Protagonista empoderada

Maria Ângela de Jesus conta como superou as adversidades para se tornar uma referência na produção para TV

Laysa Zanetti De Splash, em São Paulo Mariana Pekin/UOL

Séries?! Como assim, séries?

Aos risos, Maria Ângela de Jesus lembra que esta foi a sua reação quando um então executivo da HBO telefonou comunicando que o canal começaria a produzir ficção para a TV no Brasil.

"Séries! Tipo 'Família Soprano' e 'Sex & the City'", explicou Luis Peraza à época Vice-Presidente de Produções Originais. "E eu aqui, do outro lado do telefone, desesperada."

Produtora de televisão com mais de 20 anos de mercado, Maria Ângela de Jesus é o nome por trás das primeiras séries brasileiras da HBO.

Sucessos como "Filhos do Carnaval", "Magnífica 70", "Mandrake", "Alice", "Psi" e "O Negócio" tiveram seu envolvimento e seu crivo, antes de ela migrar para a Netflix em 2017 e ajudar a plataforma de streaming a estabelecer relacionamento com nomes do porte de Manu Gavassi, KondZilla e Camila Morgado, tendo levado à frente séries como "Coisa Mais Linda", "Bom Dia, Verônica" e "Irmandade".

Hoje, Maria Ângela é diretora sênior de produção da VIS Américas, divisão internacional da ViacomCBS, e tem como missão desenvolver novos produtos que conversem diretamente com o interesse do público em conteúdo nacional.

Mas sua trajetória até chegar ao audiovisual é tortuosa. Primeira pessoa de sua família imediata a ingressar na faculdade, Maria Ângela é formada em jornalismo e cultivava, antes de mais nada, uma paixão pela literatura que a transformou em uma criança autodidata em francês.

O jornalismo que a levou para a crítica de cinema e a cobertura de festivais internacionais fez com que ela carregasse consigo o compromisso de jamais abandonar as suas raízes - uma lição que recorda ter retirado, às avessas, do livro "Olhai os Lírios do Campo", de Érico Verissimo.

Por isso, acredita que a diversidade de vozes e histórias no audiovisual é um passo em constante evolução, e leva essa meta para seus projetos pessoais e profissionais. Em entrevista para Splash, ela fala sobre carreira, pioneirismo na produção independente no Brasil e como separar trabalho e lazer quando se senta em frente à televisão.

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Viajando pelo mundo (das palavras)

"Minha história toda começa em Campinas. Quando eu estava no segundo ano da faculdade, entendi que precisava entrar na profissão. Não venho de uma família envolvida com o meio, e entrar no jornalismo, na década de 1980, era ainda mais difícil e elitizado.

Então liguei para todas as rádios da cidade perguntando se precisavam de uma repórter. Até que o chefe de redação de uma delas me chamou para um teste, e eu consegui um estágio.

Minha paixão por contar histórias vem de pequena, mas não me imaginava trabalhando com audiovisual.

Minha paixão era a escrita, e a literatura era quase uma fuga da realidade mais simples e periférica. No final da enciclopédia 'Tesouros da Juventude', que eu adorava, havia duas ou três páginas com lições de francês e, fascinada por aquilo, fui aprendendo o idioma por conta própria. Essa enciclopédia era tão importante para mim que tenho ela até hoje. Falava tanto dela que, quando fiquei grávida do meu filho, meu marido a encontrou em um sebo e comprou para mim.

Eu tinha um grande sonho de viajar o mundo, e também lia muito os quadrinhos do Tin Tin. Ele era o oposto de tudo o que eu tinha: era um menino belga, loiro, rico, bem diferente da minha realidade. Mas o fascínio vinha porque, primeiro, ele era um repórter, e ele viajava o mundo. Então, na minha cabeça, o universo do jornalismo passava por isso."

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Na minha época era tudo mato

"Aos 22 anos, eu trabalhava no departamento de produção de vídeo da Unicamp, cobrindo eventos da universidade. Quando fui pedir demissão para vir para São Paulo, fazendo um curso para recém-formados da editora Abril, meu então chefe disse: 'Olha, eu sei que você está indo para o impresso, que é a sua paixão, mas nunca abandone o audiovisual. Você se dá bem nessa área'.

Anos depois, já tendo feito cobertura dos festivais de Cannes, Veneza e Berlim, eu estava trabalhando em uma publicação chamada Jornal do Vídeo, e o Rubens Ewald Filho, que havia acabado de chegar à HBO, me disse que precisava de alguém com o meu conhecimento em cinema para ser a supervisora de produção dos programas sobre a sétima arte.

Na época, eu falei para ele que nunca havia feito televisão, que eu era muito mais da escrita. E ele me disse uma coisa que eu trago comigo até hoje.

Ele disse: 'O que eu preciso é do teu conhecimento. O lado técnico, o dia a dia de como se faz televisão é um aprendizado que você pode adquirir rapidamente. Mas essa riqueza que você traz é inalienável. É parte do que você é'.

Fiquei fazendo os programas de 1997 até 2005, e quando a HBO resolveu produzir séries, foi quase natural que eu fosse para a área.

Eu brinco que naquela época era 'tudo mato' e precisávamos desbravar o mercado. A produção independente de televisão naquele momento praticamente não existia, porque quem sabia estava dentro dos canais.

