Onde o crime compensa

Como interesse por true crime se tornou arma do sucesso de produções audiovisuais

Fernanda Talarico e Laysa Zanetti de Splash, em São Paulo Adriano Vizoni/Divulgação
Divulgação/HBO Max
Daniella Perez foi assassinada em 1992 e teve sua história retratada em 'Pacto Brutal', um dos grandes sucessos do true crime brasileiro

Quando "Dahmer: Um Canibal Americano" estreou explodindo de sucesso na Netflix, ela rendeu, além de prêmios de melhor ator para Evan Peters, uma série de polêmicas. Famílias de vítimas e sobreviventes do assassino criticaram publicamente a atração, afirmando que a mesma romantizava os crimes e o criminoso.

A polêmica não fica somente no campo internacional. Ao primeiro sinal de que os filmes sobre Suzane von Richthofen estavam sendo produzidos, uma onda de comentários negativos invadiu as redes sociais para questionar se era correto dar espaço para a história de um crime brutal que chocou o país.

Outro grande sucesso nacional foi "Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez", que chegou em 2022 à HBO Max e se tornou a produção brasileira mais assistida da plataforma.

O debate tem crescido junto com a quantidade exorbitante de ficções e documentários sobre crimes reais, brasileiros ou internacionais, que lotam plataformas de streaming. Por isso, surge o questionamento: afinal, há uma forma correta de se fazer (e consumir) produções de true crime, sem idealizar a figura do assassino?

Por que nos interessamos por true crime?

Três características tornam o true crime atraente para a audiência, como explica a professora Whitney Phillips, da Universidade de Oregon, nos EUA.

  • O elemento do mistério
  • A satisfação de ver um caso sendo resolvido do conforto de seu sofá
  • A ideia de assistir a essas produções para se proteger ou preparar para potenciais ameaças.

Divulgação/ Netflix

O interesse por crimes não é de agora. Quando a gente olha para um crime, de alguma maneira, a gente está olhando também para a natureza humana. O tipo de crime cometido em uma determinada sociedade diz muito sobre aquela sociedade. O ser humano é o único que não mata unicamente por sobrevivência, e sim por dinheiro, ciúme, poder. As razões pelas quais a gente mata são razões que dizem muito sobre nós mesmos.

explica a roteirista Flávia Vieira, em entrevista a Splash

Divulgação
A roteirista Flávia Vieira fala sobre o crescimento do true crime no Brasil

Para Flávia, diretora e roteirista que atuou por 10 anos no jornalismo diário da GloboNews antes de se dedicar a roteiros de projetos selecionados, o que desperta a curiosidade é a busca por entender como funciona a cabeça de uma pessoa.

"Quando um crime de grande repercussão acontece, um crime que contraria muito aquilo que a gente entende como o caminho natural da sociedade e das nossas relações éticas e morais, isso chama a atenção de todo mundo, e as pessoas se voltam para isso. Dentro dos nossos acordos sociais, não é natural um pai matar uma filha, ou estar envolvido na morte de uma filha. O nosso olhar se volta para aquilo porque toca na nossa natureza, no nosso lado sombra."

Os números não mentem

Netflix/Divulgação

Isabella: O Caso Nardoni

3 semanas no top 10 global de filmes em língua não inglesa; chegou ao top 10 em 16 países, incluindo Brasil, Argentina, Croácia, Suíça e Irlanda.

Ser Baffo/Netflix

Dahmer: Um Canibal Americano

3ª série de TV em língua inglesa mais popular da Netflix, com 115,6 milhões de visualizações e mais de 1 bilhão de horas assistidas; 7 semanas no top 10 global de séries em língua inglesa; chegou ao top 10 em 92 países (curiosidade: na República Tcheca, ficou 12 semanas no top 10).

Divulgação/Netflix

Elize Matsunaga: Era Uma Vez um Crime

2 semanas no top 10 global de séries em língua não inglesa; chegou ao top 10 local apenas no Brasil.

Reprodução
'O Caso Evandro' foi lançado em outubro de 2018 e tornou a história famosa

Como fazer um bom true crime?

Dois podcasts que retomam crimes notórios explodiram em sucesso no Brasil quando o formato de true crime ainda dava passos incipientes em âmbito nacional. Um deles foi "O Caso Evandro", lançado em outubro de 2018 dentro do Projeto Humanos, de Ivan Mizanzuk. O outro foi o igualmente renomado "Praia dos Ossos", da Rádio Novelo, que se aprofunda no assassinato da socialite Ângela Diniz pelo seu então namorado Doca Street.

