Beijo no acrílico

Autores e diretores da Globo discutem protocolos e revelam como é retomar as gravações durante a pandemia

Débora Miranda De Splash, em São Paulo Danilo Togo/Divulgação

A Globo retomou há um mês as gravações das novelas "Amor de Mãe" e "Salve-se quem Puder", mas decidiu que as tramas só voltarão ao ar em 2021. Os desafios para manter o que os diretores chamam de DNA das novelas têm sido muitos. Além de protocolos rígidos de segurança adotados nos estúdios, como roupas especiais, máscaras, isolamento nos camarins e distanciamento durante as cenas, há muitas outras dificuldades para gravação e finalização das cenas.

"Quando eu vi o protocolo, falei: 'É impossível. Como é que vai fazer uma novela com todos os atores a dois metros de distância um do outro?' Achei que não ia conseguir, que a novela ia ficar péssima", conta José Luiz Villamarim, diretor de "Amor de Mãe". "Mas aí você começa a pensar, a estudar, vai criando estratégias e vai vendo que é possível. A gente trabalha com a mágica, e isso está se realizando agora. Estou mais tranquilo a partir do momento em que a gente começou a filmar, vendo que vai ser possível. E espero que o público goste e veja que a novela não mudou tanto."

O UOL falou, com exclusividade, com Manuela Dias e Villamarim, autora e diretor de "Amor de Mãe", e também com Daniel Ortiz e Fred Mayrink, autor e diretor de "Salve-se quem Puder", para discutir os desafios de fazer novela em plena pandemia.

Veja, abaixo, trechos das entrevistas e imagens exclusivas para Splash dos bastidores de gravação.

Danilo Togo/Divulgação

Conforme a pandemia foi se espalhando, naturalmente, sabíamos que uma atitude urgente deveria ser tomada para preservar a saúde dos profissionais. Tínhamos a esperança de parar algumas semanas, mas, conforme o vírus se agravava em todo o mundo, ficou claro que a pausa não seria tão curta. Um momento de muita angústia e incertezas!

Fred Mayrink, diretor de "Salve-se quem Puder"

A inédita decisão de parar

Nunca antes uma novela da Globo havia tido suas gravações interrompidas por decisão da própria emissora —os únicos casos de ter que tirar capítulos de uma trama do ar haviam acontecido por censura, na época do regime militar. Mas a pandemia do novo coronavírus fez com que a Globo decidisse, em março, pausar os trabalhos em seus estúdios e suspendesse a exibição de "Salve-se quem Puder", trama das sete, e "Amor de Mãe", exibida na faixa das nove.

"Quando recebi a notícia da interrupção fiquei aliviada. Sabemos dos custos e dos riscos que a empresa assumiu para ter essa postura radical em defesa da segurança dos funcionários. Quando ficou clara a dimensão da pandemia, a principal questão parou de ser 'quando' voltaríamos a gravar e passou a ser 'como' voltaríamos. A única coisa certa era que não voltaríamos enquanto isso representasse colocar as pessoas em risco", afirma Manuela Dias.

Villamarim diz que sabia que a decisão de voltar às gravações seria mais difícil do que a de parada, pois o trabalho não poderia oferecer riscos a nenhum profissional.

A gente criou várias estratégias para retomar. E a preocupação que eu tinha também era da manutenção da qualidade da história, porque o protocolo é muito rígido para a segurança dos atores. A decisão era como fazer isso de forma segura e não perder o DNA da novela?

O diretor lembra também que foi importante ter um gancho forte na hora de interromper a história. "A gente tinha um bom término de capítulo, que era a morte da Rita [Mariana Nunes, assassinada por Thelma, personagem de Adriana Esteves]. Fui para a edição e fiquei uma semana remontando a novela."

