Quem vai pagar pelo show?

Lei criada na pandemia desobriga produtoras a reembolsar fãs pelas apresentações canceladas

Guilherme Lucio da Rocha e Renata Nogueira De Splash, em São Paulo Arte em foto de Mariana Pekin/UOL
Arte sobre foto de Simon Basler/Unsplash Arte sobre foto de Simon Basler/Unsplash

Assistir ao show da sua banda favorita é sempre um sonho. Reunir amigos, programar-se, separar roupa, pensar no setlist. Mas o coronavírus fez com que as apresentações —nacionais e internacionais— fossem, uma a uma, adiadas. E agora, um ano depois, parte delas foi definitivamente cancelada.

Assim, sonhos como o da advogada Aline Sousa, que viajou 2.095 km de Teresina a São Paulo para ver os Backstreet Boys, em março de 2020, viraram dores de cabeça. "Estou no escuro há mais de um ano."

Com o show adiado, ela viu os mais de R$ 3.000 investidos irem para o ralo. Só com ingressos, Aline gastou cerca de R$ 500 —valor equivalente a duas parcelas do novo auxílio emergencial. E esse é o único dinheiro que ela talvez consiga de volta, ainda assim, apenas como créditos.

A Lei 14.046, criada em 2020, que trata dos cancelamentos e adiamento de eventos por conta da pandemia da covid-19, afirma que produtoras de eventos têm de oferecer a opção de remarcação ou de crédito no valor do ingresso pago. Mas as libera da obrigatoriedade de devolver o dinheiro ao consumidor.

Guilherme Farid, chefe de gabinete do Procon-SP, define: é como se o público tivesse assinado um cheque em branco.

Na prática, a lei confiscou o dinheiro do consumidor.

O prejuízo atinge ambos os lados. Os organizadores também sofreram perdas com os serviços contratados. Até fevereiro de 2021, o setor avaliou um rombo de R$ 90 bilhões.

No final das contas, todo o mundo saiu perdendo.

Arte sobre foto de Mariana Pekin/UOL Arte sobre foto de Mariana Pekin/UOL

Backstreet Boys, uma incógnita

20 de março de 2020. O Congresso reconhece o estado de calamidade pública no Brasil, por causa do novo coronavírus, e o setor de eventos é um dos mais afetados pela ordem de distanciamento social.

14 de março de 2020, seis dias antes. Em um cenário de incertezas, e seguindo recomendação do governo de São Paulo, a produtora Live Nation decide adiar o show dos Backstreet Boys que aconteceria no dia seguinte, em São Paulo, para 40 mil pessoas. O anúncio foi feito às 16h, e muitos fãs já aguardavam na fila, do lado de fora do estádio. Até hoje, não há previsão de nova data.

"No direito, existe uma coisa chamada 'o tempo rege o ato'. Tem que ser aplicada a legislação disponível no momento do adiamento", afirma Aline Sousa.

O que ela quer dizer é que a Lei 14.046 não pode ser utilizada de forma retroativa. Ou seja, no caso dos Backstreet Boys, teria de valer a legislação anterior, que diz que os clientes têm direito a receber de volta o valor investido —em dinheiro.

Por semanas, Splash tentou contato com as tiqueteiras e as produtoras em busca de um posicionamento detalhado sobre o assunto, mas não obteve retorno. A Live Nation foi a única que enviou um comunicado.

Seguimos trabalhando para trazer a 'DNA Tour' dos Backstreet Boys para São Paulo. Pedimos que guardem seus ingressos, que continuam válidos. Entendemos que estão todos ansiosos, portanto, pedimos que fiquem atentos a seus e-mails, pois assim que tivermos novidades sobre esse show comunicaremos.

Arte sobre foto de Christophe Gateau/picture alliance via Getty Images Arte sobre foto de Christophe Gateau/picture alliance via Getty Images

Empresas em silêncio

Cansados de esperar, centenas de fãs da boyband se juntaram virtualmente e elaboraram um abaixo-assinado oficial que será entregue tanto à produtora quanto à tiqueteira responsável, a Ingresso Rápido.

No documento, o grupo cita o Código de Defesa do Consumidor e critica o "absoluto silêncio" das empresas, além de pedir a divulgação de uma data futura para o show ou o reembolso total dos ingressos.

"Antes, eu queria só a remarcação. Hoje, quero uma resposta concreta. Faz um ano e sete meses que eles estão com o nosso dinheiro. E a gente continua sem o show e sem o reembolso", cobra Stefane Caroline da Silva, que enfrentou fila e comprou o ingresso na bilheteria ainda na pré-venda, em 2 de setembro de 2019.

Outra fã que se sente prejudicada é a bióloga Verônica do Nascimento Gomes, que investiu R$ 720 em um ingresso de pista premium, mais R$ 144 de taxa de serviço —que, de acordo com a nova lei, não precisa ser reembolsada.

"Precisamos desse dinheiro. Entendemos que é pandemia e ninguém tem culpa, mas nós não podemos arcar com isso. Está sobrando para o lado mais fraco", pondera.

Consumidores reclamam, ainda, de falhas de comunicação dos canais de venda e de não receber orientação adequada. As poucas informações disponíveis estão nos sites das tiqueteiras, empresas que comercializaram as entradas. Quem comprou ingresso em bilheteria diz que sequer recebeu um e-mail sobre a situação.

Arte sobre foto de Mariana Pekin/UOL Arte sobre foto de Mariana Pekin/UOL

Novos shows, nenhum reembolso

A assistente administrativa Mary Freitas, do Rio de Janeiro, queria comemorar o Dia dos Namorados ao som de Sorriso Maroto e, em dezembro de 2019, comprou três ingressos por R$ 330.

