Revolução pelo funk

Como o futebol e a música transformaram a vida de Angelo Canuto, que foi PM e teve duas passagens pela prisão

Débora Miranda De Splash, em São Paulo Duda Gulman/UOL

Ele é conhecido como Padrinho, e muita gente acha que o apelido tem ligação com o mundo do crime. Angelo Canuto, 47 anos, passou um terço da vida na cadeia, com condenações que incluem sequestro e organização criminosa. Hoje trabalha como empresário de futebol e de funk. Negocia em nome de atletas como Luciano (São Paulo) e Davó (Corinthians). Na música, representa MC Caveirinha, Kayblack e Kawe, entre outros.

O primeiro artista que conheceu foi o rapper Dexter —ainda na prisão. Aproximaram-se e passaram a trabalhar juntos. Padrinho de casamento do amigo, ganhou o tal apelido.

Canuto nasceu em Guaianases, na zona leste de São Paulo. Sua referência de pai era o traficante da quebrada. "Foi o cara que me ensinou a lei da favela, a me comportar. Ajudou a formar o meu caráter enquanto homem. E eu via na pessoa dele um porto seguro, era o cara que me orientava, que me ajudava."

Veio do "pai" a ideia de virar policial. Canuto, que sempre gostou de estudar e sonhava em ser jogador de futebol, passou no concurso e foi trabalhar no 2º Batalhão de Choque. De lá, "fazia alguns favores". Ganhou muito dinheiro, mas, como ele mesmo diz, "a conta chegou" e teve duas longas passagens pela prisão. Escreveu um livro sobre a própria caminhada e, ainda atrás das grades, decidiu estudar. Fez faculdade, MBA, virou palestrante e começou a trabalhar com música. Na sequência, passou a se dedicar ao futebol, que tanto amava.

A ligação com a origem humilde de tantos atletas e cantores é, segundo ele, seu diferencial. "Tenho essa empatia, essa troca. A gente chora junto, a gente fala de quebrada junto. Ofereci merda para Deus, em tudo o que fiz na minha vida. Aí, Deus foi lá, fez uma alquimia e me devolveu ouro. É a minha capacidade de trocar uma ideia, é a minha habilidade de passar para os meninos que a gente é capaz de fazer e não importa."

Leia, abaixo, trechos da entrevista ao UOL.

Meu pai, um Robin Hood

"Sou nascido e criado em favela, em Guaianases. Com 12 anos, eu jogava no time de várzea da região, que era era mantido por um amigo, uma pessoa com quem tive uma identificação como pai. Porque eu nunca tive pai, nem no meu registro de nascimento. E esse cara era o traficante da minha região, o cara que mandava na minha quebrada. Ele tinha por mim carinho, respeito e me tratava verdadeiramente como um filho. Foi o cara que me ensinou a lei da quebrada, a lei da favela, como me comportar. Ajudou a formar o meu caráter enquanto homem. E eu via nele um porto seguro, era o cara que me orientava, que me ajudava."

O legado que ele deixou para mim foi de como ser um homem de verdade dentro do contexto em que a gente vivia, que era o contexto da violência. Eu não via tudo aquilo que o cercava, não via o tráfico. Eu enxergava nele um Robin Hood, ele era o meu salvador.

Sobre o traficante que o apoiou durante a adolescência

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Tem coragem de entrar na polícia?

"Sempre gostei de estudar e, quando cheguei aos 18 anos, ele me disse: 'Você tem coragem de entrar na polícia?'. Aí eu falei: 'Pô, mas não é mancada eu entrar na polícia?'. Ele disse que não. Eu entendi que a proposta dele não era que eu me tornasse um policial. Ele tinha algo para mim. Eu era um garoto destemido, sem uma estrutura de lar, sem nada, desbravador, cheio de adrenalina. Falei: 'Eu vou! Não tenho medo!'. Prestei o concurso público, acabei entrando e fui para o 2º Batalhão de Choque, justamente porque trabalhava com essa área do esporte, mais próximo do futebol, que me fascinava. Novamente o futebol ali, na minha vida.

Como policial militar, eu fazia alguns favores para ele. Mas eu sabia que eram atividades delituosas. Eu ganhava, vamos dizer, para levar de Guaianases ao Tatuapé um carro, R$ 10 mil. E o meu salário na polícia era de R$ 400, R$ 450. Aquilo me seduziu, porque nasci no berço da miséria. Para mim era fascinante, toda aquela ilusão que esse universo proporciona. Me tornei o cara da quebrada."

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Splash - Você fazia que tipo de coisas para ele? Transporte de drogas?

