A nossa vez

Invisibilizados nas telas, negros criam seus próprios 'canais de TV'

Kelly Ribeiro Colaboração para Splash, do Rio

Séries norte-americanas como "Todo Mundo Odeia o Chris", "Eu, a Patroa e as Crianças" e "Um Maluco no Pedaço" sempre fizeram um baita sucesso no Brasil, mas não costumamos ver produções audiovisuais criadas e protagonizadas por pessoas negras em nossas telas.

Isso, enfim, está mudando. Algo similar a movimentos como o Teatro Experimental Negro (1944-1961), de Abdias do Nascimento, e a criação do instituto Geledés, por Sueli Carneiro, em 1988, ainda em atividade, está acontecendo. E essas séries de sucesso são inspiração.

O objetivo é preencher mais uma lacuna, dessa vez no entretenimento, através da valorização da cultura e da memória afro-brasileira.

Splash conversou com idealizadores da Wolo TV, Lab Fantasma TV, Trace Brazuca e Afro TV, que identificaram essa brecha como oportunidade e a transformaram em negócio, em vez de disputarem espaço em meios já consolidados.

Outras plataformas como a Todesplay, da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) e a Afroflix (criada pela cineasta premiada Yasmin Thayná) também partem dessa mesma premissa de atender as exigências dos consumidores enquanto trazem novas perspectivas ao audiovisual.

Viés social e econômico

Em maio de 2020, os irmãos Emicida e Fióti lançaram a Lab Fantasma TV. O canal, na Twitch (serviço de streaming de vídeos e lives), tem programação diária e atrações que abordam música, ativismo, games e bem-estar.

Esse é mais um braço da Laboratório Fantasma, empresa fundada pelos irmãos há 12 anos, englobando produção de eventos, gravadora, editora e marca de streetwear.

Emicida e eu sempre tivemos o sonho de ter uma rádio e uma TV com concessão pública para conseguir romper com o racismo no entretenimento. Enfrentamos muito isso na indústria da música... Só que, no ambiente em que a gente vive, percebemos que o digital seria a maneira mais prática e rápida de propor esse caminho.

Evandro Fióti, diretor e sócio-fundador da Lab Fantasma

O digital também foi a escolha da Afro TV. Um perfil do Instagram serviu de base para a criação da plataforma. Paulo Rogério Nunes, co-fundador do canal, conta ainda que um estudo ajudou nesse direcionamento. Nele foram mapeadas demandas e o perfil do consumidor de conteúdo negro no Brasil, apontando um grande potencial em diversas áreas.

A partir daí, o consultor em diversidade e outros parceiros —o cineasta David A. Wilson e o empresário caribenho Fabien Anthony— lançaram a plataforma no fim de 2020, explorando as áreas de beleza, economia e comportamento.

Diante do mesmo cenário, o ator e diretor angolano Licínio Januário e o diretor de tecnologia Leandro Lemos idealizaram a Wolo TV, serviço de streaming no modelo pay-per-view que também preza pelo protagonismo negro na frente e atrás das câmeras.

A primeira produção da Wolo TV é a comédia "Casa da Vó", série que contou com mais de 60 profissionais envolvidos, sendo 99% deles negros. No elenco, a cantora e atriz Margareth Menezes, em seu primeiro papel como protagonista, e o rapper Rincón Sapiência.

Já o Trace Brazuca faz parte do grupo francês Trace, presente em mais de 160 países. O canal estreou no Brasil em julho de 2020, tornando-se o primeiro do gênero na TV fechada —no mesmo ano em que a televisão completou 70 anos por aqui.

O Head de Marketing do canal, Ad Júnior, revela que trazê-lo para cá era um sonho antigo do francês Olivier Laouchez, presidente do Trace. Um encontro com o empresário paulistano José Papa enfim concretizou a ideia.

Eles entenderam que a diversidade era um fator primordial para levantar discussões importantes aqui e, acima de tudo, entenderam que também é negócio e deve ser colocada nesse lugar.

Ad Júnior, Head de Marketing da Trace Brasil

'Casa da Vó' (Wolo TV)

Sitcom em 5 episódios de meia hora cada. Inspirada em séries como 'Todo Mundo Odeia o Chris' e 'Um Maluco no pedaço', a produção conta a vida de Teresa (Margareth Menezes), uma ex-funcionária pública bem sucedida que mora no tradicional bairro paulistano do Jabaquara. Ela abriga os quatro netos e vai ajudá-los a enfrentar dificuldades e alcançar o sucesso que almejam.

