as acomodações de um hotel em Boqueirão (PB), cidade vizinha localizada a cerca de 20 km de Cabaceiras.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal
Reprodução

Efeitos especiais?

Manoel Batista de Lima, 78, é nascido e criado em Cabaceiras (PB). O marceneiro foi mais do que um figurante na obra, pois trabalhou na montagem de móveis usados pela produção.

Conhecido como Manoel de João Preto na cidade, ele fez parte do grupo de cangaceiros liderado por Severino de Aracaju (Marco Nanini). O papel exigiu disciplina e paciência de quem não era acostumado a trabalhar como ator.

"Quando uma cena não dava certo, retomávamos do início. Ficávamos o dia inteiro em um sol quente para aproveitar uma sequência. Chegávamos às 4h para a maquiagem", lembrou Manoel sobre a exaustiva rotina de gravações.

Manoel acompanhou de perto a cena em que João Grilo (Matheus Nachtergaele) é baleado por Joaquim Brejeiro (Enrique Díaz), um dos capangas de Severino de Aracaju, na porta da igreja. Ele também acompanhou o momento em que Chicó (Selton Mello) usa a gaita para enganar os cangaceiros, simulando a ressurreição de Grilo.

Foram usados fuzis antigos da polícia local nas cenas que mostram a invasão dos cangaceiros. Atirávamos para o alto, evitando qualquer risco de erro. Era tudo de verdade. O tiroteio comia no centro da cidade.

Manoel Batista de Lima, marceneiro

O choro da viúva

Cheguei em casa depois do serviço, e uma moça passou na frente da minha casa perguntando se eu ia trabalhar na Globo. [...] Fui escolhida, e depois descobri por um bilhete que eu faria uma viúva, e rezaria um terço ao lado de Rogério Cardoso.

Iraci Soares Nunes

Bruno Lira
Rogério Cardoso posou para foto com Iraci nos bastidores de "O Auto da Compadecida"

Iraci Soares Nunes, 70, perdeu o marido sete meses antes das gravações de "O Auto da Compadecida". A produção não sabia da perda antes de a convidar para fazer este papel como figurante na obra. Ela acompanhou e até chorou no falso enterro de João Grilo, que fingiu estar morto diante do padeiro Eurico (Diogo Vilela). A cena foi cortada da versão final do filme, mas faz parte da minissérie.

Durante as gravações, ela acompanhou Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) na cena em que eles cavaram uma cova. Selton, inclusive, passou uma pomada nas mãos de Iraci quando ela foi picada por um marimbondo. "Foi o dia em que eu mais chorei. Só imaginava os meus seis filhos, que deixei em casa. Como uma mãe poderia fazer aquilo?"

As conversas com o elenco ajudaram Iraci a lidar com a perda do marido. Segundo o relato, ela até aprendeu a oração do Pai Nosso em conversas com o ator Rogério Cardoso, que interpretava o Padre João na trama. O ator morreu em 2003, aos 66 anos, após sofrer um ataque cardíaco.

Selton e Matheus me chamaram para almoçar na mesa com eles. Eu não tive coragem de olhar para os atores, chorava a todo instante. Foi uma coisa marcante para todos.

Iraci Soares Nunes

'O Auto da Compadecida' mudou a minha vida. Eu estava no fundo do poço. Eu vi que tinha coragem de enfrentar a vida, sem deixar os meus filhos desamparados. Só eu sei o que passei.

Iraci Soares Nunes

Bruno Lira Selton Mello atendendo crianças em Cabaceiras (PB) nos bastidores de "O Auto da Compadecida"

Selton Mello atendendo crianças em Cabaceiras (PB) nos bastidores de "O Auto da Compadecida"

Inspiração

Uivo Ferreira tinha conversas engraçadas, sem pé e nem cabeça. [...] O próprio Matheus Nachtergaele usou algumas das características fisionômicas do Ivo para incorporar em seu personagem.

Norberto Castro, historiador

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O historiador Norberto Castro, que conheceu Matheus Nachtergaele durante o período de gravações, lembra que o artista se interessou pela história de Uivo Ferreira.

A aproximação entre o ator e o morador marcou a intensa relação de Matheus com a cidade. Uivo morreu aos 49 anos em julho de 2024. O Hospital de Trauma em Campina Grande (PB) confirmou a informação em nota oficial, mas não divulgou a causa da morte.

