Inseparáveis

Como as autoras de novelas Duca Rachid e Thelma Guedes se tornaram uma dupla de sucesso

Layza Zanetti Colaboração para Splash, do Rio VICTOR POLLAK

É uma administração de egos complicada, porque ao mesmo tempo são duas mulheres, duas pessoas muito proativas e intensas, que querem fazer tudo. A gente passou por crises, menopausa... e é um casamento. Quando a gente está fazendo novela, eu vejo mais a Thelma que meu marido e minha filha.

Duca Rachid, sobre a parceria com Thelma Guedes

Duas vezes vencedoras do Emmy Internacional de melhor novela, em 2014 por "Joia Rara" e em 2020 por "Órfãos da Terra", Duca Rachid e Thelma Guedes formam uma dupla que não se restringe ao trabalho. Quatorze anos depois de terem feito o primeiro trabalho juntas, "O Profeta" (2006), as duas ainda se recordam em detalhes do encontro que tiveram para falar sobre aquele trabalho em parceria —que, nos anos seguintes, renderia muitos novos frutos e prêmios.

"Eu liguei para o Hotel Everest, você estava saindo do banho, ia para uma reunião", recorda Thelma. Na época, Duca estava na equipe de "Sítio do Picapau Amarelo". "E aí falou: 'Eu estou no Rio, quando eu voltar a gente marca um encontro'. Estávamos as duas meio tremendo, sem jeito, mas decidimos tentar. Saímos daquele almoço para o flat onde ela estava trabalhando, Duca sentou no computador, eu do lado, e a gente começou."

Duca completa:

No final, já estávamos contando a vida, falando da experiência no subúrbio, das mães... até choramos.

Apesar de terem vindo de relações diferentes com a escrita, Duca e Thelma se encontraram pelo caminho profissional graças ao apadrinhamento de figuras como Walcyr Carrasco, Roberto Talma e Mário Lúcio Vaz. Juntas também criaram, além do remake de "O Profeta" e das duas premiadas pela Academia de Televisão Internacional, "Cama de Gato" (2009) e "Cordel Encantado" (2011) —que Guedes define como "uma declaração de amor ao povo nordestino".

Enquanto a relação inicial de Thelma com o texto tinha como principal viés a literatura, e a possibilidade de trabalhar com roteiro surgiu já aos 37 anos, Duca começou no jornalismo e não tinha a intenção de ser escritora. "Queria viajar, eu gosto de correr mundo. Sonhava muito em escrever as histórias das pessoas, conhecer gente. Achava que um jeito de fazer isso era ser jornalista."

Com histórias de vida ao mesmo tempo semelhantes e antagônicas, as duas encontraram na parceria uma forma de abordarem em suas novelas temas que causam inquietações em ambas, e levá-los ao debate público. Nesta entrevista concedida ao Splash, elas recordam como os seus caminhos se cruzaram, o que mudou desde o início da carreira e que tipo de pressão externa recai sobre elas com mais força.

A pergunta que sempre se fez sobre nós é quando é que a gente vai se separar, quando a relação não deveria ser essa. Estamos fazendo esse trabalho agora, somos pessoas. Claro que algum dia pode ser que outras coisas surjam, mas por que essa expectativa o tempo todo de afastamento?

Thelma Guedes

Biscoitos finos

"Eu morava na periferia, em São Miguel Paulista, e ali nunca existiu teatro ou cinema", recorda Duca. "Cinema teve durante um período muito pequeno, e a minha janela para o mundo eram os livros. Naquela época, passavam vendedores de porta em porta vendendo enciclopédia, coleção. Minha mãe era professora primária e comprava tudo. Então eu lia muito, 'Tesouros da Juventude', 'Mundo da Criança', Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado. Eu lia aquilo e via muita novela. Por sorte, a gente viu os grandes, não é, Thelma? Walter George Durst, Janete Clair, Dias Gomes, Ivani Ribeiro, Benedito Ruy Barbosa no auge, Marcos Rey adaptando o 'Sítio do Pica-pau Amarelo'. Biscoitos finos.

Então eu acho que fui me encantando, eu tinha essa fantasia de querer ser jornalista. Um dia eu li 'Gabriela', vi na TV e falei: 'Caramba, isso é incrível, é isso que eu quero fazer'. Nem sabia direito o que era isso, mas queria transpor um livro para a TV. Achei aquilo lindo.

