Fala, pai!

Empresário que tirou Kevin das ruas diz que funk é principal oportunidade de ascensão para jovem de periferias

Guilherme Lucio da Rocha De Splash, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

Na frente da produtora GR6, localizada na zona norte de São Paulo, um jovem olha fixamente para dentro da casa que serve de sede da empresa, pelas frestas do portão de ferro. Na parte de dentro, eu converso informalmente com o empresário Alexandre Santana, 36, o Gugu.

Depois de uns cinco minutos observando, o rapaz se aproxima da grade e chama Gugu. Ele explica que tem um sonho de ser MC e pede para cantar uma de suas músicas. O empresário recusa e explica que o garoto deve entrar em contato pelo Instagram.

Não dá, filho. Você vai cantar aqui e eu estou com vários BOs na cabeça. Não vou te dar a atenção que você merece. Me chama lá, viu?

Esse tipo de abordagem de jovens sonhadores é parte da rotina do descobridor de talentos que já revelou nomes como MC Kevin (1998-2021), MC Pedrinho, MC IG e vários outros.

Seus pupilos somam mais de 1 bilhão de reproduções no YouTube e nas plataformas de streaming.

Gugu foi músico de pagode, mas trocou o palco pelos bastidores. Com seu número pessoal disponibilizado no seu Instagram para mais de 500 mil seguidores, ele recebe quase uma centena de mensagens diariamente pedindo ajuda para realizar o sonho.

Quem dá essa oportunidade do moleque crescer, comprar uma casa boa para família, um carro importado, viver a vida sem sufoco? É só funk. Olha o Kevin, ele era um exemplo de sucesso para molecada.

A relação com MC Kevin

Gugu nasceu na Vila Ede, zona norte de São Paulo. Foi pelas ruas da mesma quebrada que conheceu Kevin. Na época, meados de 2013, Gugu dava os primeiros passos para empresariar jovens MCs e viu no garoto franzino, carismático e talentoso um grande potencial.

Eu sabia que ele era um moleque diferenciado, sempre muito alegre, muito apegado a mãe. Foi um dos primeiros artistas com quem eu trabalhei.

Kevin diz que trocou o tráfico de drogas pelo funk. O empresário levou o cantor para sua produtora e se tornou uma espécie de pai. Também era uma referência do que o funkeiro queria ser no futuro: "um homem de negócios da música e dar oportunidade para jovens que sonhavam em ser MC".

Mas a relação de pai não tem só momentos bons. Pouco antes de morrer no acidente trágico que completa um mês hoje (16), Kevin alegou nas redes sociais que parte do dinheiro que ganhou pela reprodução das suas músicas era desviado pelo empresário. Gugu diz que convidou o MC, sua companheira, a advogada Deolane Bezerra, e a mãe do MC, Valquíria Nascimento, para uma reunião e esclareceu os fatos.

Tudo foi resolvido e, no fim, Kevin pagou sua multa rescisória (Gugu não quis revelar os valores) e abriu sua própria produtora - a Revolução Record. Antes disso, gravou um vídeo onde pedia desculpas para o "pai" pelas acusações.

O Kevin era um menino especial, coração puro e talentoso. Já era uma realidade do funk, um fenômeno que tinha um futuro brilhante pela frente, estava investindo na sua produtora, vários projetos a caminho. Ainda estou muito mal com tudo o que aconteceu.

Alexandre Santana, o Gugu

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

'Pai, deixa eu cantar'

O primeiro MC agenciado por Gugu foi MC Pedrinho. O empresário conta que o cantor, então com nove anos de idade —hoje ele tem 18— enchia o saco para cantar em quermesses e eventos de rua em que o empresário comparecia como uma espécie de olheiro.

Como era muito pequeno, Gugu resistia em dar uma oportunidade para o jovem. Porém, um dia, o agente estava em casa e diz que não conseguia parar de pensar no menino, loiro, baixinho e que queria uma chance.

"Eu pensei: nunca ninguém me deu um copo de água. Por que eu não ia ajudar aquele moleque? Fui atrás dele e da família para trabalharmos porque sei que tinha potencial".

A primeira música de Pedrinho já foi um sucesso: "Dom Dom Dom". Dificilmente, você encontrará a versão original na internet porque ela tem um problema: o refrão faz referência a sexo oral e, cantada por uma criança, a música chamou a atenção da Justiça e foi excluída e substituída por uma versão "light".

