'Meu sonho é ser MC'

Desejando ascensão social, jovens das periferias de SP trocaram sonho de viver da bola pelos palcos

Guilherme Lucio da Rocha De Splash, em São Paulo Yuri Amorim/UOL

Ser jogador de futebol é uma espécie de bilhete premiado para jovens das periferias de São Paulo. É usando a bola que muitos sonhavam em dar uma casa para a mãe, comprar o carro importado e ser uma celebridade. Mas agora o funk passou a também ocupar esse espaço no imaginário dos garotos e garotas que nascem nos cantos da cidade.

A morte de MC Kevin, aos 23 anos, chocou o Brasil pela forma trágica como ocorreu e pela repercussão. Mas para quem acompanha os números e a indústria do funk de São Paulo, a comoção não foi uma surpresa.

Kevin era uma referência de sucesso para a molecada:

Jovem, subia ao palco para cantar músicas que estavam na boca do povo, tinha condições para comprar o que sempre sonhou, sem abdicar dos prazeres da vida de artista, as noitadas, a diversão.

Para um MC, o funk oferece quase todo o bônus de um jogador de futebol e cobra uma disciplina menor para conquista do sucesso.

Todo esse mercado consegue funcionar fora dos olhos da mídia tradicional e das grandes figuras da indústria fonográfica. São milhões de reais e milhares de empregos gerados no ecossistema que vai desde o produtor musical até a tia que vende cachorro-quente na porta dos bailes.

Porém, o ônus para o jovem pode custar caro. A responsabilidade de ser, muitas vezes, o principal provedor da casa ainda na juventude, estando exposto a uma vida noturna agitada e com responsabilidades que muitos adultos nem imaginam experimentar podem corroer a saúde mental de uma criança.

Jogador ou MC, eis a questão

Segundo relatório do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 60ª posição entre 82 países no ranking de mobilidade social. Os dados apontam que um brasileiro nascido no pior patamar de renda demora nove gerações para atingir a renda média do país.

Ou seja, é muito difícil ascender socialmente no Brasil. E os jovens das periferias sabem disso.

Um "elevador" social é o futebol. Craques como o atacante do Corinthians Jô, por exemplo, saíram da zona leste de São Paulo para serem destaques do futebol mundial. Essa trajetória é longa e árdua. Os testes concorridos nos times, as grandes distâncias entre os cantos da cidade e os centros de treinamentos e a rotina regrada são desafios que podem fazer muitos desistirem. Isso sem falar na baixíssima taxa de jogadores que ganham salários astronômicos.

Mesmo chegando ao ápice de um atleta de alto rendimento, com salário cheio de zeros e grande visibilidade, a vida é muito regrada: concentração, alimentação balanceada, muito esforço físico.

O jovem encontrou outro elevador graças ao funk. A noção musical e a perseverança são requisitos básicos, mas o "ônus" é bem menor em comparação ao futebol.

Ângelo Canuto é sócio da Elenko Music, que cuida da carreira de artistas como o cantor Kawe, da música "Mds", que chegou a ocupar o topo das paradas no Spotify, e parceiro da Elenko Sports, que cuida da carreira do jogador Luciano, atacante do São Paulo.

Conhecendo os "dois lados da moeda", Ângelo diz que a paixão dos jovens pelo funk representa os tempos modernos.

Muita coisa mudou dos anos 1980, 1990, para hoje. Não se tem mais tantos campos de futebol por todo lugar e os jovens viram na música uma oportunidade de vida. Não é que o futebol deixou de ser um sonho, a diferença é que o funk passou uma alternativa até mais imediata de sucesso.

Um exemplo de quem trocou a bola pelo microfone foi Mateus Correia da Silva, o MC Teteu, 16. Até os 14 anos, ele integrava as categorias de base do São Paulo.

Eu moro longe do CT, era difícil conciliar tudo. Na escola, eu cantava brincando e sempre gostei de funk. Uma vez, gravei um vídeo de zoeira com uma música que meu irmão escreveu e viralizou. Falei com meus pais e disse que meu sonho mesmo era ser MC.

Hoje, Teteu tem 600 mil ouvintes mensais no Spotify e acumula mais de 200 milhões de views nas suas músicas do YouTube. O cantor diz que consegue ajudar no sustento da casa e já realizou um dos seus sonhos de consumo: comprar um carro.

Como é o ecossistema

Os MCs se formam nas periferias. É lá que o garoto sonhador tem uma ideia de composição e apresenta para um produtor parceiro, que confia na ideia e grava. Com a música pronta, o MC procura um canal no YouTube especializado em funk para lançar seu trabalho, além de DJs de bailes de rua ou tabacarias que toquem sua música. Assim, passam a ter certa relevância.

Caso consiga emplacar uma música, o funkeiro tem a chance de ter uma agenda de shows nas casas noturnas e ganhar um cachê. São dezenas de estabelecimentos de pequeno e médio porte espalhados por todo o estado de São Paulo que só tocam funk.

Como Splash mostrou em entrevista com Alexandre Santana, o Gugu, empresário que revelou Kevin e outros MCs, o trabalho de "revelar" um artista pode custar até R$ 30 mil para os empresários (entre produzir uma música, gravar um videoclipe, além de gastos com transporte, alimentação, etc).

As produtoras dão esse suporte para os funkeiros. Elas são tão relevantes na indústria do funk que são quase como um "time", inclusive com certa rivalidade entre elas e a molecada sonhando em fazer parte de uma delas, como se fossem Corinthians ou Palmeiras.