Naquele momento, decidimos buscar as produtoras de publicidade e os profissionais de cinema. E fazíamos com todas as dificuldades que se imagina: como se estrutura uma série com mais de uma temporada? Não sabíamos.

Mas foi um momento legal. Nossas duas primeiras séries, 'Mandrake' (2005) e 'Filhos do Carnaval' (2006), foram indicadas ao Emmy Internacional. Isso foi um motivo de orgulho, porque apontou um caminho. Nosso desafio era trazer esse olhar que trouxesse algo novo."

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"Não somos os protagonistas de nossas histórias"

"A diversidade de vozes e visões é boa para todo mundo. Enriquece a visão e nos faz falar com um público mais amplo, emocionar audiências em todos os lugares. As histórias que nos apaixonam fazem isso porque nos conectamos com os personagens, eles nos conquistam.

Por isso, está mais que na hora de nós buscarmos mais vozes. O ser humano tem a tradição de contar histórias desde a época das cavernas. Somos feitos de histórias, e quando elas só representam uma determinada camada da sociedade, isso acaba alienando uma parcela muito grande de pessoas.

Nossas histórias da população negra ainda não foram contadas pela gente. Nós não somos os protagonistas das nossas histórias, e é isso que precisamos mudar. O que muda o mundo é a gente conhecer o outro. É o que precisamos trazer.

A [escritora] Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre o perigo de se contar sempre a mesma história, porque isso acaba reforçando alguns pré-conceitos. Então, quando se amplia as vozes e visões, se constrói um mundo melhor. Acredito nisso. Sou otimista."

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Vivendo a história

"Quando eu ainda trabalhava no Jornal do Vídeo e, depois, na HBO, também era colaboradora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Saía do trabalho e ia para lá continuar trabalhando fora do horário. Fazia catálogos, recepções e ajudava na seleção de filmes. Isso tem uma importância muito grande na minha trajetória.

Ali eu conheci atores, diretores e produtores do mundo todo, e essas experiências contribuíram muito para a minha formação. Tudo o que fazemos na vida é cumulativo para o nosso aprendizado.

Eu me lembro de estar em um jantar com [o diretor português] Manoel de Oliveira e [o iraniano] Abbas Kiarostami. O Manoel contava para o Abbas sobre o que foi o Cinema Novo brasileiro e quem era Glauber Rocha. Ele falava com uma paixão fascinante!

E eu lá, fazendo as vezes da casa, sem acreditar que estava presenciando aquela conversa. É um daqueles momentos em que você fala: 'Uau, eu estou aqui, vivendo isso de perto'."

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Entre o trabalho e o lazer

"Meu grande prazer é assistir a séries com meu marido e meu filho, de 19 anos. Temos ótimas conversas sobre os conteúdos agora que ele é mais velho. Mas também gosto de fazer tarefas de casa, até porque meu trabalho é muito cerebral. Adoro cuidar das plantas e cozinhar.

Hoje, eu consigo ver coisas simplesmente por lazer, mesmo as que eu produzi. Passava por todo o processo de debater roteiro, tomar decisões e assistir aos cortes com o olhar técnico, mas quando a série estreava eu desligava essa parte e assistia como espectadora.

Era a coisa mais legal do mundo, porque ali eu pensava na série como público. E adorava quando me surpreendia. Meu marido dava risada, porque eu já sabia que aquilo iria acontecer. Mas eu falava: 'Agora estou assistindo como uma pessoa normal!'

Mas também há outras que assisto com o objetivo de entender andamento e construção narrativa. Aí, eu já faço a lição de casa e a relação é outra. Mesmo assim, não tenho muitas regras. Já houve séries que comecei a assistir pensando em ver apenas um episódio e, quando percebi, já estava no episódio 6, às 3h da manhã e, se deixasse, eu iria continuar."

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De olho no futuro

"Precisamos ser protagonistas das nossas próprias carreiras. Óbvio que precisamos de ajuda e apoio mas, no fim das contas, a história é nossa. Falo isso sempre para as mulheres. É importante que a gente busque o que quer, sem medo de ousar e de ir atrás do que é melhor para nós. Mas também não chegamos a lugar algum sem maleabilidade, sendo pessoas rígidas.

Agora, estamos começando a filmar alguns projetos e retomando outros, claro que com todos os protocolos de covid-19, que também alteram todo o cronograma. Temos um projeto sobre o Anderson Silva, que é um herói e sinônimo de luta e resiliência, um documentário sobre o Adriano Imperador dirigido pela Susanna Lira e 'As Seguidoras', que é um projeto que fazemos junto ao Porta dos Fundos.

O que queremos é investir em conteúdos que façam diferença. Hoje nós temos a sala de Narrativas Negras, que é dedicada a desenvolver novas histórias com esse olhar mais diverso e inclusivo.

Esse é o primeiro passo para construirmos no Brasil conteúdos que conversem com a audiência global. Não para podermos falar que o conteúdo faz sucesso lá fora, porque temos histórias para contar que precisamos levar para o mundo. O Brasil precisa disso, porque nós somos maiores que os governos que passam."

As Donas do Show

Esta reportagem faz parte de uma série de UOL Splash, com histórias de mulheres que não são necessariamente famosas ou estão em cima do palco, mas que se tornaram referências no universo da arte e do entretenimento.

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