A imagem do cão nos versos de Eugênio (na imagem) não é fortuita. Quem vive nas ruas, de certa forma, desperta menos empatia nas pessoas do que um animal abandonado.
Eugênio costumava dormir na Rua Anchieta, no centro da cidade, bem em frente ao Pateo do Collegio, local histórico onde foi levantada a primeira construção da atual cidade de São Paulo.
Ainda hoje, essa estreita rua é apinhada de pessoas em situação de rua. "Está pior do que na minha época. Essa gente é invisível para a sociedade", comenta o poeta ao refazer com a reportagem o caminho de tantas noites.
Cada um que está na rua é uma história, sofre as consequências de estar ali. Você vê todo tipo de sofrimento. Você dorme sem saber se vai acordar. Mais de uma vez acordei com gente morta ao meu lado. Era uma surpresa constatar que eu mesmo estava vivo.
Falta de higiene, alimentação precária e exposição constante à violência e às intempéries passaram a fazer parte de seu cotidiano.
Não era apenas violência entre moradores de rua, mas também policial. Vejo isso até hoje, não mudou nada. Vivo ao lado do inferno, vendo as ações na cracolândia. É bomba todo dia. Não resolve nada.
Segundo o poeta, não houve nenhum grande trauma em sua vida que o tenha levado a sair de casa. Passou a infância e a adolescência em Suzano, município da região metropolitana de São Paulo, no seio de uma família estruturada, sendo o mais velho de dois irmãos —no colégio, cursou até o fim do ensino médio.
Já adulto, casado, pai de duas filhas, não percebeu o vício se apoderando de sua vida. Foi apresentado ao álcool ainda na década de 1970 e, de acordo com seus cálculos, na segunda metade dos anos 1990 se tornou um dependente.
"Um passo em falso e perdi o controle da bebida. Aí não tem acordo. Você perde emprego, perde família, nada mais importa". Em 2001, aos 48 anos, saiu de casa para nunca mais voltar.
Atualmente, só tem contato com o irmão mais novo. Das filhas, hoje na faixa dos 40 anos, sabe pouco ou quase nada. "Sei que minha mais nova ficou sabendo quando lancei o livro, porque ela mora em Milão e entrou em contato com meu irmão", diz, disfarçando para esconder o desconforto quando toca nesse assunto.
Perguntado se acha que ela poderia tentar falar com ele após ver esta reportagem, ele desconversa: "Nem penso nisso. A gente perde o vínculo. É muito tempo".
Nem mesmo quando lutou contra a tuberculose, submetido a um tratamento severo, tentou reatar com a família. "A verdade é que nunca me predispus a procurar ajuda. Meu temperamento é esse. Não culpo ninguém".
O poeta diz que a literatura é uma forma também de recuperar o referencial perdido. Uma busca por sua própria história.
Hoje, Eugênio divide um quarto do albergue com mais dois idosos. Mesmo lá, devido a sua quietude, pouca gente sabe que ele escreve. "Ele interage muito pouco, mas é sempre muito cordial. Passa bastante tempo dentro do quarto e, mesmo com seus companheiros ali, quase não tem relação", revela o psicólogo Diego William de Faria Rennó, que trabalha no abrigo.
Dentre os funcionários, Faria Rennó é um dos poucos privilegiados para quem Eugênio mostra o que escreve.
"Faz dois anos que ele frequenta o abrigo e, no último ano, ficou direto por causa da pandemia. Ele não mostra o que escreve para as pessoas daqui. Um dia, ele mesmo me apresentou seu trabalho", conta.
Rennó ressalta ainda que existe uma biblioteca à disposição dos moradores no centro de acolhida, e que o poeta passa boa parte de seus dias por lá.
"Eu não me envolvo com as pessoas. Fico no meu canto. Por esse meu jeito de agir, é natural que os outros moradores não se aproximem tanto", confirma Eugênio.