A comédia está órfã

Adeus a Dona Herminia: humorista Paulo Gustavo morre aos 42 anos, em decorrência da covid-19

Ana Carolina Silva De Splash, em São Paulo Globo/Divulgação

No Brasil, ninguém fez humor como Paulo Gustavo, que morreu hoje (4), aos 42 anos, vítima da covid-19. O ator conquistou o público brasileiro com seus textos e personagens populares, capazes de divertir —e despertar identificação em— gente de todo tipo, classe social e ideologia.

Com piadas aceleradas e espontâneas, um humor muito físico e frases que todo brasileiro já ouviu no dia a dia, ele brilhou no papel de mulheres cômicas e fez até os surtos de mãe serem pop: todo o mundo ama Dona Herminia!

Mas a alegria chegou ao fim. Internado desde 13 de março, Paulo Gustavo se foi pouco depois de conquistar o merecido espaço que ainda faltava em sua carreira: em dezembro de 2020, depois de anos de sucesso no cinema, na TV paga, no teatro e na internet, ele enfim fez o país rir na TV aberta com um especial de "220 Volts", na Globo —reprisado após a final do "BBB", no lugar do "Profissão Repórter".

Paulo Gustavo é um caso raro de sucesso em todas as mídias e é dele o recorde de filme que mais faturou em bilheterias na história do cinema nacional. "Minha Mãe É uma Peça 3" levou mais de 11,5 milhões de espectadores às salas do país e rendeu mais de R$ 180 milhões. O número total da trilogia é impressionante: a franquia vendeu mais de 25 milhões de ingressos e estava prestes a virar série de TV.

Não à toa marcas (e até um banco) contrataram um homem vestido de mulher para expor seus produtos em propagandas.

Se Dona Herminia representa a mãe brasileira, parece seguro dizer que a comédia nacional ficou órfã sem Paulo Gustavo.

Globo/Divulgação

Não tem como arrastar quase 12 milhões aos cinemas e não ter evangélico, católico, pobre, rico. Meu grande orgulho é tocar o coração de todo tipo de gente.

Paulo Gustavo, no "Conversa com Bial", da Globo

Eu estou muito feliz e não só pelos números, mas por ter levado tanta gente para assistir a uma história tão linda de amor, tolerância e inclusão.

Paulo Gustavo, ao site "Gente IG"

Veja fotos do humorista e ator Paulo Gustavo

'Semipânico' na TV

Foram diversos projetos para o cinema com "Vai que Cola", "Minha Mãe É uma Peça", "Os Homens São de Marte" e "Minha Vida em Marte", além de muitas noites de teatro com "Hiperativo" e outros espetáculos. Independentemente do formato, o ator trabalhava muito em quase todo lugar, menos na TV aberta.

A Globo só foi dar a ele o merecido espaço em dezembro de 2020, com um tardio especial de fim de ano para "220 Volts"; era um teste para um possível programa solo que, agora, ele nunca terá.

Na época, falou sobre o orgulho do programa e também sobre o receio de se contaminar com o coronavírus durante as gravações. "Ficamos com medo de gravar por causa da pandemia. Parecia que estávamos em uma sala de cirurgia no Projac, de tantos protocolos. Dava medo de pegar coronavírus, mas foi legal. A energia da gravação foi o máximo", comemorou, em entrevista à Folha. A contaminação, no entanto, aconteceu meses depois.

Na TV fechada, por outro lado, o rosto de Paulo Gustavo aparecia tanto —com "220 Volts", "Vai que Cola" e "A Vila"— que é curioso pensar que ele tinha vergonha de ir a programas de televisão. Não gostava de dar entrevistas e afirmava que se sentia desconfortável como convidado de qualquer atração. Esse sentimento ele descrevia como um "semipânico", mas tudo mudava quando estava trabalhando com um roteiro escrito por ele próprio.

Era assim que Paulo Gustavo se sentia em casa.

Cada personagem criado por ele parecia ser uma armadura que o colocava no controle da situação e tornava as câmeras de TV menos ameaçadoras. Dá para entender tanto sucesso: aos olhos do público, o ator era um mensageiro que fazia graça com os problemas e dramas do dia a dia. E, sob a perspectiva do humor, as crises já não pareciam tão grandes assim.

VICTOR POLLAK/Globo VICTOR POLLAK/Globo

O furacão Herminia

O nome de Paulo Gustavo já era conhecido no humor desde 2004, quando participou do espetáculo "Surto", mas foi com uma homenagem bem-humorada à própria mãe, Déa Lúcia, que o comediante se tornou lendário. Inspirado pelo jeitinho desbocado da mãe, ele deu à luz Dona Herminia e mostrou ao mundo como enxergava a grande heroína de sua vida.

Eu dou uma amenizada, porque a minha mãe é muito pior [risos]. Mas, ao mesmo tempo, é muito amorosa, amável, defende a gente com unhas e dentes. Não imagino a minha vida sem ela. Mãe, eu te amo! - Paulo Gustavo no "Encontro com Fátima Bernardes", da Globo, em 2013

Os monólogos de Dona Herminia em "Minha Mãe É uma Peça" nasceram no teatro, em 2006, mas ultrapassaram os limites dos palcos e chegaram aos cinemas em 2013.