Mas o mercado precisa de muito mais que um MC, certo? Para se ter uma ideia, só a KondZilla e a GR6, as duas maiores produtoras de São Paulo, têm cerca de 250 MCs nos seus castings. Cada MC precisa de um DJ e uma equipe de trabalho (produtor e roadie, por exemplo). E isso gera milhares de empregos.

A roda do Funk

  • MC

    O MC é principal elemento desse ecossistema e virou profissão dos sonhos para os jovens das periferias.

  • Produtor

    O produtor musical é outra peça importante desse sistema e não está vinculado a um artista.

  • Backstage

    Para subir num palco, um MC precisa de, no mínimo, um DJ e um roadie. Além dele, também costumam compor a equipe um motorista e um segurança.

  • Produtoras

    Elas dão a estrutura para o artista (produção musical, gravação de videoclipe, além de ajuda com assuntos pessoais) e vendem seus shows.

  • Casas de shows

    Espalhadas pelas periferias, é delas que sai boa parte da renda dos MCs e produtoras, principalmente os menores.

  • Empregos indiretos

    Desde vendedores ambulantes que trabalham em bailes de rua ou na porta de casas de shows até o barbeiro que vê o movimento aumentar com os cortes da moda.

    Imagem: an

A construção do mito

O funk chegou em terras paulistanas no fim dos anos 2000 e começo dos anos 2010, passando a ocupar o espaço do rap como principal expressão musical periférica da cidade.

A figura do MC como representação máxima do sucesso nas quebradas foi evoluindo com o tempo. Se antes bastava ser a pessoa que arrastava multidões e conseguia usufruir do dinheiro, hoje ser MC demanda muito mais.

Cantores de destaque como MC Don Juan, MC Kekel e MC Lipi ganhavam mais de R$ 100 mil por mês —em tempos pré-pandemia, com agenda de shows lotada. Mas eles são exceções.

Um MC com relevância mediana pode faturar cerca de R$ 20 mil mensais. Segundo pesquisa, 75% dos jogadores profissionais no Brasil ganham até R$ 7 mil. Apenas 10% ganham mais de R$ 40 mil.

Os funkeiros hoje também são vistos como empreendedores, empresários, influencers digital e conselheiros - alguns, inclusive, compartilham frases motivacionais no melhor estilo coach nas suas redes sociais.

Konrad Dantas, o KondZilla, falou em entrevista anterior para Splash sobre a importância e a versatilidade dos MCs para além do subir no palco, podendo expandir seu talento para outras artes, inclusive.

Olha o tamanho do engajamento em um stories do Kevinho, quantas pessoas ele não alcança. Olha o Jottapê, protagonista da Netflix [o cantor interpreta Doni, na série "Sintonia]. Acho que o MC tem campo para ser versátil, para ser importante em vários segmentos para além da música.

Mas esse protagonismo está muito ligado à proximidade do MC com a sua comunidade. É essa conexão que cria o encanto, explica a pesquisadora Rubia Maria.

O MC pode até comprar uma casa em outro bairro, mas, via de regra, ele não sai de onde nasceu, ele está sempre em contato com a família, os vizinhos, os amigos. Para o jovem de periferia que sonha em ser MC, conseguir ver seu ídolo tão próximo, faz muita diferença. A imagem de um funkeiro acessível é fundamental para essa imagem de exemplo.

Rubia Maria, pesquisadora

A cabeça da molecada

Nem tudo são flores no universo do jovem que sonha em ser MC. Sabe aquele ditado de que "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades"? É sobre isso.

"Aquele jovem de 14, 15 anos, que alcança o sucesso, acaba virando o chefe da família, o responsável por levar o sustento para casa. E isso acontece muito rápido, é um processo muito louco, muitas vezes ele não conseguia comprar um refrigerante e agora está planejando qual casa vai comprar", explica o MC Menor da VG.

Além dessa responsabilidade, o funk também apresenta o mundo de artista para o jovem. A vida noturna, o assédio, os muitos "sim" e poucos "não" influenciam na formação dos artistas.

Funkeiros mirins que fizeram sucesso no começo dos anos anos 2010, relataram problemas de saúde mental recentemente. MC Brinquedo, inclusive, chegou a abandonar suas redes sociais dizendo "não aguentar mais".

Essa pressão faz levantar o debate sobre a importância do cuidado com a saúde mental dos jovens artistas.

"É uma hiperexposição, um acúmulo de responsabilidades que muito adulto não aguenta, imagina uma criança que vive um dilema de viver a vida que sempre quis, mas com demandas que nunca imaginou. Ainda falta um olhar mais cuidadoso com a saúde mental desses jovens", diz Rubia.

O que será o amanhã?

O funk não tem uma fórmula exata para o sucesso. No entanto, é na dificuldade que costumam sair os melhores resultados, diz Menor da VG.

"Você não precisa ter o melhor estúdio, a melhor estrutura, ter o maior investimento para se destacar no funk. Muitas vezes, o talento, aliado à força de vontade, resolve muitas coisas".

Com a pandemia do novo coronavírus, muitos postos de trabalho formais e informais fecharam. O Brasil registra mais de 14 milhões de desempregados. Além disso, pesquisadores apontam para uma tendência de alta da evasão escolar de alunos de baixa renda.

Angelo acredita que é nesse cenário que o funk pode ocupar o espaço de ofertar renda para toda a cadeia. O empresário também destaca a importância do Estado passar a dar ferramentas para o funk expandir de forma mais organizada.

Estamos vendo a defasagem escolar crescendo e isso, sem dúvidas, vai ocasionar numa falta de perspectiva desses jovens que passaram mais de um ano sem pisar na escola. Então ele vai pensar no quê? As opções mais próximas e imediatistas que são o crime, o futebol e o funk.

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