OS SETE 'PECADOS' DE SENNA

Longe de ser 'monopólio de virtudes', brasileiro foi violento e burlou regras em busca da glória nas pistas

Weslley Neto* De Splash, em São Paulo Pascal Rondeau/Getty Images

Ele não tinha o monopólio das virtudes. Não ganhava corrida porque Alain Prost não treinava ou porque Nelson Piquet dormia tarde. Todos eles têm comportamento e perfil de atletas, que se preparam, estudam e se dedicam. Se não fosse assim, eles não estariam na elite do automobilismo.

Flavio Gomes , repórter, em papo para Splash

Paul-Henri Cahier/Getty Images

A impressão é de que Ayrton Senna nunca errava. O piloto bateu? A culpa foi de algum concorrente. O brasileiro perdeu uma corrida para Prost? Surgia o discurso do vilão que pontualmente superava o herói. Senna era uma figura "quase santificada", diz Flavio Gomes, que cobria Fórmula 1 pela Folha de S.Paulo.

Mesmo introvertido, o paulistano também se destacava pela forte presença na mídia. A conhecida amizade com Galvão Bueno e o namoro com Xuxa, por exemplo, tornaram Senna ainda mais popular —e heroico— na visão do público brasileiro. Esse cenário é retratado na série "Senna", que será lançada nesta sexta-feira (29) pela Netflix.

E muito antes da era "media training", o discurso de Senna alinhava-se com a saga de um herói. Em diferentes momentos, o piloto retratou epifanias ao alcançar impressionantes marcas na F1 ou fez discursos religiosos ao celebrar vitórias. "Esse cara pode dizer o que quiser e sempre receberá apoio", dizia Alain Prost sobre o rival.

A construção de um "atleta perfeito" ignorou atitudes pontuais do piloto brasileiro. Splash selecionou sete momentos em que Senna escorregou, seja em declarações, atitudes ou escolhas, ao longo da carreira encerrada de maneira trágica em 1994.

Sprint Press/ullstein bild via Getty Images

Soco em irlandês

Eddie Irvine, 60, irritou o brasileiro logo em sua estreia na Fórmula 1. O irlandês foi chamado pela Jordan para disputar o GP de Suzuka em 1993 e terminou a prova com uma surpreendente sexta posição.

O clima esquentou após a corrida. Vencedor da prova, Senna alegou ter sido atrapalhado pelo estreante, então retardatário. O brasileiro deu um soco no rosto do irlandês durante a discussão. "Isso ofuscou uma estreia incrível, porque era sobre isso que todo mundo estava falando depois", afirmou Irving sobre o caso em entrevista à BBC em 2019.

"Não me conformei. Quando Senna tentava me colocar no meu lugar nos treinos da sexta-feira ou no sábado, sempre me bloqueando, eu simplesmente o bloqueava na volta seguinte", completou o ex-piloto.

Irving, que seguiu na Fórmula 1 até 2002, rebateu a acusação de Senna. "Na verdade, foi Damon Hill que bloqueou Senna. Mas foi a partir do que aconteceu nos treinos. Foi isso que o enfureceu, ele estava apenas procurando por uma desculpa."

Eu não recuei para ele. Durante a corrida, ele tentou fazer parecer que era minha culpa, mas, na verdade, a culpa era de Damon Hill.

Eddie Irvine , ex-piloto, em papo com a BBC

Ketih Sutton/Divulgação/Arquivo Folhapress

'Vá procurar sua turma'

Lilian de Vasconcellos, que foi casada com Ayrton Senna entre 1981 e 1983, falou abertamente sobre o divórcio em entrevista ao G1 em 2010, após o lançamento do filme "Senna". Eles oficializaram a união e se mudaram para a Inglaterra, onde o piloto disputou uma temporada na Fórmula Ford.

A separação ocorreu após casal retornar ao Brasil e Senna abandonar momentaneamente o automobilismo. Ele passou a trabalhar em uma empresa do pai e alugou um apartamento para morar com Lilian, mas abandonou os planos para voltar a competir na Europa.