Amor sem beijinho

Nem autores nem diretores pararam de trabalhar durante a pandemia. Capítulos foram escritos e reescritos, formatos e estratégias de gravação tiveram de ser repensados. Um dos pontos do novo protocolo de filmagens pede que as cenas de afetividade sejam evitadas, a fim de que os atores tenham o menor contato possível entre eles. Isso foi uma questão importante e difícil para as equipes de ambas as novelas.

Manuela afirma que seguir o protocolo é a única forma de terminar "Amor de Mãe" "como a novela contada de forma cardíaca, com forte carga emocional" que foi desde o começo. "Cada cena é estudada para que seja viabilizada. Cada tapa, abraço, beijo? Tudo é estudado. É claro que tive que adaptar a escrita também. Antes podíamos gravar cenas de afeto sem problemas, mas agora há uma atenção maior para a escolha das cenas que são essenciais."

As cenas de afeto, toques, abraços e beijos são muito importantes. O uso do acrílico tem apresentado um ótimo resultado. É um processo lento e cuidadoso para retirar todos os reflexos na hora do close. Estamos encarando essa jornada com muito empenho e criatividade! Assistir a algumas cenas editadas também traz um conforto maior para o elenco. É possível, por exemplo, ver o resultado daquele beijo que foi gravado respeitando o distanciamento. Beijo no acrílico! É um aprimoramento diário dos caminhos e possibilidades.

Fred Mayrink, diretor de "Salve-se quem Puder"

João Miguel Junior/Divulgação

Villamarim conta que tem preferido usar menos efeitos especiais, em nome do clima realista de "Amor de Mãe". A alternativa tem sido, portanto, confinar o elenco quando há sequências de contato físico consideradas essenciais para a história. "Fui lendo os capítulos e elegi as cenas em que a gente confinaria os atores. Eles entram no hotel, fazem teste de covid-19, passam um período lá, retestam e, aí sim, a gente faz essas cenas."

Ele diz que os casos em que é necessário isolamento são poucos e que tem evitado deixar os atores longe de suas famílias por longos períodos de tempo, mas que tem contado com a disposição de boa vontade de todos. Mayrink concorda:

"Os atores têm reagido de maneira positiva, entregues ao desafio e conscientes das dificuldades para a realização de cenas antes simples. Somos um grupo de trabalho extremamente positivo, colaborativo e respeitoso. Estamos fazendo um confinamento muito pontual. É um grande desgaste e atinge a vida de todos os envolvidos. Preferi tentar, dentro desta rotina rígida e solitária em alguns momentos, manter o mínimo de normalidade".

João Miguel Junior/Divulgação João Miguel Junior/Divulgação

Falar ou não falar da pandemia?

Incorporar ou não a pandemia do novo coronavírus na história foi outra questão bastante pensada pelos autores. Ortiz decidiu que o assunto não teria identificação com a faixa das sete. "É um horário que historicamente apresenta histórias mais leves e descontraídas. Depois de um ano tão sofrido para todos, acho que o horário deve permanecer com suas características", opinou.

A decisão influenciou também na forma de filmar a trama, segundo Mayrink. "Não assumir a covid em nossa trama traz um desafio a mais, pelo fato de não termos um protocolo da vida real na dramaturgia." Isso significa, por exemplo, que nenhum ator pode aparecer de máscara em cena, o que dificulta ainda mais as gravações.

Já "Amor de Mãe" vai ter uma passagem de tempo a partir de onde parou e será retomada em plena pandemia. "Experimentar a realidade na ficção é o meu ponto de partida nessa novela. Como eu já pensava os personagens de forma muito realista, não foi complicado imaginá-los tendo que conviver com covid", afirma Manuela.

Sem novela até 2021!

Ambas as tramas tiveram seu número de capítulos diminuído e devem voltar ao ar só em 2021. A decisão foi tomada pela Globo diante da percepção de que com protocolos de segurança e equipe reduzida as gravações levariam muito mais tempo do que antes. Os autores, no entanto, não se dizem frustrados com a nova realidade.

