Punk roça

Longe dos grandes centros, bandas botinam conformismo e organizam novas cenas

Gabriel Nanbu De Splash, em Santos

O punk rock/ hardcore não morreu, camarada.

Longe dos berços urbanos do gênero no Brasil — como São Paulo, ABC Paulista e Brasília —, novos grupos agitam cenas em cantos afastados do país, formam bandas e fazem música autoral com vontade, força expressiva e contestação.

Novos sons nascem muitas vezes em resposta ao tédio e marasmo cultural de cidades interioranas. Seguindo a ética punk do "faça você mesmo", meninas e meninos se organizam para produzir shows, gravar discos e videoclipes. Redes sociais afora, criam conexões, colaboram e conversam com outras cenas.

Splash falou com integrantes de bandas, pequenos produtores de eventos e criadores de selos musicais que contaram suas histórias e mostraram como o "novo punk" se organiza (mesmo hoje, em tempos de pandemia, tem rolado festivais online e lançamentos de sons).

O punk vive. Ele pode não estar mais necessariamente onde você procura.

Arte/UOL

Marabá (PA)

Um post no Facebook, 3 milhões de views e o "inferninho"

De Marabá, cidade de 283 mil habitantes no interior do Pará, a banda Cérebro de Galinha pode ser considerada, digamos assim, um hit do underground nacional. No começo de 2017, um vídeo em que tocam nos escombros de uma casa abandonada viralizou no Facebook do grupo, com 3 milhões de visualizações.

Nas imagens, o Cérebro, cujos integrantes têm hoje entre 19 e 31 anos — estudantes, um mecânico e um atendente do Samu —, mostra seu som autoral influenciado por bandas como Ratos de Porão e Mukeka di Rato: agressivo, rápido e direto. A qualidade da música destoa das condições visivelmente precárias da "sala de ensaio/casa de show".

Olha como era o 'cafofo'...

Nome surgiu de treta com vizinha

O local, uma ocupação batizada de "Inferninho" ou "Cafofo" pela cena underground marabaense, servia de ponto de encontro para bandas locais se reunirem, beberem e tocarem.

Com a visibilidade do vídeo, a Cérebro de Galinha — cujo nome foi inspirado nas ofensas de uma vizinha revoltada com o som alto — foi convidada a tocar em São Paulo no fim de 2017.

Eles percorreram 2,3 mil km em um ônibus para chegar à metrópole.

Na capital paulista, além de se apresentar duas vezes, eles gravaram um disco ("Sociedades Secretas", distribuído pelo selo Monstro Records) a convite no estúdio Lamparina, onde dormiram em colchões no chão. Tiveram ainda a aventura paulistana registrada em um minidocumentário, "A Viagem da Galinha Morta".

No fim de 2020, em meio à pandemia, a Cérebro participou de uma coletânea de bandas da região Norte, a "Fúria Nortista", com 33 grupos de diferentes estados, projeto idealizado, entre outros, por Thais de Aguiar, 20 anos, da banda Badtrip, de Belém.

"A Viagem da Galinha Morta"

O punk nos anos 2020

  • Streaming e YouTube

    Foram-se de vez os tempos de mídia física. A música da nova geração de punkers, mesmo das bandas menores, é encontrada em plataformas de streaming ou no YouTube, em forma de álbuns ou EPs (discos de menor duração), splits (discos com músicas de dois artistas diferentes) ou coletâneas. Muitos grupos também têm produzido videoclipes.

  • Merchan e zines

    Para quem gosta da coisa física, muita banda em cenas locais vende material de merchan -- camisetas, bottoms, adesivos -- com arte descolada e bem feita. Toda cena punk que se preze tem um ou ilustradores ou designers que colaboram com esse trampo. Muita gente ainda produz zines, revistas independentes ligadas ao movimento.

  • Redes sociais e conexões

    Se em tempos remotos, o pessoal colava cartaz em poste, hoje as redes sociais são o caminho para promover shows e sons. Por isso, há atenção para que as publicações sejam interessantes e provoquem engajamento, mesmo que o público seja pequeno. As redes ainda facilitam (muito) as conexões colaborativas de bandas.

  • Shows

    Algumas cidades, com cenas mais consolidadas, têm produtoras de pequeno ou médio porte focadas em fazer shows de bandas de punk e hardcore. Muitas outras, no entanto, dependem de as próprias bandas se organizarem para fazer o evento: um leva amplificador, outro bateria e assim vai. No fim, a galera ainda toca em qualquer buraco disponível.