Em seu desabafo, Lilian lembrou diálogos com o então piloto iniciante, que tratavam sobre uma suposta gravidez e fatos ocorridos durante e depois da separação.

'Beco, tenho que te falar uma coisa: fiz um exame de farmácia e acho que estou grávida porque esse exame deu positivo'. Nessa hora, ele pôs a mão na minha cabeça, olhou para mim e falou: 'Só vou te dizer uma coisa: se você estiver grávida, esquece. Você vai criar nosso filho no Brasil e eu vou continuar minha carreira aqui'. Eu tinha 20 anos.

Lilian Vasconcellos

Para mim, foi uma morte interna. Ficou muito claro na minha cabeça o quanto eu não era importante. Eu era apenas uma coadjuvante naquele cenário.

Lilian Vasconcellos

Fui moldada para casar e ter filhos. Colocava minhas forças no amor, no casamento, no lar. [...] Foi muito grande minha frustração quando não deu certo com o Ayrton.

Lilian Vasconcellos

Foi uma catástrofe para mim. Voltei para a casa dos meus pais e, depois de algum tempo, ele me ligou da Inglaterra falando que achava que eu era uma pessoa que não devia ficar presa a ele dessa forma e que ele tinha de tocar a carreira, se dedicar muito para chegar na Fórmula 1.

Lilian Vasconcellos

Eu concordei prontamente [com o divórcio]. Desligamos o telefone, e eu tive uma depressão muito grande por um ano. Não tinha vontade de pôr roupa, não tinha vontade de nada. Porque o objetivo dele, ele ia seguir. O meu foi interrompido de uma forma que não escolhi.

Lilian Vasconcellos

Ele me chamou para falarmos da separação legal e fomos fazer um lanche na zona norte. De lá, fomos para o cartório. Quando eu o vi, me emocionei e ele foi muito firme, me deu a mão e falou assim: 'Vá procurar sua turma que a minha eu já encontrei'.

Lilian Vasconcellos

Tom Rubython trouxe uma declaração do piloto sobre o término do relacionamento no livro "Fatal Weekend" (Fim de Semana Fatal), lançado em 2015. "Não penso nisso como um erro [...] Considero uma experiência muito preciosa. Nós não tínhamos filhos, então ninguém ficou ferido. Nós continuamos com nossas vidas sem efeitos nocivos. Foi simplesmente que ela não foi feita para mim, nem eu para ela."

Gianni GIANSANTI/Gamma-Rapho via Getty Images

Adriane Galisteu narrou uma reação agressiva de Senna no livro "Caminhos das Borboletas", escrito por Girlando Beirão e publicado em novembro de 1994. Uma discussão, desencadeada pela publicação de um ensaio fotográfico de Adriane na revista Caras, aconteceu dias antes do Grande Prêmio do Brasil.

A revista que ele folheava raivosamente, 10, 20 vezes, até arremessar na parede era a última edição de Caras, que saiu na quarta-feira. Eu era capa.

Adriane Galisteu, apresentadora e ex-namorada de Senna

'Você parece sei lá, uma qualquer. Como você deixou que fizessem uma coisa dessas?'. Era comigo, o mínimo que ele dizia. Gritava coisas horrorosas. Estava transtornado. Uma fera. Enrolou a revista e atirou com muita raiva contra a parede do nosso apartamento.

Adriane Galisteu, apresentadora e ex-namorada de Senna

Arquivo Pessoal

Galisteu deu detalhes de sequência da briga. "Sentia-me péssima, muda, paralisada, tentava resmungar alguma desculpa, mas não saía nada. Seria inútil qualquer argumento. Calei. E dia pior não poderia haver: bem na semana em que ele ia começar tudo de novo na sua carreira, a semana do Grande Prêmio do Brasil, em Interlagos."