Canuto - Droga, arma. Vamos dizer, ajudava no desenho de um assalto. Monitorava um rádio da polícia para o plano dar certo. Fui crescendo financeiramente, crescendo no respeito na quebrada. Só que a conta chegou e fui preso. Fiquei no Presídio Militar Romão Gomes acusado de sequestro. Eu estava com 23 anos de idade. Fui preso em junho de 1997 e saí em janeiro de 1998, absolvido em primeira instância. Expulso da polícia, porém absolvido nesse processo.

Splash - Você foi inocentado?

Canuto - Fui inocentado nesse processo. Seis meses depois, em um recurso do Ministério Público, fui condenado a oito anos e meio por extorsão mediante sequestro. Fui para a Baixada Santista e passei a figurar como procurado pela Justiça. Continuei promovendo ações delituosas para me manter financeiramente e, em 2001, quando estava acontecendo a megarrebelião em São Paulo, fui recapturado. Aí fui inserido no sistema prisional comum, não fui levado para o presídio militar. Peguei mais dois anos e quatro meses pelo uso de documento falso.

Dentro da prisão, você acaba se submetendo a diversos outros delitos. E aí, quando me dei conta, minha pena já totalizava 27 anos. Ou seja, tive mais condenações dentro da prisão do que fora. Minha vida virou um inferno. É uma realidade que prova que o sistema não regenera ninguém, é uma faculdade do crime.

Passei por três regimes de isolamento e fui parar em Presidente Venceslau, em 2006, quando São Paulo parou. Fui transferido como uma liderança de facção criminosa sem ser. Não havia nem condições de ser um faccionista, porque fui policial. Mas eu sabia articular e tinha uma boa oratória, tinha esclarecimento, poder de argumentação. Eu era um problema para o sistema penitenciário.

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Não era um juiz togado, era um guarda de portão

"Em 2007, quando fui para o regime semiaberto, eu só tinha o primeiro grau completo. Aí fiz o EJA [Educação para Jovens e Adultos, programa do governo para quem já passou da idade escolar]. Na primeira prova, eliminei todas as matérias. Decidi fazer faculdade. Fui pedir autorização para prestar vestibular, mas o juiz negou, porque o Ministério Público disse que a minha finalidade era aperfeiçoar a administração do crime.

E aí, olha que interessante: um guarda da penitenciária, com muito tempo de sistema prisional, uma sensibilidade gigante, me perguntou: 'E aí Canuto, deu certo lá o negócio da faculdade?'. Respondi: 'Não, senhor Edson, não deu certo! O juiz negou o meu pedido de estudo'.

Ele quis saber quando era o vestibular e falou: 'Faz o seguinte: se inscreve, vai lá e presta!. Só que você vai no horário e volta, beleza?'.

Eu tinha medo de gerar um problema, mas era um sonho e decidi ir. Me inscrevi, prestei o vestibular e foi tudo tranquilo. Tinha 1.250 alunos e passei em 58! Contei para o senhor Edson, e ele disse: 'Me dá os documentos aqui que vou correr atrás!'.

Uma semana depois, o meu cartão de saída para a faculdade estava pronto. O senhor Edson, que era um guarda de portão, não era um juiz togado, não era um promotor, conseguiu me colocar na faculdade [se emociona]. Foi um cara que acreditou em mim. E estudar fez toda a diferença na minha vida. Sou o que sou hoje pelo estudo e pelo carinho de um guarda que arriscou o seu trabalho e me colocou lá.

Saí para o regime aberto em 2011. Com trabalho e estudo, fui remindo minha pena [existe um cálculo que, por lei, permite ao condenado que diminua o período de prisão de acordo com os dias de estudo e trabalho]. Depois que me formei em administração, comecei a pós-graduação em Gestão e Marketing Esportivo.

Faltava três meses para concluir a pós e caí em uma operação da Polícia Federal por envolvimento com organização criminosa no tráfico internacional."

Splash - O que você estava fazendo?

Canuto - Trabalhando na música, trabalhando no futebol, fui crescendo e conseguindo cifras. Conheci o Dexter na prisão e passei a ajudá-lo na gestão da carreira, na organização dos eventos. Fui transformando a minha vida. Eu havia praticado crimes, sim. Entendia, na época, que com a condição financeira que eu tinha, eu não conseguiria chegar aos meus objetivos.

Mas quando fui inserido nessa operação pela Polícia Federal, eu já tinha parado, já tinha me desvinculado das coisas erradas. Acabei sendo condenado por organização criminosa. Foi quando voltei para o cárcere e fiquei mais quatro anos e meio. Cumpri as minhas obrigações com a Justiça e me encontro hoje em liberdade. Voltei para o mercado de trabalho, o que todo o mundo achava que seria impossível.

