Cadê o amor?

Canções românticas desaparecem das paradas de sucessos da música brasileira. Será que o amor saiu de moda?

Breno Boechat Colaboração para Splash Arte UOL

O ouvinte apaixonado que, em plena Semana dos Namorados, abre a lista das mais tocadas do Brasil pode ficar frustrado. Se estiver atrás de uma música para dedicar à pessoa amada, é pegar ou largar: só "Disco Arranhado", na versão de DJ Lucas Beat e Malu, representa as canções de amor entre as 50 primeiras.

Expandindo um pouco a lista do Spotify até as 100 mais tocadas do Brasil, o rolê não fica muito mais romântico. A parceria de Lucas e Malu ganha a companhia de só mais duas músicas dignas de embalar uma história de amor daquelas de novela: "Espetinho", de Gusttavo Lima, e "Leave the Door Open", de Anderson Paak e Bruno Mars.

Muito pouco, ainda mais se a gente comparar, por exemplo, com as músicas mais tocadas do Brasil em 2003. Enquanto os Black Eyed Peas perguntavam "onde estava o amor", por aqui o que bombava eram românticas, como "Velha Infância" e "Dois Rios".

Afinal de contas, onde estão os novos hits de amor?

Nas posições de destaque das paradas, o tema aparece, mas não romantizado. Amor aqui só se for com sofrência, dor de cotovelo, saudade, bebida e farra —como num ciclo natural da fossa até a superação. São esses os assuntos mais frequentes nos hits do momento. Isso sem falar do sexo, que também faz muito sucesso.

Falar sobre amor ainda dá hit?

Os amores felizes e os eu-líricos apaixonados —sempre tão presentes na música popular por aqui— praticamente desapareceram das listas de mais tocadas, mas as canções românticas não deixaram de existir. Um dos grandes especialistas no assunto, aliás, acaba de lançar uma love song daquelas!

Em "Hit", Lulu Santos conta a história (de amor, claro) dele e do marido, Clebson Ferreira. A canção, ele conta, nasceu de um sonho bom, de quem sonha apaixonado.

'Hit' vem de um momento de semiconsciência. Eu tive um sonho muito bom, reparador. Acordei com essa ideia formada de que a minha relação com o Clebson é um grande acerto, algo que me traz muito esclarecimento e benefícios em muitos aspectos da minha vida. É além da proximidade, do carinho, do amor. Uma coisa que eu sempre estive atrás de ter: completação e reciprocidade. Lulu Santos

O amor e a paixão como inspiração também não saem de moda. O próprio Lulu, que entende um bocado do tema, diz ver "arte em tudo" quando está apaixonado.

Daqueles que ficam até meio bobos de tanto amar, sabe?

Quando você está com a sensação da paixão, do apego, sobretudo quando você está descobrindo aquilo, você vê arte em tudo. Você olha o pôr do sol e quer compartilhar aquilo com outra pessoa; ouve uma canção, aquilo te afeta e você pensa na outra pessoa. A paixão é um estado de exaltação. Ela faz a gente ficar até um pouco bobo, mas, caramba, se esse for o preço para sentir o que a gente sente, por mim, tudo bem.

Lulu Santos

Arte em foto de arquivo pessoal

Quando o amor não encaixa...

Nando Reis é um compositor que teve que "dar seus pulos" para colocar canções românticas na rua.

O último som novo que ouviu, por sinal, foi justamente o novo single de Lulu.

"A forma como eu ouço música não está relacionada exatamente com o que são os lançamentos, mas a última que eu ouvi assim que saiu foi 'Hit', do Lulu, que é uma canção de amor", conta Nando, que não pôde explorar tanto o tema como membro dos Titãs.

No início da década de 1990, o amor era "assunto proibido" nos Titãs, que preferiam abordar outros temas em suas canções. Nando também queria experimentar outras ideias musicais, entre elas tocar violão e —por que não?— cantar umas românticas.

Eu estava muito empenhado em encontrar uma linguagem como compositor, e as coisas não encaixavam com a banda. Fiquei mais voltado para aquela realização, porque, claro, é muito frustrante você fazer uma coisa que a sua própria banda não usa.

Para resolver essa angústia, Nando deu início a um trabalho solo e a uma série de parcerias com nomes como Samuel Rosa, Marisa Monte e Cássia Eller.

E, dessa iniciativa, saíram canções que viraram clássicos e que contemplam as mais diversas conotações do amor, como "Ainda Lembro", "Resposta", "E.C.T." e tantas outras.

Arte em foto de Leo Avesa/Divulgação

Os últimos românticos ainda estão por aí

Apesar da escassez de hits novos, o amor não deixou de ser um tema recorrente na música brasileira. Se hoje só há uma romântica no Top 50, não é difícil lembrar pelo menos três ou quatro nomes que, nos últimos anos, apareceram com canções desse tipo e caíram no gosto do povo.

As canções da Anavitória, do Melim, do Vitor Kley —pessoas com quem eu tenho trocado— basicamente têm um tom muito romântico e estão presentes nas paradas de sucesso. Lulu Santos

Lulu tem razão. Alguns fenômenos das love songs chamam a atenção nesse rolê das paradas de sucessos. Os niteroienses do Melim, por exemplo, costumam se dar bem quando o negócio é cantar sobre o amor.

Em plena era do streaming, com uma enorme quantidade de novas músicas toda semana, uma acirrada concorrência faz os sucessos durarem menos tempo na crista da onda. "Meu Abrigo", lançada pelo trio de irmãos em 2018, é uma exceção num cenário de hits tão efêmeros.