Com seus bobes no cabelo, trejeitos espalhafatosos e bordões que todo o mundo já ouviu ("você não é todo o mundo!"), dá para entender por que a personagem conquistou o Brasil: ela está em todos os lares. Até Paulo Gustavo transcendeu a própria paródia e acabou confessando que, com os filhos, reproduzia alguns comportamentos protetores típicos de Dona Herminia.

Teve um dia que meu filho Gael não queria dormir de jeito nenhum, fiquei ali por horas. Aí teve um momento em que ele dormiu muito, e eu cheguei a encostar nele para ver se estava respirando. - Paulo Gustavo, em conversa com Sabrina Sato

Reencontre Dona Herminia

Daniel Mobilia/Folhapress

Minha mãe é uma peça (e aliada do público LGBTQ)

Déa Lúcia, que se despede do filho agora, está eternizada em "Minha Mãe É uma Peça". Paulo teve a mãe como primeira e maior inspiração para criar Dona Herminia, mas a personagem também deu voz a outras mulheres da família.

Ele diz que eu sou pior, que a Dona Herminia é minha versão melhorada. Na realidade, é um clã. A minha avó era Dona Herminia, a minha mãe, as minhas primas... A família toda é Dona Herminia. E Paulo Gustavo é idêntico! - Déa Lúcia, mãe do humorista, ao canal de Murilo Ribeiro no YouTube

As mais de 11 milhões de pessoas que assistiram ao terceiro filme da franquia viram um casamento gay no cinema. O filho de Dona Herminia, Juliano (Rodrigo Pandolfo), casa-se com o namorado e ouve a mãe discursar, emocionada, sobre aceitação e tolerância.

A comédia mais vista do Brasil —segundo filme mais assistido na história do cinema nacional— foi aliada de muita gente da comunidade LGBTQ, que levou suas mães ao cinema para ouvir a personagem ultrapopular falar sobre respeito.

Toda mãe, rica ou pobre, tem uma coisa de Dona Herminia. Muitas mães começaram a olhar os filhos gays de outra maneira porque Dona Herminia lidou bem com essa questão. Basta amar. E os filhos levavam as mães e as avós para dar um toque a elas. - Déa, ao canal de Murilo Ribeiro no YouTube

Eu não aceito uma mãe que não abrace seu filho. É amor. Se você não abraçar seu filho, você o joga no mundo... E o mundo é mau. Então, não importa que seu filho seja gay, o que importa é ética, profissionalismo, compostura e respeito.

Déa Lúcia, mãe de Paulo, ao canal de Murilo Ribeiro no YouTube

Reprodução/Instagram

Família feliz

Os pequenos Gael e Romeu são os bebês do ator com o dermatologista Thales Bretas, com quem era casado. Em "Minha Mãe É uma Peça 3", há uma cena com participação especial do marido de Paulo Gustavo e das crianças: Dona Herminia vê o trio de personagens desconhecidos e se emociona ao pensar no amor.

Paulo Gustavo, no entanto, recebeu críticas pelo fato de a cena do casamento não ter um beijo entre os personagens. Mesma coisa aconteceu na cerimônia que marcou sua união com Thales, na vida real. Nada de beijo no altar. O ator foi a público dizer que a cena do beijo não havia sido cortada do filme, simplesmente não existia no roteiro. "É uma cena que eu quis fazer, quis lembrar isso que eu vivi que foi muito bonito, inesquecível na minha vida e quis inspirar outras pessoas", explicou.

Ao UOL, em 2019, Rodrigo Pandolfo disse que a escolha de Paulo para o roteiro partiu do medo de que um beijo homoafetivo pudesse afastar o público conservador de um filme que, mesmo sem beijo gay, tinha muito a ensinar sobre tolerância.

Sorrir é resistência

Tem tanta coisa que eu queria dizer para vocês antes de ir embora... Vou tentar, tá? Vamos combinar que este ano serviu para mostrar que a gente não vive sem a graça, sem humor. O humor salva, transforma, alivia, cura, traz esperança para a vida da gente. Essa pandemia também deixou bem clara a importância da arte nas nossas vidas, vocês viram, né? Este ano foi difícil? Foi. E foram as artes dramáticas, a música, o cinema, a dança, enfim, foi a cultura em geral que nos ajudou a seguir em frente e tornar tudo mais leve.

Paulo, em discurso na Globo no fim de 2020

Eu fico muito orgulhoso por ser artista e por ter a comédia tão forte em mim. Eu faço palhaçada, você ri, eu fico com o coração preenchido aqui. Eu me sinto realizado por estar conseguindo te fazer feliz. Rir é um ato de resistência; a gente está precisando dessa máscara chata para proteger o rosto desse vírus e, infelizmente, essa máscara esconde algo muito precioso para nós, brasileiros: o sorriso. Ele está tapado e tem de ficar tapado, mas ele existe e não vai deixar de existir. A gente não vai deixar de sorrir e de ter esperança.

Paulo, em discurso na Globo no fim de 2020

Topo