"Isso nos deu uma visibilidade diferente, de que os atores da Globo também eram pessoas simples, sem frescura no trato", contou Norberto em papo exclusivo para Splash.

Matheus e Uivo conversavam com frequência após as filmagens. "Atores se comportavam normalmente entre as pessoas, até fazendo algumas brincadeiras. Tomavam uma 'cachacinha', comiam um aperitivo. Contavam algumas histórias, e deixavam o ambiente muito familiar", relatou Norberto.

"Preservamos com muito carinho a imagem da Compadecida, e também o interior da igreja. Alguns cenários foram desmontados após as filmagens. Porém, foi construída uma réplica da padaria de Eurico", concluiu o historiador.

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Paulo virou soldado entre figurantes de "O Auto da Compadecida"

Filme virou bar

Cerca de 90% dos moradores de Cabaceiras trabalharam como figurantes, segundo o historiador Paulo Campos, 60. Na época, a Secretaria de Cultura do município foi responsável por buscar pessoas para a figuração da então minissérie da Globo.

Paulo foi um dos soldados de Cabo 70 (Aramis Trindade) e também apareceu de relance em uma das cenas gravadas no bar de Vicentão (Bruno Garcia). Como lembrança, ele guarda o "bibico" —chapéu usado pelo então patrão militar na trama.

Na época, foi fundado um bar e churrascaria chamado "O Auto da Compadecida". O espaço pertencia a Alzira Mendes, conhecida como Alzirinha na cidade, e funcionou por apenas dois meses, entre outubro e dezembro de 1998. "E lá, todos se juntavam. Figurantes, elenco principal, atores e diretores. E assim foi criado um elo de amizade."

Matheus Nachtergaele gostava de caminhar sozinho pelas ruas de Cabaceiras. Era como se morasse havia muitos anos na região, conforme o relato. Não se parecia nada com um dos principais atores brasileiros que ele já era na ocasião.

O filme marcou época de "aprendizado" na cidade, segundo Paulo. "Não sabíamos nada sobre cinema e TV. Essa convivência diária com os atores quebrou alguns tabus que existem até hoje em cidades interioranas —a aceitação de comportamentos até de ordem sexual, por exemplo."

Durante a noite, geralmente, todos se reuniam para tomar uma cervejinha, tomar uma cachacinha. Tudo regado à carne de bode, como sempre foi. [...] Não pareciam atores ou atrizes, mas sim pessoas comuns.

Paulo Campos

Bruno Lira Imagens de Cabaceiras (PB) em 2024

Imagens de Cabaceiras (PB) em 2024

O que moradores de Cabaceiras (PB) acham de um segundo filme de 'Auto da Compadecida'?

Curioso para assistir, fico chateado por não filmarem aqui. Mas também fico satisfeito, alegre. O primeiro filme é insuperável. O segundo não terá tanto sucesso.

Norberto Castro

Estou muito ansiosa para assistir. Quero que seja bem-sucedido. E quero agradecer muito ao Selton e ao Matheus, porque foi com eles que tive mais contato. Eu os vi cavando uma cova.

Iraci Soares Nunes

O que vem depois, vem depois. Acredito que não fará tanto sucesso igual ao primeiro. Mas é uma nova roupagem, também baseada em Ariano Suassuna.

Paulo Campos

Eu não vi nada até agora, mas acho que vai fazer sucesso também. O pessoal gosta demais. A história é importante e muito boa.

Manoel Batista de Lima

"O Auto da Compadecida 2" estreia nesta quarta-feira (25) nos cinemas. Além dos protagonistas Selton Mello e Matheus Nachtergaele, Virgínia Cavendish retorna com a personagem Rosinha. Taís Araújo foi a escolhida para assumir o papel de Nossa Senhora, antes interpretada por Fernanda Montenegro.

A sequência não foi gravada em Cabaceiras. Agora com uso da tecnologia, a mística Taperoá (PB) de "O Auto da Compadecida" foi recriada em estúdios no Rio de Janeiro. "Até pedimos para que gravações fossem realizadas na Paraíba, mas não conseguimos", conta a Splash Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano.

Laura Campanella Laura Campanella
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