Em ambos os projetos, a estrutura que os transformou em sucessos se assemelha. São casos que foram bastante noticiados em suas respectivas épocas, mas que tiveram soluções contraditórias ou questionáveis. Em um sentido amplo, os dois também abordavam questões complexas e são capazes de induzir reflexões pertinentes sobre a legislação brasileira, a impunidade e traços antropológicos da nossa vida em sociedade, como machismo, intolerância religiosa e violência contra a mulher.

Em "O Caso Evandro" e "Praia dos Ossos", as repercussões foram além do mero revirar de crimes. A respeito da investigação do desaparecimento de Evandro Ramos Caetano, a Justiça do Paraná decidiu que áudios encontrados pelo jornalista Ivan Mizanzuk, em que réus confessam supostos crimes de tortura, podem ser usados como prova no julgamento de revisão criminal do caso.

Já o "Praia dos Ossos" reviveu o debate sobre a polêmica tese da legítima defesa da honra, que livrou Doca Street no primeiro julgamento. Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o uso da tese, entendendo que a mesma é inconstitucional.

Acervo UH/Folhapress A socialite mineira Ângela Diniz foi morta por Doca Street, em 1976, e sua história foi contada no podcast 'Praia dos Ossos'

A socialite mineira Ângela Diniz foi morta por Doca Street, em 1976, e sua história foi contada no podcast 'Praia dos Ossos'

Essa relação entre o esmiuçar de um crime e o que isso diz sobre nós e nossas estruturas sociais é algo que estudiosos apontam como crucial para um bom true crime. O debate, vale ressaltar, não é sobre o público "poder ou não poder" consumir séries, filmes e podcasts do gênero, e sim sobre o discernimento entre quais são os pontos interessantes de se levantar nessas produções, e o que reproduz estereótipos e pensamentos coletivos prejudiciais.

"Sempre que eu assisto a um programa como esse, seja documentário ou ficção, eu me pergunto: qual é a leitura que aquela obra vai me possibilitar fazer sobre aquele fato e que, sem ela, eu não poderia fazer? Porque esse é o grande desafio do documentarista, pensar no ponto de vista", elucida Flávia. "Geralmente, em casos de true crime, todo mundo já conhece a história."

Você já tem milhões de versões sobre essas histórias. Então, quando alguém resolve se debruçar sobre tudo isso, eu sempre penso em como esse distanciamento e o olhar desse grupo de profissionais vão trazer algo novo.

Flavia Vieira

Marcinho Nunes/Divulgação
O produtor Marcelo Braga, da Santa Rita Filmes, e o diretor Maurício Eça, responsáveis pela trilogia do crime de Suzane e irmãos Cravinhos

Para o diretor Mauricio Eça, responsável pelos filmes do caso de Suzane von Richthofen, estrelados por Carla Diaz, da Santa Rita Filmes, o essencial em obras de grande repercussão nacional é mostrar, também, o que as pessoas querem ver.

No caso de Suzane, momentos como o enterro dos pais, e o choro da filha com o cabelo cobrindo o rosto diante dos caixões, ficaram tão marcados na cobertura que o público espera avidamente para serem reprisados com retoques cuidadosos de semelhança.

É uma coisa que sempre pensamos enquanto estamos desenvolvendo o roteiro: normalmente, as pessoas querem que a gente reproduza momentos icônicos, como no caso de Suzane que, no novo filme, há a cena que o público viu, à época, em uma foto no jornal, com ela chorando, usando a regata preta.

Maurício Eça

Adriano Vizoni/Divulgação Em 'A Menina Que Matou os Pais: A Confissão' é recriado o momento no qual Suzane von Richthofen chora no velório dos pais

Em 'A Menina Que Matou os Pais: A Confissão' é recriado o momento no qual Suzane von Richthofen chora no velório dos pais

'Não podemos fazer as pessoas revisitarem essa dor'

Flávia exemplifica com uma experiência própria o que ela considera importante na condução de alguma obra de true crime. A roteirista destaca que há dezenas de variáveis que influenciam no resultado final de um projeto. "Cada equipe, cada player, produtora e grupo de profissionais vai se posicionar eticamente de uma maneira diferente diante daquilo", reforça. "É um terreno muito pantanoso."

Sem citar o nome do projeto por questões contratuais, Flávia conta que trabalhou recentemente em uma sala de roteiro de uma produção, ainda inédita, que envolve crimes. A equipe em questão, segundo ela, era toda formada por mulheres.