'Na Prosa com Monique' (Lab Fantasma TV)

A empreendedora e ativista Monique Evelle apresenta o programa de entrevistas que já recebeu nomes como a atriz Zezé Motta, a vereadora paulistana Erika Hilton, o ator Sérgio Malheiros e a cantora Ivete Sangalo. A conversa trata de carreira, bem-estar, autocuidado e conexões. Os bate-papos acontecem por live na plataforma e ficam disponíveis para assinantes do canal.

'Trace Trends' (Trace Brasil)

Revista eletrônica com foco na música, exibida pela Rede TV!, toda terça, às 22h45. A atração passa videoclipes e recebe convidados para conversas sobre assuntos ligados à música, além de ancestralidade, moda, design e lifestyle. Já passaram por lá as cantoras Paula Lima, Luedji Luna e Teresa Cristina. Atualmente, o programa é apresentado por Alberto Pereira Jr. e Xan Ravelli.

Especial Kwanzaa' (Afro TV)

Prestes a lançar sua própria plataforma, a Afro TV tem produzido especiais para as redes sociais, a exemplo da série sobre Kwanzaa - uma celebração pan-africana, focada na família e na comunidade. Ela acontece de 26 de dezembro a 1º de janeiro e guarda uma série de ensinamentos. O especial explica sua origem, difusão e realização.

O crescente interesse por narrativas negras é um fenômeno global. Um exemplo é "Lupin", protagonizada por Omar Sy. A série francesa foi assistida por mais de 70 milhões de assinantes da Netflix no mundo todo poucos dias após o lançamento, em 8 de janeiro.

As narrativas negras falam para o mundo inteiro. A Wolo surgiu para valorizar e potencializar as narrativas e a diversidade negras do Brasil, expandindo essas narrativas. O mundo quer conhecer nossas histórias.

Licínio Januário

Licínio acredita ainda que boa parte dessa mudança se dê por causa da internet. Afinal, o amplo acesso à informação mudou a forma de consumo de modo geral —o Napster e os streamings que o digam:

A internet fez com que o consumidor se tornasse mais independente dos canais tradicionais, entendendo que ele tem o poder de escolha. Ele que manda.

Já Fióti enfatiza que no Brasil essa transformação no audiovisual também é reflexo de lutas que vêm cobrando mais participação dos negros em diferentes campos da sociedade.

"Não é um movimento que está acontecendo momentaneamente. É um movimento pautado pela militância e pelo movimento negro há décadas. Tem a ver com toda uma cadeia política institucional e, principalmente, pela pressão das mulheres negras, dos homens negros, dos quilombolas, que exigem diariamente a sua retribuição e, principalmente, a sua valorização diante desse cenário".

Investimentos internacionais

Apesar do interesse do público, os idealizadores esbarram na dificuldade de conseguir investidores, principalmente aqui no país. A alternativa tem sido buscar recursos lá fora.

Esse é um grande gargalo porque o mercado brasileiro ainda é muito fechado, baseado em indicações e quase sempre não entende desse tema. Temos focado em investidores internacionais.

Paulo Rogério Nunes, da Afro TV

O aporte principal da Afro TV é da AFAR Ventures, uma empresa de investidores negros com sede nos Estados Unidos. Assim como a Afro, a Wolo e a Trace contaram com grandes investimentos internacionais para saírem do papel.

A Wolo, por sua vez, contou com incentivo do fundo Dima, uma consultoria de negócios do Qatar, além de investimentos dos próprios familiares dos idealizadores, Licínio e Leandro.

Sendo bem sincero, o Brasil ainda está muito cru em relação ao investimento voltado para o audiovisual. Especialmente em relação aos EUA, onde isso é algo muito comum e tem uma população negra muito menor. Aqui ainda vai demorar para que investimento em audiovisual se torne algo normal.

Licínio Januário

Rogério completa que é preciso ter um entendimento por parte das marcas de que toda start-up de mídia precisa de apoios iniciais para crescer:

As grandes emissoras de hoje não nasceram tão grandes. Do nosso lado, temos muito interesse em conversar com as marcas para que possamos crescer juntos, da mesma forma com os investidores e obviamente com o nosso público.