Senna apontava para as fotos publicadas na revista e continuava berrando, segundo a apresentadora. "Você precisa entender que não é mais a mesma Adriane', Ayrton dizia. A coisa estava feia. Jamais me chamava de Adriane. 'Você hoje é a minha namorada', ele continuou. Eu perguntei: 'Mas o que te desagradou? As fotos? O texto?'. Ele respondeu: 'A merda toda. As fotos especialmente'.

Simon Bruty/Getty Images

'Trapaça' pela Lotus

A primeira das cinco pole positions de Senna em Mônaco aconteceu em 1985. O então piloto da Lotus fez um bom treino classificatório e, para garantir que ninguém conquistasse uma marca melhor, voltou à pista com pneus velhos. Andando lentamente, o brasileiro atrapalhou os adversários. Peter Warr, chefe da equipe na época, admitiu ser o autor do plano.

Michele Alboreto e Niki Lauda, dois dos pilotos mais importantes do grid na época, criticaram atitude de Senna. Ambos procuraram o brasileiro nos boxes para conversar sobre a questão, segundo a biografia "Ayrton: o Herói Revelado", escrita por Ernesto Rodrigues e relançada neste ano.

Warr assumiu a responsabilidade pela "trapaça" do brasileiro. Em entrevista a Ernesto Rodrigues, o ex-comandante da equipe revelou uma reclamação de Senna após a conquista da pole. "Peter, não quero fazer isso nunca mais. Se alguém tiver que ser mais rápido que eu, que seja. Não faço nunca mais."

Divulgação
Alain Prost (Matt Mella) em "Senna"

'Ele queria me humilhar'

A primeira grande falha de Ayrton Senna como piloto ocorreu em 1988 —ano em que o brasileiro conquistou o primeiro título mundial de Fórmula 1. Ele liderava o Grande Prêmio de Mônaco com 54 segundos de vantagem sobre Alain Prost, mas bateu o carro na parte final da prova.

O brasileiro afirmou ter sido uma "falha de concentração". Ele comentou sobre a falha em conversa com Reginaldo Leme, então comentarista da Globo, por telefone, horas após o fim da prova. Porém, Prost acreditava se tratar de uma "necessidade" do brasileiro de mostrar ao francês que era o mais rápido.

"Ayrton Senna não queria apenas me vencer, mas também me humilhar na pista", disse Prost à imprensa após vencer o Grande Prêmio de Mônaco em 1988.

O momento será retratado na série "Senna". A ficção mostra brasileiro pedindo desculpas aos companheiros de McLaren após o deslize em Mônaco. Na série, episódio também inicia desgaste entre o brasileiro e Prost —a briga se intensifica na temporada seguinte, quando Senna deixa de cumprir um "acordo" em Ímola.

Alan Roskyn/Netflix
Alain Prost (Matt Mella) e Ayrton (Gabriel Leone) em sequência de "Senna"

Quebra de acordo

A ruptura total entre Senna e Prost em 1989 aparece na série da Netflix. Eles combinaram que quem terminasse a primeira curva na liderança não seria incomodado pelo concorrente até o fim da corrida. No entanto, Senna não respeitou o combinado após uma relargada e ultrapassou Prost.

A série mostra a discussão entre Senna (Gabriel Leone) e Prost (Matt Mella). "As promessas dele não valem nada. Eu não vou aceitar esse tipo de favoritismo", diz o francês a Ron Dennis (Patrick Kennedy), comandante da McLaren, durante a briga. O brasileiro argumentou que o trato não valia após a relargada, o que irritou rival. "Caso isso continue, vou cair fora desta merda de equipe", rebateu o francês.

Prost tinha "total razão" ao reclamar do companheiro de equipe, avaliou Ernesto Rodrigues, autor da biografia "Ayrton: o Herói Revelado", relançada neste ano. Conforme o biógrafo, os pilotos levaram um "esporro" de Ron Dennis, chefe da McLaren. "Vocês se comportem ou terão que pedir desculpas em público", disse o comandante.