O empresário reconhece o choque da época, mas reclama do que ele considerou hipocrisia do Estado pela falta de atenção aos jovens da periferia. Por conta da ofensiva do Ministério Público de São Paulo, o MC mirim chegou a ficar sem se apresentar por cerca de um ano.

Assim como aconteceu com MC Kevin, Pedrinho também teve seu momento de turbulência com o "pai". Durante a pandemia do novo coronavírus, ele diz ter sido obrigado a fazer shows e culpou o empresário. Na época, Gugu desmentiu a versão do cantor. Mas isso ficou no passado.

A gente até entende. O Pedrinho é muito novo e cuidamos de todas as partes da carreira. A pandemia foi ruim para todo mundo, ele fez 18 anos, tentou dar um outro rumo para a carreira. Mas existia um contrato a ser cumprido. Sentamos, conversamos e resolvemos. Eu procuro ser transparente com todos e esses problemas fazem parte, acontece em todo lugar.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Os pequenos serão os grandes!

O papel do empresário de funk é dar suporte, principalmente financeiro e artístico, para um MC. Para se ter uma ideia, um artista que começa do zero, precisa de, pelo menos, dois passos básicos: produzir sua música e lançar em um canal especializado. Com um pouquinho mais de investimento, também gravará um videoclipe.

Esses passos não garantem o sucesso, mas são uma espécie de cartilha básica. Esse processo, se levarmos em conta um produtor de destaque, um canal relevante no segmento e um videoclipe na KondZilla, um dos canais de música mais importantes do mundo, o empresário vai desembolsar cerca de R$ 30 mil.

No caso da GR6 e da KondZilla, duas das maiores produtores de funk do país, os artistas das produtoras têm todos esses serviços na casa, desde a produção da música até o videoclipe.

"Mas o gasto vai além disso, né? O moleque tem que sair da casa dele, o transporte, a alimentação, fora o que você comentou de pré-produção, lançamento, videoclipe. É um investimento que, é bom lembrar, não garante que aquele MC vai estourar", explica.

Gugu diz que seu trabalho de garimpo é, em boa parte, restrito as suas redes, com as centenas de músicas e mensagens que recebe, mas também fica de olho do que é tendência nos bailes.

Além de audições na sede da empresa, ele criou o concurso "O Pequeno Serão Os Grandes", onde escolherá um MC para assinar um contrato com a GR6, com direito a produção musical e videoclipe na produtora.

Só de abrir a boca eu já sei se aquele menino ou menina pode ser um MC. Tem vários fatores? Tem. Tem momento, tem Deus que coloca a mão também. Mas acho que o talento ainda é algo muito forte e que vem muito ao lado do trabalho. Esse meu projeto é para mostrar que todos nós, mesmo que pequenos, podemos alcançar nossos sonhos.

Alexandre Santana, o Gugu

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Na pura calma

De infância pobre, Alexandre tinha sonho de ser pagodeiro. Junto com os amigos Vitor e Rodrigo, os três formavam o grupo 6ª Arte. Eles não deslancharam, mas as conexões com as casas noturnas da região abriram a ideia para que o trio organizasse festas de funk, ritmo que crescia na capital de São Paulo no fim dos anos 2000.

De promotores de eventos, eles passaram a empresários e abriram a produtora GR6. Dos três, Gugu é quem tem o perfil mais explosivo. Ou tinha. Franzino, ele costuma conversar sempre bem próximo do interlocutor. É difícil saber se ele está querendo demonstrar afeto ou intimidação.

Vou te falar que já fui muito chucro, não tinha muita conversa comigo. Hoje, estou mais tranquilo, sou homem de negócios.

O estilo sisudo só é desarmado para falar dos artistas agenciados, a quem ele se refere sempre como filho.

Gugu diz que tem cerca de 100, muitos deles ainda na fase de observação para um possível contrato.

Por ironia do destino, Alexandre, o pai, não tem filhos —biológicos, pelo menos.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Leia também:

Julianna Granjeia/UOL

FATOR-SURPRESA DO RAP

Mila Rapper, 18, saiu do Rio determinada a conhecer Mano Brown e a cantar para ele no Capão; e conseguiu!

Ler mais
Arte UOL

CADÊ O AMOR?

Canções românticas desaparecem das paradas de sucessos da música brasileira. Será que o amor saiu de moda?

Ler mais
Diego Padgurschi / UOL

UM ANGOLANO NO PEDAÇO

Como Manuel José Nicolau, o Gree, fundou um império no funk que fatura R$ 1 milhão por mês

Ler mais
Topo