Duda Gulman/UOL Duda Gulman/UOL

A ciência do papo reto

"Dentro da prisão, fiz uma autocrítica sobre o meu comportamento e a forma como eu tratava as pessoas. Comecei a perceber que isso era uma ciência. Vamos dizer assim: na cadeia, eu puxava a orelha de um moleque, dava um sermão, e na verdade isso era um trabalho de 'coach', uma mentoria, um trabalho psicológico. Na cadeia é conhecido como papo reto. Isso é o papo do mano experiente. Mas percebi que no mercado de trabalho é uma ciência estudada, uma profissão.

Eu, por exemplo, acredito que seria um bom jogador de futebol, mas não tinha na época um orientador, alguém para me direcionar. Vi que eu poderia canalizar esses talentos, encaminhar esses garotos. Cada menino que eu direciono para um bom caminho, volto lá no passado e me realizo novamente. Se consigo direcionar um jovem para ser jogador de futebol, volto na minha infância e consigo ser um jogador de futebol. Quando consigo direcionar um garoto que faz uma boa rima, que canta bem, me realizo. Desenvolvo a capacidade de o cidadão entender e agarrar aquela oportunidade. De enfrentar todos os desafios."

A margem da margem da sociedade

"Passei um terço da minha vida preso. Fui a margem da margem da sociedade, cheguei ao fundo do poço e hoje estou aqui. Por que outras pessoas não podem conseguir? 'Ah, mas eu sou favelado, a vida é difícil!'. Eu também fui. Fiz carreto na feira, vendi doces no trem, me envolvi com tráfico, roubei, fiz pequenos delitos quando moleque. O meu pai foi um traficante.

A força que tenho para dialogar [com artistas e jogadores] vem da minha vivência. Eu posso mexer na ferida com propriedade. Ele vai me olhar e vai falar: 'Não é um boy engravatado'. Eu vivi tudo isso, tenho essa troca. A gente chora junto, a gente fala de quebrada junto."

Ofereci merda para Deus, em tudo o que fiz na minha vida. Deus foi lá, fez uma alquimia e me devolveu ouro. É a minha capacidade de trocar uma ideia, é a minha habilidade de passar para os meninos que a gente é capaz de fazer e não importa.

Sobre a facilidade de conversar e transformar pensamentos

Splash - Como é o trabalho de achar esses talentos?

Canuto - Hoje a rede social favorece muito isso, tanto a captação de jogadores de futebol quanto a descoberta de músicos. O moleque posta no YouTube, o negócio viraliza. Mas falo na Elenko, que é o escritório em que eu trabalho hoje: 'Temos que aprender a não fazer o que as grandes empresas estão fazendo'. No Brasil ainda existe a escravidão. Velada, mas existe. Especialmente no contexto da música e do futebol. O cara é periférico, ele sabe onde tem uma produtora, tem um pouco mais de conhecimento, aí percebe um garoto cantando feito um passarinho na comunidade dele. Já gruda naquele moleque, leva na produtora e faz um baita de um contrato com um percentual x para ele, um percentual x para a produtora e um mínimo para o artista —que, num primeiro momento, quer palco, fama, reconhecimento. É um glamour tremendo, só que quando ele volta para a realidade, é uma casinha de aluguel.

Splash - Você acha que o funk ainda é uma música de nicho?

Canuto - O funk hoje não deixa de ser uma revolução, uma quebra de tabus. Na música, todo o mundo quer transgredir. Você não bebe para orar. Você não bebe para ficar quietinho. Você bebe para pôr para fora toda a sua angústia, toda a sua mágoa, toda a sua raiva.

O funk é um grito de liberdade para uma classe sofrida, e essa música está chegando também às grandes camadas sociais, porque ela é envolvente. Vejo o funk como uma revolução, como o rap: Revolução Através das Palavras.

Duda Gulman/UOL Duda Gulman/UOL

Combustível para o sucesso

"A gente tem um projeto chamado Elenco Week, em que reúne os principais artistas para fazer músicas, feats., etc. Além dos já conhecidos, a gente seleciona um garoto que nunca teve oportunidade e traz ele para participar com os grandes músicos. E se aquilo for combustível, ele vai seguir adiante. Como o Pet, que é um garoto de Perus [zona norte] com quem fizemos esse trabalho. Ele me perturbava, me mandava mensagem para ouvir o trabalho dele. Aí chamei. A família dele junta latinha para poder complementar a renda. A mãe trabalha em uma padaria e cuida dos três filhos sozinha. A gente alugou um estúdio grande, bem amplo e começou a produzir. Em uma semana fizemos 52 músicas e 16 clipes. Trouxemos Djonga, Dexter, Kawe, Kayblack, Caveirinha, Dom Juan, Hariel. Sempre que houver uma nova edição desse projeto, colocaremos algum menino novo ali, com grandes nomes. Queremos mostrar que ainda dá para sonhar."

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