Porém, a briga entre pilotos os começou antes do acordo de Ímola. Ernesto Rodrigues destacou que os bastidores da McLaren ficaram tensos ainda em 1988, pois Prost acreditava que a própria equipe beneficiava Ayrton Senna na manutenção dos carros.

Eu sentia Ron Dennis e a Honda muito mais próximos de Senna, e era muito difícil aceitar isso. O lado psicológico de um piloto é muito importante, você precisa contar com todo o apoio disponível.

Alain Prost , ex-piloto, em entrevista ao Esporte Espetacular (Globo), em 2013

Pascal Rondeau/Getty Image

Vingança?

Um dos pontos altos da rivalidade entre Senna e Prost aconteceu no Grande Prêmio do Japão em 1989. Durante a corrida, Prost bateu em Senna para evitar uma ultrapassagem do brasileiro. Senna ainda voltou para a pista e venceu a corrida, mas recebeu uma punição após a conclusão da prova. Com o resultado, o francês terminou a temporada com o título mundial.

O ano seguinte proporcionou uma revanche para Senna. Na mesma pista, o brasileiro bateu em Alain Prost logo na primeira volta —com o francês abandonando a prova, Ayrton conquistou o campeonato.

A imprensa "passou pano" para a atitude considerada antidesportiva, segundo Flavio Gomes. "O Prost estava na frente em 1989. Ele foi defender a posição quando Ayrton tentou a ultrapassagem. É diferente de você deliberadamente bater em uma largada", afirmou.

Aqui no Brasil, considera-se uma vingança 'aceitável'. É uma babaquice de torcedor e de quem não consegue enxergar defeitos e fraquezas em seus ídolos. Aquilo foi uma fraqueza. O Senna não devia ter feito. Não foi correto.

Flavio Gomes, jornalista, em entrevista a Splash

A rivalidade entre os pilotos tornou-se tão intensa que sobrou até para Reginaldo Leme, então repórter da Globo que acompanhava a Fórmula 1. Senna deixou de dar entrevistas ao jornalista ao ser convencido de que ele favorecia Nelson Piquet e Alain Prost em sua cobertura.

Ele estava muito com o pé atrás comigo, totalmente minado. As pessoas que cercavam o Ayrton alimentaram essa história, e ele se convenceu totalmente. [...] Foi um erro dele naquele momento.

Reginaldo Leme, em entrevista ao Casão Pod Tudo, em abril deste ano

O Prost me tratava quase como um francês. Quando ele soube da minha briga com o Senna, fui chamado em um cantinho. "É verdade que o cara fez isso com você?"

Reginaldo Leme, em entrevista ao Casão Pod Tudo, em abril deste ano

Netflix
Gabriel Leone como Ayrton em "Senna"

'Cavando' outro emprego

Em 1992, Senna descobriu a existência de uma cláusula do contrato do eterno rival, Alain Prost. A regra impedia que o brasileiro fosse contratado para ser companheiro de equipe do francês.

A informação irritou o brasileiro, que na época se oferecia publicamente para correr pela Williams —mesmo ainda disputando o mundial pela McLaren. A equipe de Frank Williams detinha o melhor carro do grid na época e garantiu 10 vitórias nas 16 provas disputadas durante a temporada. Alain Prost terminou a temporada como campeão mundial pela quarta vez na carreira.

Senna foi contratado pela Williams apenas no início de 1994, quando Alain Prost se aposentou. Eles se aproximaram após deixarem de ser rivais nas pistas. "Eu conheci o verdadeiro Ayrton dois ou três meses antes de sua morte", lembrou o francês ao Esporte Espetacular em 2013.

Ele [Prost] está agindo como um covarde. Deveria estar preparado para correr contra qualquer pessoa, em qualquer condição, e não do jeito que ele deseja. Tudo tem sido facilitado para ele com antecedência. É como se você quisesse disputar uma corrida de 100 metros usando um tênis, enquanto os outros estão correndo de chinelos.

Ayrton Senna, em entrevista coletiva durante a temporada de 1992

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