Belém (PA)

Faça você mesmo e faça tudo: shows, selo e vestibular

Em Belém (PA), a 555 km de Marabá, Thaís, mesmo com a pouca idade, é veterana na efervescente cena punk de Belém. Vocalista da Badtrip — "apadrinhada" pela Cérebro de Galinha no início da banda, em 2018 —, ela é um bom exemplo do espírito "faça você mesmo" na cena local.

Thaís idealizou a coletânea "Fúria Nortista" ao lado de Vinícius Braga (da banda SDM) e foi atrás de boas bandas da região para mostrar seus trabalhos. O resultado são mais de três horas de porrada na orelha com sons de sete estados.

Coletânea tem três horas de punk

Ela começou a organizar shows e eventos punk em 2015, aos 15 anos, quando abriu a Disease Produções. Também criou um selo, o Perna Torta Records, em 2018, com o objetivo de lançar o disco de uma banda amiga.

A ideia [da produtora] era trazer shows para cá porque tinha bastante banda boa sem oportunidade — bandas que não eram grandes e outras que queriam voltar a tocar.

A vocalista, que ainda arranja tempo para estudar para o vestibular, pretende voltar a organizar shows presenciais quando for seguro. E enquanto a pandemia não acaba, tem ensaiado novos sons com a Badtrip, que deve começar a gravar um novo disco em abril.

Thais se destaca no grindcore (subgênero do punk mais rápido e agressivo) por ser uma mulher fazendo um vocal gutural, gritado e distorcido, em uma cena ainda dominada por homens.

"Me chamaram para entrar na banda antes de eu saber fazer esse tipo de vocal. Disseram: 'aprende aí'. Fiquei treinando em casa até conseguir", diz.

Ela tem planos ainda de produzir vídeos tutoriais para dar o caminho das pedras para meninas que querem aprender a cantar dessa forma. Ela faz parte de um movimento feminista crescente dentro da comunidade.

Há ainda algum preconceito em relação às mulheres na cena. Ainda tem pessoas que acham que as coisas são mais fáceis para a gente.

São José dos Campos (SP)

Quase 3 mil km de Belém, o punk conectado

A Berro Mote, com integrantes na faixa dos 22 aos 25 anos, lançou seu primeiro disco, "Jornal Policial" pelo selo de Thaís, com letras que atacam a violência de agentes da lei e o governo Jair Bolsonaro. Foi uma das bandas responsáveis nos últimos anos por incentivar a molecada mais nova a pegar em instrumentos e agitar a cena de São José, interior de São Paulo, a 3 mil km de Belém.

O grupo, criado em 2019 por amigos que trabalhavam em uma central de telemarketing, se preocupa com todos os detalhes de promoção da banda. Eles vendem merchans bonitões no Instagram (camisetas e adesivos; é só pedir no direct) e publicam conteúdo com frequência.

Maldição através do telefone/ O DDD deve ser do inferno/ Seus colegas todos zumbizados/ Seu salário continua atrasado.

letra de "Tekemarketing Zumbi", da Berro Mote

Nas fotos e vídeos, a banda de "grindcore rural" (como eles definem) chama a atenção pela identidade visual. Fazem poses carrancudas na frente de porteiras e tratores, enquanto o vocalista, João Neto, ostenta um mullet e veste camisetas cortadas na altura do umbigo.

Bruno Henrique Santos, o Bode, 22 anos, baixista, explica que levam a sério a comunicação na internet.

Eu falo para quem está começando agora: é essencial ter marketing de redes. Procuro sempre postar coisa nova porque precisamos de interação e engajamento.

Berro Mote - Decapitar Fascistas

Não tem show? Vai on-line mesmo!

O baixista conta que outras bandas de molecada, como Los Suffers e Filhos da Besta, surgiram depois deles e se juntaram à cena joseense.

A banda organizou em 2019 o festival Berro Fest, para reunir alguns grupos locais, e planejavam a segunda edição, que teve de ser adiada em razão da pandemia.

Enquanto não é possível fazer evento presencial, a cena local teve show online. A Berro e outras bandas da região participaram do festival Soco na Fuça, transmitido pelo YouTube e organizado pela produtora de mesmo nome criada por Nata Nachthexen e Marcelo Kruszynski, integrantes da banda Manger Cadavre.

Todos os grupos participantes foram pagos, assim como fotógrafos, o pessoal da arte e da captação de áudio. Bruno fala sobre a apresentação:

Foi muito organizado. Cada um tinha um cronograma e tínhamos de respeitar regras do isolamento. Além disso, nós e as outras bandas tivemos bons registros de vídeo e áudio.