O evento foi adiado, mas ela ficou surpresa quando o grupo de pagode se apresentou, em setembro, na mesma casa de shows, no formato drive-in. Novos ingressos foram vendidos, e quem tinha entrada para o show anterior segue esperando até hoje.

"Não posso ficar à mercê da data que eles queiram marcar. Não sei se estarei viva, se estarei no Rio, se terei emprego. Essa lei não dá respaldo ao consumidor."

Leonardo Garcia, advogado e professor, diz que a lei deveria tratar das condições temporais. "No caso de remarcações, as [mudanças de] datas podem ser prejudiciais ao consumidor, e isso não está contemplado na legislação."

Do outro lado, mais um efeito da pandemia: o fechamento de casas de show.

A Time For Fun anunciou o fim das atividades do Unimed Hall, um dos mais tradicionais espaços de eventos em São Paulo. Já estavam marcados shows de Zezé Di Camargo e Luciano, Maria Bethânia e até da banda inglesa McFly.

No caso do Unimed Hall, os fãs que compraram ingressos podem aguardar o anúncio de uma data e um novo local para as apresentações, segundo a empresa. Mas a advogada Adélia Soares explica como receber o dinheiro de volta em caso de fechamento ou falência.

"Quando a empresa fecha, ela ainda tem um patrimônio e os sócios que respondem por ela. Em qual conta caiu o valor do meu ingresso? Existe a possibilidade de fazer esse levantamento, evidenciar quem são os responsáveis e receber dessas pessoas."

Arte sobre foto de Getty Images Arte sobre foto de Getty Images

Se a artista pediu...

Um dos shows mais aguardados de 2020 era o da cantora Taylor Swift. As duas apresentações —esgotadas— seriam em julho, em São Paulo, mas a pandemia fez a americana adiar e, depois, cancelar a turnê.

Apoiada pela nova lei, a T4F não fará o reembolso e tem oferecido créditos para fãs gastarem em outros shows. A esteticista Giovanna Vaz Crippa, de Londrina (PR), adquiriu três entradas por cerca de R$ 800, mais taxas.

Comprei o ingresso da única artista que eu queria ver.

Ela diz, ainda, que o estorno a ajudaria a enfrentar as dificuldades da pandemia.

Na postagem em que anunciou o cancelamento, Taylor escreveu:

Embora o reembolso esteja disponível desde o início, quando adiamos a turnê, muitos seguiram com seus ingressos, e eu segui com a ideia de que seria possível reagendar.

Ao divulgar a decisão da artista, a T4F traduziu a nota, mas pulou a parte do reembolso. Nos comentários, ainda postou: "Deixar como única alternativa o reembolso integral do valor de ingressos agravaria ainda mais a situação do setor de entretenimento ao vivo, que ficou tão complicada nos últimos meses."

Já no caso do show de Billie Eilish, agendado inicialmente para maio de 2020 e também cancelado, a postura da cantora foi decisiva para que os fãs recebessem o dinheiro dos ingressos. Ela exigiu a devolução, e a produtora Live Nation acatou o pedido.

Mas o procedimento deu trabalho e, embora algumas pessoas já tenham recebido, outras seguem aguardando. A cartorária Raissa Belarmino, de Sorocaba (SP), comprou dois ingressos para o show em São Paulo e queria repassar o valor de R$ 588 para a mãe, que depende do auxílio emergencial. "A situação está cada dia pior no Brasil."

Arte sobre foto de Mariana Pekin/UOL Arte sobre foto de Mariana Pekin/UOL

Quem vai ser penalizado?

Com a Lei 14.046, quem mais perdeu foi mesmo o consumidor, segundo avaliação de especialistas ouvidos por Splash.

O professor Leonardo Garcia, diretor do Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor) criticou a lei. "É inconcebível ficar na mão de quem presta o serviço. O consumidor fica rendido."

Já para Renato Prado, a lei conseguiu chegar a termos razoáveis.

No geral, era óbvio que teríamos prejuízos —e dos dois lados. Infelizmente, a maior fatia desse bolo ficou com os consumidores.

Segundo a Abrape (Associação Brasileira dos Promotores de Eventos), entre abril de 2020 e fevereiro de 2021, foi estimada uma perda de R$ 90 bilhões. O setor também deixou de gerar R$ 4,65 bilhões em impostos.

Doreni Caramori Júnior, presidente da Abrape, defende que a legislação em vigor é a melhor possível. "Ninguém desejava o que estamos vivendo. Mas o prejuízo de um show internacional, de todos os custos, ele é de quem? Nós vamos penalizar só um elo dessa cadeia?".

Guilherme Farid, chefe de gabinete do Procon-SP, afirma que, diferentemente da Abrape, os órgãos de proteção ao consumidor não tiveram abertura com o Congresso durante a criação da nova lei.

Claro que estamos em um período anormal, em que é necessário adotar medidas de exceção, mas o consumidor ficou desprotegido. Não é factível que ele tenha acesso ao crédito de algo que ele não desejou. Poderíamos achar um meio-termo.

Tire suas dúvidas

A advogada especialista em direito do consumidor Adélia Soares esclarece as questões de quem está com dificuldade para ter o dinheiro de volta.

O próprio Código de Defesa do Consumidor fala que nenhuma legislação pode tirar o direito de reembolso. E é um serviço que não está sendo prestado.

Adélia Soares, advogada

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