Quando o material chegou na minha mão, [a produção] já estava no meio do caminho. Mas eu falei assim: 'Gente, não podemos fazer isso, mostrar a dor, fazer essas pessoas revisitarem a dor dessa maneira'. E, quando eu falei aquilo, o que eu propus era jogar fora tudo o que havia sido feito. Em um primeiro momento, foi aquele choque. Mas fomos conversando, pensando em caminhos e outras possibilidades. Com isso, trouxemos outras vozes e outros cenários que, até então, acerca daquela história, não tinham sido ouvidos.

Flávia Vieira

Fabio Rocha/ Divulgação
Linha Direta voltou à televisão em meio ao sucesso do true crime

A proposta de Flávia vai no caminho de evitar um ponto que é o centro de muitos debates no retrato de crimes reais. A linha tênue entre mostrar o crime e evitar a exposição dolorosa de vítimas, familiares e sobreviventes é um eterno ponto de discussão. Se, por um lado, há valor em resgatar histórias que podem já ter sido esquecidas, por outro, não se deve deixar de lado o pensamento crítico. Qual o preço que se paga por dar destaque e holofote a assassinos que despertam tanta curiosidade —e, algumas vezes, fascínio— em pessoas comuns?

"Se a gente for olhar, o interesse por crime é muito vivo no jornalismo, desde os tempos da rádio", contextualiza Flávia. "Depois, isso migra para a TV com programas como Linha Direta. Dentro do jornalismo, você tinha programas que iam mais mostrar imagens explícitas, e outros que tentavam relatar aquele fato com uma preocupação maior na preservação da imagem da vítima", aponta.

Flávia sugere que, atualmente, a preocupação de não ser tão explícito está atrelada ao maior acesso do público a informações. "As pessoas também não estão aceitando tudo. A gente está questionando mais, com mais acesso à informação. Por isso, acredito que a preocupação vem junto a uma sociedade que tem mais ferramentas para apontar abusos, para dizer quando não está legal. O desafio para quem produz é maior em relação à necessidade de se ter cuidado com isso."

A respeito do filme e do documentário sobre o Maníaco do Parque, Marcelo Braga, produtor da Santa Rita Filmes - também responsável por "A Menina que Matou os Pais" - destaca que muitos deles tiveram a oportunidade de serem ouvidos pela primeira vez.

São mulheres comuns, que tiveram que mudar o percurso de suas vidas em função deste acontecimento tão sofrido que foi o ataque do Maníaco. No entanto, elas estão ali e o público poderá conhecer, por meio de seus depoimentos, como era a ação dele.

Marcelo Braga

[object Object] Silvero Pereira interpreta Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, no filme sobre o assassino em série

Silvero Pereira interpreta Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, no filme sobre o assassino em série

Paralelamente, há o debate sobre a questão ética por trás de um consumo exacerbado de crimes reais. Em artigo publicado no Gawker, a escritora Emma Berquist, que foi esfaqueada seis vezes em um parque na Austrália enquanto passeava com seu cachorro, sugeriu que o gênero cria paranoia em mulheres, principal audiência de programas do true crime. A hipervigilância que vem atrelada a isso, lembra Berquist, é um sintoma do estresse pós-traumático.

Do outro lado das câmeras, existem procedimentos para ajudar quem está trabalhando na produção, principalmente em cenas pesadas, como a reconstituição de assassinatos. É o caso das produções feitas pela Santa Rita Filmes. A Splash, Marcelo Braga diz contar com uma equipe especializada para ajudar os funcionários presentes em gravações violentas.

"Trazemos psicólogos e psiquiatras para acompanhar a produção. Caso algum funcionário, algum técnico, ou alguma pessoa sinta qualquer tipo de gatilho por estar contando aquela história, temos um canal de relacionamento imediato, para que a pessoa possa se abrir. Isso é muito importante, pois é preciso manter esse cuidado não apenas com equipe, mas com todo o clima durante a filmagem, porque não é algo fácil de se fazer."

Divulgação Divulgação

Missing White Woman

A síndrome de Missing White Woman, ou mulher branca desaparecida, é um termo usado por cientistas sociais para descrever um padrão em coberturas midiáticas que envolvem o desaparecimento de mulheres brancas, de classe média alta, consideradas atraentes. A frase propõe uma comparação com o quanto o desaparecimento de pessoas racializadas não desperta em se tratando de cobertura.

O mesmo padrão pode ser observado no true crime. A própria Santa Rita Filmes, conforme Marcelo Braga, diz se amparar em pesquisas de público para descobrir quais os crimes notórios mais lembrados pela população e, a partir disso, decidir quais casos são ricos o suficiente para serem transformados em filme, série ou documentário.

Nós fizemos uma pesquisa e, perguntando quais os crimes que as pessoas mais se lembram, o Maníaco do Parque era um dos primeiros. Por mais que tenha acontecido há 25 anos e não tenha tido tanta repercussão como a Suzane.