"Assim como a Duca, eu era uma menina de classe média baixa, morando na periferia do Rio de Janeiro, no bairro de Engenho de Dentro", segue Thelma. "Nasci em Vila Isabel e depois fui para lá. Brincava muito, era uma criança muito ativa, mas a vida interior logo me despertou e eu acordei para os livros. Lia tudo que aparecia na minha frente, tinha paixão por isso. No começo era aquela coisa de Monteiro Lobato, mas desde pequena eu já lia e botava as pessoas da família sentadas para ouvir meus poemas. Eu tinha 12 ou 13 anos quando li Clarice Lispector pela primeira vez e fiquei encantada, fiquei doida. Como alguém podia fazer aquilo com a gente?", recorda Thelma.

Dupla incansável

VICTOR POLLAK VICTOR POLLAK

Thelma segue com as recordações: "A partir daí, eu sabia que era uma profissão difícil. Quando eu decidi fazer Letras, minha mãe falou: 'Olha, tudo bem, mas como é que você vai viver?' Naquele momento, não passava pela minha cabeça roteiro, televisão, nada disso. Então eu tracei uma trajetória: vou escrever, mas tenho que fazer outras coisas. Fiz Letras e fui trabalhar numa editora, porque precisava me sustentar. Comecei a escrever meus livros, contos e poemas. A coisa do roteiro surgiu dentro da própria Globo, escrevi meu primeiro roteiro para entrar na Oficina da Globo."

A Oficina é um tradicional curso de formação de autores da emissora carioca. "Saiu uma notinha no jornal falando sobre a oficina, para os interessados se inscreverem. Eu estava na Universidade, trabalhando na editora, e imaginei que seria para a gente se inscrever e fazer o curso. Não tinha ideia que era para contratar."

"Então fui fazer a oficina, e era com o Flávio de Campos. É uma pessoa que sempre cito porque, numa oficina, você acha que vai aprender técnicas, mas ele vai desde a tragédia grega. Eu já tinha tido aulas com ele na faculdade, 15 anos antes, e ele foi a pessoa que me deu toda a base."

Encontros e Desencontros

A carreira de Duca como roteirista começou em Portugal. "Eu estava há 5 anos trabalhando em uma assessoria de imprensa especializada em tecnologia, que havia montado com colegas da faculdade. Tirei férias e fui fazer um mochilão pela Europa. Cheguei a Portugal e eles estavam discutindo as privatizações, haviam acabado de entrar para o Mercado Comum da União Europeia.

"Percebi uma movimentação e decidi ir para lá, com a cara e a coragem. Fui trabalhar em agência de publicidade e conheci um ex diretor da Globo que havia feito a adaptação de "Vila Sésamo". Ele me convidou para trabalhar com ele em uma produtora que estava montando, me ensinou os rudimentos do roteiro, tudo. Fizemos programas infantis, uma minissérie gravada na Guiné-Bissau e uma sitcom com Tônia Carrero, José de Abreu e alguns atores portugueses.

"Eu precisava voltar para o Brasil, mas antes disso conheci o Walter Avancini. Ele estava indo para Portugal e queria conhecer roteiristas, e convidou a Patrícia Melo para fazer uma novela por lá, 'A Banqueira do Povo'. Quando o Avancini me chamou para trabalhar com ela, começamos a escrever daqui do Brasil e mandar. Depois, de posse das fitas VHS, fui bater na porta do Walter George Durst.

"Ele foi supergeneroso e me chamou para fazer projetos. Fiquei dois anos trabalhando com ele, das 9 às 19h, aprendendo a fazer sinopse, escaleta, tudo. Foi o grande mestre, embora ao longo da carreira você vá encontrando muitos — Walcyr foi um deles. Walcyr tem uma capacidade de entender a cabeça do público de uma forma impressionante."

Caminho do sucesso

Estevam Avellar Estevam Avellar

Perguntei se ele havia lido meu livro, e ele: 'Não, mas eu fui com a sua cara. Você tem cara de que escreve bem e trabalha bem, e eu quero alguém organizado para me ajudar'.

Thelma Guedes, sobre seu encontro com Walcyr Carrasco

"Era um convite para o 'Sítio do Pica-pau Amarelo', para escrever histórias originais, e eu fui superempolgada. Cheguei na primeira reunião com uma lista de mais de 100 ideias, e ele: 'Calma, menina! Vamos devagar com o andor?'", recorda Thelma.

"Um dia, eu estava escrevendo e ele me liga. Tinha sido chamado para assumir 'Esperança', porque o Benedito [Ruy Barbosa] não estava bem. Ele disse: 'Preciso de uma colaboradora, e você vai comigo'. Então eu saí do 'Sítio' para colaborar numa novela das 21h.

"A coisa mais importante que eu aprendi com o Walcyr foi a não ter medo".