Outra frente criativa da banda são os videoclipes. No ano passado, a banda disponibilizou em seus canais um vídeo em animação feito por um conhecido de outra cena punk paulista, Gabriel Oliveira, o Gabigorfo, 22 anos, baixista da banda Sem Valor Comercial.

Bragança Paulista (SP)

Punk rock na roça e sem guitarra

Gabriel começou a aprender animação durante a pandemia, e um de seus primeiros "trabalhos" na área foi o clipe de "Decapitar Fascistas", da Berro Mote, uma crítica a políticos, religiosos e líderes afins. Ele também ilustrou a capa do primeiro disco da Berro, que mostra um Jesus negro sendo espancado por um policial.

O jovem é líder do duo punk "Sem Valor Comercial" e trabalha em uma fábrica de lingerie na região rural de Bragança Paulista (SP), a 150 km de São José, ao lado de seu colega de banda, Fabrício Padovan Jr., também de 22 anos, em jornadas cansativas.

"Um dia após o outro se tornou morfina/ Internado na mesmice/ Injeção de rotina/ Muito trabalho e pouca diversão/ Faz de jack desgraçado, estressado, sem noção."

Letra de 'Mesmice', do duo Sem Valor Comercial

Gabriel e Fabrício, que se conheceram no ensino médio, fazem um punk rock diferentão, munidos apenas de baixo e bateria, sem guitarra. O som é baseado em riffs (frases melódicas) de baixo com slap (uma técnica associada ao funk e incomum no punk).

Nas composições, eles falam sobre política, angústias do dia a dia e tédio, um sentimento, de acordo com eles, comum no marasmo da cidade.

Abbey Roça

Gabriel conta que quase desistiram de tocar antes de descobrirem que, na região de Bragança, havia uma cena igualmente de saco cheio da calmaria e empolgada para fazer som próprio. E os rolês aconteciam em chácaras, eventos produzidos na base do "se vira".

A gente fazia show em motoclube para roqueiro velho e desanimava porque eles cagavam para o som. Queriam ouvir 'Born to Be Wild'. Ao procurar lugares, conhecemos outras bandas punk e tocamos com elas em um evento improvisado em uma chácara. Foi a primeira vez que a gente tocou para pessoas que entendiam o nosso som.

Hoje, a região tem um "lugar oficial" para shows de banda de punk como a Sem Valor: o Abbey Roça, um antigo rancho na cidade vizinha de Socorro do pai de Hiro Ishikawa, 36 anos, baterista da Sorry For All. O lugar se se tornou, além de casa de shows, estúdio para gravar bandas — eles fizeram a coletânea "Esquadrão da Roça", com bandas da região.

Hiro e o colega de banda Marcelinho Mantovani comandam o rolê, que chegou a receber 120 pessoas em uma noite (muito antes da pendemia), conta:

Não tinha lugar para tocar punk. Geralmente, era em casa de forró ou na praça, por isso decidimos fazer aqui. A galera do interior não tem muito o que fazer em casa e acaba vindo para ver gente diferente. A galera de outras cidades começou a colar porque achou legal evento no mato.

Gabriel considera o Abbey "um marco" para a sobrevivência de bandas locais. "É uma cena que tem de se ajudar muito. Senão, a galera acaba desistindo", diz o líder da Sem Valor Comercial.

E é com tesão pelo som e muito "corre" para fazer acontecer que bandas continuam criando som e alimentando cenas como as de Bragança, São José, Belém e Marabá.

Seja no Abbey Roça, no Cafofo ou online, o punk vive também fora dos centros urbanos. Hiro resume:

Música punk é para desafiar o status quo, por isso sempre vão matá-la, e ela sempre vai ressuscitar. Sempre vai existir um jovem revoltado, não muito talentoso, para fazer seu protesto barulhento.

Leia também

Andre Vieira/MCT/MCT via Getty Images

Funk: estética do caos

Criticado e criminalizado, gênero tornou-se maior movimento da juventude periférica brasileira

Ler mais
Gabriela Cais Burdmann/UOL

Fator-surpresa do rap

Mila saiu do Rio determinada a conhecer Mano Brown e a cantar para ele no Capão

Ler mais
Arquivo Pessoal

'Eu nasci político'

Quem é Robinho Santana, artista que foi alvo da polícia e chamou atenção de Oprah

Ler mais
Topo