"Amor de Mãe" terá apenas mais 23 capítulos. "Faltariam para a gente uns 55 capítulos, acho. E era muito tempo de exposição, a equipe correria muito risco. Sem mexer no arco dramático da novela, a gente concluiu que conseguiria fazer muito bem [em 23 capítulos], decidiu que um mês seria excelente para contar a nossa história e para terminá-la. Mas, evidentemente, essa decisão não foi assim tão fácil", revela Villamarim, que prepara um relançamento para a trama, a fim de lembrar aos telespectadores onde ela parou.

O que me frustra com relação à pandemia é o que acontece na realidade, são as mais de 100 mil vidas interrompidas, e não seus efeitos na ficção que eu estou escrevendo.

Manuela Dias, autora de "Amor de Mãe"

Danilo Togo/Divulgação

Ortiz vê com bons olhos a mudança na quantidade de capítulos de "Salve-se quem Puder". Revela que já reescreveu muitos capítulos e que, embora seja um processo desgastante, vê a situação como um grande desafio.

Voltando ao ar só em 2021, nós conseguimos entregar a novela completa. Reescrevi capítulos, revi algumas tramas e vou dar um desfecho para todas as histórias e todos os personagens. Acredito que será suficiente.

A novela terá ainda 53 episódios inéditos. "Estamos trabalhando em um cenário completamente novo e inesperado", define Mayrink. "Há muitos profissionais envolvidos nessas discussões. São decisões estratégicas complexas. Sobreviver a este momento trará grandes lições não só de gestão empresarial, mas sobretudo de gestão humana", encerra.

Reflexões sobre a pandemia

Jorge Bispo/Divulgação

Manuela Dias

"Sinto que estamos sendo questionados como humanidade. Qual é o mundo que queremos? Existe mar nele? Existem peixes, aves? Existe cultura? Existe teatro, livro? Existem artistas? Eu tenho uma filha de quatro anos e quero entender, cada vez de forma mais urgente, quais oportunidades nós estamos tendo a decência de deixar para nossas crianças. A pandemia não traz questões leves, mas aponta caminhos evidentes. Eu quero transformar este mundo. E a dramaturgia é uma das ferramentas que existem."

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Daniel Ortiz

"Foi uma experiência enriquecedora, mas não gostaria que se repetisse [risos]. Ter de trabalhar com tantas restrições em função de uma pandemia pede que você mude bastante a maneira de escrever para contar uma história com as limitações que se impuseram. Isso proporciona uma 'ginga de jogador de futebol' que está o tempo todo driblando os obstáculos em campo. Para trabalhar isolado, sem ter contato com a família e mergulhado no trabalho é preciso muito equilíbrio emocional. A cada término de uma novela, saio mais forte como ser humano."

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José Luiz Villamarim

"Pessoalmente, a questão do tempo mudou muito. Eu brinco que existe o 'tem que'. A gente sempre acha que tem que fazer várias coisas e agora talvez entenda que não 'tem que' tanta coisa. A pandemia veio para mostrar esse excesso de consumo, esse excesso de estresse, esse excesso de realizações. Acho que vale a pena a gente não perder isso. Espero que a gente consiga ressignificar coisas a partir dessa experiência. É o mínimo diante dessa quantidade de mortes e do que está acontecendo no mundo."

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Fred Mayrink

"A pandemia nos colocou no lugar da fragilidade humana. Nossas vidas estavam e ainda estão em jogo. Muitos se conectaram com suas famílias, com antigos sonhos, com o desejo de mudanças. Outros continuam como se nada tivesse acontecido. Enfim, precisamos nos reinventar, redescobrir o prazer nas pequenas coisas, nos grandes encontros afetivos e perceber que somos responsáveis pela construção de um novo caminho. O mundo se conectou, definitivamente! Nossos valores estão à flor da pele. Nunca mais seremos os mesmos."

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