Mais de três anos depois, a faixa ainda é uma das músicas mais tocadas das rádios no Brasil e sempre descola uma vaga no Top 200 do Spotify, ranking mais cobiçado pelo mercado fonográfico atualmente.

A canção "Tu (Trevo)", da Anavitória, dupla também lembrada por Lulu, é outra que ainda "performa" —para usar um termo comum na indústria— bem em charts e playlists, cinco anos depois de ter sido lançada.

Quem não viveu um grande amor ainda vai viver e vai se identificar com alguma música dessas. É por isso que elas duram tanto tempo. São como os grandes amores, que não acabam. As pessoas estão carentes de novas músicas românticas. Quando vão procurar uma playlist, vão logo em quê? No Melim, no Luan Santana, no Lulu...Porque sabem que eles cantam o amor e cantam bem, né?

MC Marcinho

Arte em foto de Leo Avesa/Divulgação

Se quiser falar de amor?

Fale com o Marcinho. Ou então chama pro feat!

Um cara que entende de hits de amor "não-perecíveis" é MC Marcinho.

Quem atualiza o bordão clássico do funk é o próprio cantor. A frase surgiu no hit "Glamurosa", lançado em 2002. Naquela época, com 25 anos, ele já era chamado de "Príncipe do Funk".

Eu já vinha de muitas músicas românticas estouradas e pensei: 'Pô, eu sou um especialista no assunto, né?' Então, se quiser falar de amor, é só falar comigo!

Quase 20 anos depois, Marcinho segue firme no estilo romântico, agora apostando em novos sons, como mistura do funk com o trap e com o reggaeton.

MC Marcinho não acha que o amor, como tema de música, tenha saído de moda.

Na opinião dele, a "molecada" —do funk, principalmente— é mais ousada, mas não deixa de falar de amor quando, por exemplo, canta sobre sexo.

"As letras ficaram um pouco mais pesadas, né?", comenta Marcinho. "Aquela essência do amor puro, de chamar de 'meu docinho, minha gatinha', não tem mais. Hoje é 'potranca', 'popozuda', 'vou te pegar daqui e dali'. Acho que às vezes passa um pouco do ponto."

O rótulo

Mas tem outro ponto, além da dificuldade do mercado, que incomoda quase todos os artistas que cantam sobre o amor: justamente o rótulo de cantor romântico.

A ideia do cantor romântico é que ela é muito redutora e tem uma conotação de preconceito. Mas eu também sou um cantor e um compositor que canta sobre o amor e fico feliz de ser lembrado assim. Nando Reis

Entre as mais de 500 composições, Nando já fez músicas que tratavam de muitos outros temas. E, mesmo quando o assunto é amor, a pluralidade de sentidos da palavra é uma inspiração quase inesgotável.

Não gosto da ideia de que a música romântica está fechada no conceito de duas pessoas numa espécie de sonho idílico, como se aquilo fosse o ideal. Se você acha que o amor é só isso, está completamente empobrecido. Nando Reis.

Mas há também quem tire proveito do tal rótulo de cantor romântico. MC Marcinho conta que, para ele, o carimbo acabou servindo como uma arma para lutar contra o preconceito.

Ajudou mais do que atrapalhou. O fato de eu ser um MC romântico abriu muitas portas para mim. Fiz show em praças em que o funk não entrava, porque o preconceito era grande. Como eu falava de amor, sofri menos que meus parceiros. MC Marcinho

O filósofo, sociólogo e professor de comunicação Márcio Tavares D'Amaral explica a quebra de expectativa que acontece quando um artista romântico resolve cantar sobre outro assunto.

"A gente pode pensar no cantor romântico —ou em todos esses que levam rótulos— como um personagem feito para ser consumido. A questão é o sujeito gostar ou não de ser consumido dessa forma. O nosso desejo de consumo é aquele e, de repente, ele 'trai a sua confiança' fazendo algo diferente."

Sinal dos tempos?

Para tentar entender o "sumiço" dos novos hits de amor vale a pena também analisar o contexto. E aí o panorama não é nem um pouco amoroso.

Márcio Tavares D'Amaral vê uma possível relação entre o desaparecimento do romantismo e uma transformação da sociedade. "Nos últimos 20 anos, estamos observando uma desestruturação da ideia de um sujeito que seja um 'eu cheio' diante de um outro sujeito que também seja. A relação amorosa entre duas pessoas é essencialmente uma relação de comunicação."

Outro ponto importante do contexto atual que precisa ser levado em conta é o momento de dor e sofrimento pelo qual muitas pessoas estão passando por conta da pandemia da covid-19. MC Marcinho é do time dos que pensam que, em tempos difíceis como estes, falar de amor é ainda mais importante e revolucionário.

É difícil para caramba. Mas, para sair da dor, somente com amor. Eu sou da tese de que devemos sempre amar e essa pandemia me ensinou a amar ainda mais.

No campo da sociologia e da filosofia, Márcio Tavares D'Amaral destaca o "papel fundamental" que as músicas de amor —e quem as canta— têm na nossa cultura.

"É uma tarefa de resgate dos valores de uma civilização que sempre se quis amorosa, relacionada com o outro. Da ideia de que existe o outro e eu preciso dele. É importante que se cante sobre essa essência da relação amorosa, porque se todo mundo silenciar, vence o ódio, vencem as polarizações e o desamor."

Topo