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Virei um cavaleiro implacável com Hollow Knight, mas me arrependi

Hollow Knight contra chefe - Divulgação
Hollow Knight contra chefe
Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

22/10/2020 08h00

Eu amo jogar Hollow Knight, o "metroidvania" da Team Cherry lançado em 2017, e isso já rendeu várias conversas de madrugada com o Marcos Silva. Por isso o convidei para falar sobre esse universo incrível e como a abordagem de game design e narrativa impactam na experiência dos players. Marcos Silva é cofundador da Sue The Real, desenvolvedor de jogos e parceiro das minhas ideias malucas. :)

O que é uma simbiose?

Simbiose: interação entre duas espécies que vivem juntas. (Dicio)

Sem dúvida, um dos aspectos mais transformadores dos games em relação a outras mídias é o fato de que por muitas vezes podemos tomar decisões, alterando constantemente aqueles mundos e seus resultados. Isso, definitivamente, também nos muda enquanto jogadores (as). Toda vez que jogarmos, trazemos algo do lúdico para o para o mundo real e vice-versa. Seja um aprendizado, um incômodo e até mesmo uma memória muscular.

Você já se pegou tão imerso jogando quem nem precisa pensar em como vai apertar os botões do teclado ou controle? Como se aquela parte do jogo, ou aqueles movimentos do personagem, já estivessem internalizados em você?

Nesse exato momento de simbiose entre pessoa e o jogo, quem está no controle das coisas: você ou o game?

Toda vez que jogarmos, trazemos algo do lúdico para o para o mundo real e vice-versa. Seja um aprendizado, um incômodo e até mesmo uma memória muscular

Eu assinei um contrato com Hollow Knight

Pois bem, eu quero dividir com você que assinei um contrato com Hollow Knight. Sem que eu percebesse, eu aceitei um acordo não dito, me comprometendo a progredir na história, buscando ficar cada vez mais forte. Precisaria ser mais ágil, mais atento e violento, afinal, os desafios eram progressivos.

O fato de assinar esse contrato, simplesmente apertando o botão de continuar todas as vezes que morria, me fez criar comportamentos que, dentro de uma estrutura geral, eu me alternava entre herói e vilão, quebrando esse senso de "bem e mal" de forma copiosa. Para superar o próximo desafio eu precisava ter mais voracidade. Em resumo, eu estava virando uma máquina de matar com propósito, seja ele ficar mais rico ou resolver um grande problema.

Mal sabia eu que essa progressão tanto era necessária quanto serviria para me ensinar uma das coisas mais dolorosas que já aprendi em um jogo.

Em resumo, eu estava virando uma máquina de matar com propósito, seja ele ficar mais rico ou resolver um grande problema

Hollow Knight - Divulgação/Team Cherry - Divulgação/Team Cherry
Imagem: Divulgação/Team Cherry

O arrependimento bateu

Próximo ao final do jogo, e aqui não vai nenhum spoiler, o mapa estava na ponta das mãos, meus movimentos eram leves, precisos e ágeis. Eu conhecia e identificava os padrões dos inimigos com facilidade. Tinha alcançado o poder que havia prometido quando assinei o contrato, até que fui surpreendido quando a narrativa me ofereceu uma habilidade nova.

Vou chamá-la aqui de Leitura. Em teoria, esse novo poder estava na contramão daquela curva de ascensão para o desafio final, cheia de habilidades que serviam para aumentar a agressividade no combate. Já essa ferramenta me ajudava a entender os personagens num campo mais sensível. Inclusive, ela era mais difícil de ser utilizada do que a própria lâmina principal, mas ela continha um efeito importante para entender o que não era dito, e aqui estou sendo literal.

O fato é que, obstinado pela derrota do mal que assolava aquele lugar e ao mesmo tempo tomado por um frenesi de guerra, fui colocado em duas situações que trouxeram extremo arrependimento.

Por duas vezes a mesma coisa aconteceu: eu apertei o botão por um impulso de combate e logo depois me arrependi por não ter usado a habilidade que comentei logo acima. Justo ela, que me faria entender mais sobre o personagem do que somente progredir no arco do jogo.

Hollow Knight - Divulgação/Team Cherry - Divulgação/Team Cherry
Imagem: Divulgação/Team Cherry

A primeira situação foi um desafio enorme. Fui colocado para testar todas as minhas habilidades, as de dentro do jogo, como pular, esquivar, bater, tudo ao mesmo tempo e as do mundo real, como ter paciência, perseverar e discernir.

No final desse desafio, na luta final, no ato derradeiro, foi a primeira vez que aconteceu. Movido por um instinto estritamente mecânico antes de mais nada, eu atingi o inimigo com uma precisão letal.

Da segunda vez, eu estava buscando recursos para melhorar minha espada, basicamente vagando por lugares já conhecidos. Numa parte específica, me deparei com um personagem. Em poucos segundos o reconheci: ele parecia mais nocivo do que o comum e novamente o impulso reapareceu. Eu havia matado o personagem sem que pudesse utilizar a habilidade que me faria entender o que havia acontecido com ele.

Hollow Knight - Divulgação/Team Cherry - Divulgação/Team Cherry
Imagem: Divulgação/Team Cherry

Batendo e aprendendo

Talvez seja difícil entender, mas Hollow Knight é um jogo que me fez ser muito reativo, principalmente em momentos de tensão.

Particularmente, eu não tinha a certeza se tudo isso que aconteceu era proposital, mas algo me dizia que talvez o mesmo jogo que me ensina a ter padrões repetitivos violentos também quer me fazer pensar no oposto.

Para descobrir uma resposta, eu procurei vídeos sobre essas duas partes que relatei e vi o meu comportamento se repetindo em outras pessoas, ainda quando existia uma abertura generosa por parte do jogo para que não acontecesse.

Hollow Knight - Divulgação/Team Cherry - Divulgação/Team Cherry
Imagem: Divulgação/Team Cherry

A conclusão que tenho é que a peça de game design e level design, assim como narrativa, foram feitas para que essas coisas pudessem acontecer, afinal o jogo nos apresenta essa temática desde o começo. Mas a sensação que tenho é que essas duas partes estão posicionadas em pontos onde as pessoas estão realmente aceleradas demais para frear com facilidade, e esse comportamento se torna recorrente, causando em muitas o mesmo arrependimento, inclusive pelo motivo de que não é possível voltar atrás nessas ações.

Da minha perspectiva pessoal, mesmo lutando pela melhora daquele mundo eu também fui infectado, mas minha arrogância não me deixava ver. Talvez se eu pudesse de dentro do jogo para fora usar aquela habilidade, a leitura, talvez se o personagem pudesse me atingir com esse poder, eu entenderia não somente o que o jogo fez comigo, mas também o que eu fiz com o jogo.

Mesmo lutando pela melhora daquele mundo eu também fui infectado, mas minha arrogância não me deixava ver

Pra quem quer saber mais sobre o game, vejam esse vídeo aqui, é realmente incrível!


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Marcos Silva é desenvolvedor de jogos, sócio fundador da Sue The Real, Analista de Sistema, streamer de games e músico amador. Ele faz lives na Twitch.TV/SueTheReal de segundas, terças e sextas-feiras às 20h. Entre os temas: desenvolvimento de jogos, negritude, Afrogames e jogatina com os seguidores.