Neste trabalho, a ideia é uma coisa muito subjetiva —você nunca sabe se vai dar certo ou não— mas ao mesmo tempo objetiva porque mexe com dinheiro, com produção, com avaliação do público. Você se despe na frente do público. Não é uma profissão de medroso escrever para a TV. Você tem que ter muita coragem para se expor ali, são milhões de pessoas que vão assistir, te julgar, e você não tem muito tempo para pensar.

Duca Rachid

Trair com amor

A amizade surgiu de forma espontânea em virtude de um estranhamento em comum. "O Walcyr dava festas e, nós duas, anônimas, nos colamos. Duca e eu nos unimos nessas reuniões e fomos fazendo amizade", lembra Thelma.

Walcyr estava se preparando para escrever a sua primeira novela das 19h quando Mário Lúcio Vaz o convidou para o remake de "O Profeta", originalmente de Ivani Ribeiro. "Ele disse que não tinha condições de pegar, mas o Mário já tinha dito a ele que precisaria começar a lançar gente nova e estava recebendo sinopses.

O Walcyr perguntou se eu tinha alguma história, e é claro que sim, né? Mostrei o que eu tinha, e ele falou: 'Acho que serve, mas você não tem estofo para começar isso sozinha, não. Liga para a Duca, aí eu apresento ao Mário Lúcio e supervisiono'".

Foi aí que aconteceu a tal ligação para o hotel em que Duca estava hospedada.

Duca completa: "E é importante a gente lembrar que, depois que o Walcyr saiu, quem bancou a gente e ajudou a gente foi o Roberto Talma. Sinto muitas saudades do Talma, ele nos ajudou muito. E a novela foi um sucesso enorme, era muito diferente do tempo da Ivani. Na época dela, a novela era contemporânea, e a gente fazia uma novela de época, isso mudava tudo."

"Tem uma coisa que a Duca falava na época, que veio do Durst, que é: 'Adaptar é trair com amor'. Quando você vai adaptar, você tem que ter coragem —não para alterar o cerne, porque a questão em 'O Profeta' continuou sendo a ética em relação ao uso de um poder. Isso não se alterou, mas o resto precisou ser alterado", explica Thelma.

Esforço e reconhecimento

Divulgação / Selmy Yassuda

Reconhecimento internacional

"É muito legal ter o trabalho reconhecido, é muito bacana, principalmente porque a gente rala muito, a gente trabalha muito —entre novelas, estamos sempre escrevendo sinopses, apresentando cinco opções para a Globo", esclarece Duca.

Mas Thelma garante que os prêmios não são o objetivo. "Nosso compromisso maior, a nossa ansiedade maior, é fazer um bom trabalho, fazer alguma coisa que tenha relevância. A gente nunca tratou de um tema que não nos inquietasse nesse sentido. 'Cama de Gato' foi isso, 'Cordel...' foi um pouco diferente, mas foi por amor à cultura nordestina."

Thelma continua: "Quando você fala essa coisa da responsabilidade de mudar eu acho que, a partir de 'Cordel', devido ao sucesso que foi, fica um peso. 'Joia Rara' tinha esse peso de fazer um sucesso tão grande quanto. É claro que os prêmios são importantíssimos, porque é um aval que você tem".

É importante para a Globo, a gente sabe disso. Mas a gente não pode acreditar nessa fama, nesse sucesso, se achar especial. A Duca fala isso muito, você acabou de subir no palco pra receber o prêmio e no dia seguinte está ralando e começando do zero.

Thelma Guedes, sobre os Emmys vencidos pela dupla

O futuro

"Estamos trabalhando em cima de duas ideias de novela, vamos ver", revela Duca. "É um momento de muita mudança dentro da Globo, estamos esperando as coisas se acomodarem melhor para ver como vai ficar isso", diz, citando a grande reformulação pela qual a Vênus Platinada vem passando, que culminou no desligamento de medalhões da casa.

"Temos alguns outros projetos também, a Duca tem uns individuais e com outras parcerias. Mas a dupla permanece, estamos tentando emplacar projetos. Estamos em um momento de muita transição no mundo todo, a pandemia deixa a coisa incerta. Há mudanças grandes na Globo também, o que é um processo natural. Então a gente está com muita esperança que um desses projetos emplaque, e somos formiguinhas, né? Trabalhamos o tempo todo. Estaremos sempre trabalhando."

Esta reportagem faz parte de uma série de Splash, Donas do Show, com histórias de mulheres que não necessariamente são famosas ou estão em cima do palco, mas que se tornaram referências no universo da arte e do entretenimento.

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