Marcelo Braga

Para Flávia, a síndrome também existe no Brasil. "A distribuição do dinheiro, no mundo inteiro, passa por questões raciais. Então, obviamente, o crime que envolve pessoas brancas comove mais, gera maior cobertura da imprensa, gera maior comoção das pessoas", aponta.

"Se olharmos os crimes que estão no jornal, há uma discrepância quanto ao destino do dinheiro e ao interesse público. A comoção, às vezes, é seletiva."

O tipo de comoção que esses crimes levantam também diz muito sobre a nossa sociedade. Por que a gente não olha para o tanto de criança preta que está morrendo no Rio de Janeiro com arma de fogo? Por que isso não gera produção? Por que a gente não está contando essas histórias, as histórias dessas mães que estão aí tentando encontrar, de alguma maneira, justiça?

Flavia Vieira

"Isso também conta uma história, que a gente vive em uma sociedade fundada na escravidão, que ainda tem o racismo como um de seus pilares. Infelizmente, a gente ainda vai precisar trabalhar muito para que a gente tenha mais equidade e uma sociedade mais justa e igualitária", finaliza.

Netflix/Divulgação Documentário 'Isabella: o Caso Nardoni' retoma caso que parou o Brasil há 15 anos

Documentário 'Isabella: o Caso Nardoni' retoma caso que parou o Brasil há 15 anos

True crime 'em excesso' faz mal?

Para o psicólogo, professor de psicanálise e mestre pela USP Ronaldo Coelho, embora os motivos que podem atrair uma pessoa para esse tipo de conteúdo sejam variados, não é impossível que alguém se interesse nele para alimentar ideias e planos criminosos.

"Há uma diferença muito grande entre uma série de suspense que humaniza os conflitos de toda ordem condizentes a um crime e os noticiários policialescos diários, ou mesmo podcasts que cumprem uma função única e exclusiva de desumanizar o outro e propagar a violência como solução de conflitos e problemas sociais. Estes são indiscutivelmente problemáticos", aponta. Para Coelho, programas com vieses deste segundo tipo podem alimentar um sentimento que aponta para o radicalismo.

"Esses programas alimentam o medo e a vulnerabilidade, gerando uma sensação de impunidade e de que o motivo dos males sociais seria uma fragilidade do sistema penal. Isso faz com que as pessoas comecem a acreditar que o país precisa de leis mais duras e policiamento mais truculento para melhorar. O conteúdo desses programas não é ruim somente para as pessoas, individualmente, mas se constitui como um importante problema social. O resultado é nefasto tanto do ponto de vista intrapsíquico como social."

Já a psiquiatra Jéssica Martani explica que, quando estamos assistindo a algum filme ou série, o cérebro não é capaz de identificar se aquilo é ficção ou realidade.

"Se o nosso corpo for constantemente submetido a esse tipo de estresse, podemos nos sentir mais cansados e com menos foco. Para pessoas que sofrem com ansiedade e depressão, pode haver gatilhos se a pessoa se identificar com alguma situação. Por isso, cada um deve observar o que sente frente a essa temática, analisar os limites e estar atento ao que faz bem, pois gatilhos externos são importantes e podem influenciar o nosso humor."

O que vem por aí?

Títulos brasileiros em produção

  • "Volta Priscila": produção documental do Star+ sobre o desaparecimento de Priscila Belfort; estreia em 2024.
  • "Candelária": minissérie da Netflix em quatro episódios sobre a Chacina da Candelária, ocorrida em 1993, no Rio; ainda sem data de estreia.
  • Caso Maníaco do Parque: os crimes de Francisco de Assis Pereira serão retratados em duas produções do Prime Video, a série documental "O Maníaco do Parque: A História Não Contada" e um filme; a estreia de ambos está prevista para 2024.
  • Caso do Castelinho da Rua Apa: os assassinatos que aconteceram em 1937, no Castelinho da Rua Apa, em São Paulo, ganharão um filme, anunciado em 2021; ainda não há data de estreia.
  • "A Menina que Matou os Pais - A Confissão": investigação do assassinato de Manfred e Marísia von Richthofen; terceiro filme sobre o caso, a obra se passa nos oito dias entre o crime e a confissão de Suzane e os irmãos Cravinhos; estreia em 27 de outubro deste ano.
  • Caso Bárbara Penna: filme sobre a história de Bárbara Penna, que, em 2013, sofreu uma tentativa de feminicídio e teve 40% do corpo queimado pelo então companheiro. O projeto tem o envolvimento de Juliana Paes; não há previsão de lançamento.
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