  • Afro TV

    Startup digital de conteúdos negros sobre entretenimento, beleza, economia e comportamento. Tem a representatividade como foco de suas produções, criadas por uma equipe especializada no assunto. A sede fica em Salvador, mas o objetivo é ter correspondentes em outras regiões do Brasil e do mundo. Os programas estão disponíveis em todas as redes sociais da startup e futuramente também estarão em um site próprio, com previsão de lançamento este ano.

  • Wolo TV

    Plataforma de streaming com conteúdo focado na população negra. Estreou no final de dezembro com o lançamento da sitcom 'A Casa da Vó', estrelada pela cantora e atriz Margareth Menezes e com participação especial do rapper Rincón Sapiência. São cinco episódios que podem ser assistidos por R$ 8,99. Para isso, os usuários precisam baixar o aplicativo da Wolo TV no celular, tablet ou computador. Outras séries e filmes originais já estão em produção.

  • Trace Brazuca

    A Trace Brasil se divide em duas frentes: o canal a cabo Trace Brazuca, nas operadoras Claro e Vivo; e o programa 'Trace Trends', na Rede TV!. O fio condutor de ambos é a valorização da cultura afrourbana e periférica, especialmente através da música. A programação varia entre material autoral e de fora, misturando entretenimento e conteúdo educativo, como documentários.

  • Lab Fantasma TV

    O canal está disponível na Twitch (serviço de streaming de vídeos e lives para Mac, PC, Android e iOS), com programação diária voltada a assinantes (R$ 24,99/mês). São entrevistas com nomes que se relacionam com o universo da Lab Fantasma, com foco na música e na cultura negra. A grade mescla conteúdos de bem-estar, games, videoclipes e discotecagens, entre outros.

Negros na frente e atrás das câmeras

São mudanças simbólicas, mas ainda não suficientes para que a população negra brasileira se veja representada nas telas e encontre espaço para trabalhar no setor audiovisual.

Licínio Januário cita o papel que as mídias tradicionais têm na construção do imaginário popular. E de como essa construção geralmente marginaliza pessoas negras, por vezes retratando-as de forma estereotipada.

Estamos muito atrasados em relação ao mundo, as mudanças que estão acontecendo aqui não são equivalentes às nossas necessidades, que são urgentes. A gente precisa mudar a imagem da população negra na grande mídia. O jornal sempre contribuiu para a nossa morte nos colocando como marginais. O cinema sempre contribuiu para a nossa mortes no colocando como marginais, malandros.

Licínio Januário

Fióti reconhece que, apesar dos avanços, esse tipo de conteúdo ainda não atinge as massas.

"É uma bolha que tem feito construções legítimas e grandiosas diante de um sistema opressor. Essa mudança deve ser ainda mais urgente do que vem acontecendo, mas os retrocessos do país nos impõem muitas limitações".

Ninguém está tirando uma coisa para colocar outra. Não estamos fazendo uma substituição de conteúdo. Estamos simplesmente ampliando o leque de produções audiovisuais para novas narrativas que fazem sentido para muitos brasileiros. É mais que bem-vinda essa tendência que já acontece há um tempo fora do Brasil, na qual estamos entrando de cabeça. Ainda há muitas histórias a serem descobertas e muito para dividir, mostrar, ensinar e também aprender.

Ad Júnior, Head de Marketing da Trace Brasil

Marcus Steinmeyer/UOL

Mudança de hábito

Empresária dos Racionais MC's, Eliane Dias conta como profissionalizou o maior grupo de rap do Brasil

Ler mais
Duda Gulman/UOL

Revolução pelo funk

Como o futebol e a música transformaram a vida de Angelo Canuto, que foi PM e teve duas passagens pela prisão

Ler mais
Diego Padgurschi / UOL

Um angolano no pedaço

Como Manuel José Nicolau, o Gree, fundou um império no funk que fatura R$ 1 milhão por mês

Ler mais
Julianna Granjeia/UOL

Fator-surpresa do rap

A história de Mila, rapper que saiu do Rio para cantar com Mano Brown no Capão Redondo, e conseguiu.

Ler mais
Topo