Topo

Franceses apostam em animes e mangás para ganhar mercado de games no Brasil

Pablo Raphael

Do UOL, em Lille*

14/05/2014 18h52

Entre os dias 2 e 4 de maio, um RPG online na ativa há 10 anos, que ainda funciona com assinatura paga e conta com cerca de 2,5 milhões de jogadores todo mês foi o principal responsável por reunir milhares de pessoas em Lille, maior cidade do norte da França.

Se você pensou em “World of Warcraft” e BlizzCon, se enganou.  O nome da festa é Ankama Convention e o game festejado é “Dofus”, um produto local - a sede da Ankama, produtora do jogo, é na vizinha Roubaix. Durante três dias, os fãs foram apresentados às últimas novidades sobre “Dofus” e também de “Wakfu” e “Krosmaster Arena", games que fazem parte do mesmo universo fictício, o “Krosmoz”.

Além de jogar, o publico podia adquirir mangás, graphic novels, jogos de tabuleiro, figurines e outros produtos não apenas inspirados nos personagens dos games, mas que expandem o universo da Ankama e são integrados entre si. Uma pelúcia, por exemplo, sempre é acompanhada de um código numérico que, uma vez inserido no jogo, dá ao personagem do jogador uma mascote idêntica ao bichinho que comprou.

Para prender a atenção dos fãs, a Ankama adota a tendência da transmídia, integrando diferentes formas de entretenimento em uma grande e única experiência. A convenção em Lille é prova disso: fãs podem participar de torneios de “Dofus”, conversar com desenvolvedores e assistir à “première" da próxima temporada do anime de “Wakfu”, mas também podiam brincar em versões reais de atividades dos games, como o divertido Papabol, devidamente fantasiados como personagens dos games.

Embora sejam produtos tipicamente franceses, tanto os games quanto os quadrinhos e animações da Ankama possuem forte inspiração na arte japonesa contemporânea. A influência dos mangás e animes nipônicos é inegável e abraçada pela empresa.

O apelo visual funciona bem na França e em outros mercados importantes para a produtora, como a América Latina (“Dofus” é muito popular na Colômbia e na Argentina) e no Brasil, país onde a Ankama ampliou seus esforços no último ano e meio, com abertura de escritório próprio em São Paulo e investimentos tanto nos games quanto no lançamento de desenhos animados e mangás no país.

Cerca de 20 pessoas trabalham lá, número considerável para uma produtora recém-chegada ao Brasil. “A Ankama entendeu que o Brasil é um caminho sem volta e que o investimento é necessário, pois o retorno da comunidade veio rápido e a contento”, diz Paulo Fernandes, responsável pela operação da empresa no país.

Liderada por Paulo (ex-Riot Games, do mais que popular “League of Legends”), a operação da Ankama no Brasil planeja fazer do país um dos principais mercados de “Dofus” no mundo. “Não costumamos divulgar números, mas posso dizer que há centenas de milhares de jogadores ativos todo mês no Brasil˜, diz Paulo. “Acredito que temos potencial para chegar, no curto prazo, a milhões de jogadores dos produtos da Ankama”.

  • Para o co-fundador da Ankama, Camille Chaffer, e para o COO Olivier Comte, o Brasil representa "uma segunda vida para 'Dofus'"

“Este mês o português brasileiro já se tornou o segundo maior idioma falado por jogadores na Ankama”, revela o executivo. “Mas é um número muito próximo do espanhol, o que mostra que a América Latina como um todo, e em especial o Brasil, está consolidada como a segunda maior comunidade da Ankama”.

Para Olivier Comte, COO ('chief operation officer') da Ankama, o Brasil representa a “segunda vida de ‘Dofus’”. O executivo explica que, no passado, tinham apenas o jogo rodando em português, mas agora, com o escritório da Ankama em São Paulo, tudo mudou.

“Temos um time no Brasil sempre pedindo por conteúdo diferenciado, cobrando mudanças no jogo e explicando como adaptar os detalhes para o público brasileiro”. Para Olivier, atender as demandas dos fãs brasileiros, assim como os argentinos e colombianos, é algo novo para a Ankama. “É um verdadeiro desafio e estamos felizes em aceitá-lo”.

Antes da Ankama, Olivier foi CEO de uma das maiores publishers de games do Japão, a Bandai Namco. O executivo traça paralelos entre a gestão da gigante oriental com a mais enxuta empresa no norte da França. “Uma coisa que ambas as empresas têm em comum é o respeito pela comunidade. Olhe para a comunidade de fãs ao redor da Bandai, você vai ver pessoas loucas por ‘One Piece’, ‘Dragon Ball’ ou ‘Naruto’, é uma comunidade sólida, que vai a eventos, faz cosplays, se reúne no mundo todo”.

O fã de “Dofus” não é diferente do fã de “Naruto”, aponta o executivo. “Acredito que uma das razões do sucesso da Ankama está nesse incrível respeito pelos fãs, a forte conexão com a comunidade. Não estamos administrando um MMO, nós estamos interagindo com nossos fãs e com a comunidade”.

“Trabalhamos todos os dias para manter nossos jogadores felizes e entretidos”, explica Olivier.

Mídias diferentes, histórias diferentes

O objetivo da Ankama é entreter esse fã e fomentar o crescimento da comunidade ao redor dos games. Para isso, além de atualizações constantes nos jogos, a produtora aposta em animes, mangás, ‘action figures’ e muito mais, em uma estratégia que é conhecida no meio como ‘transmidia’.

Para Camille Chafer, um dos co-fundadores da Ankama, a transmídia é uma das tendências que definem o futuro do entretenimento. “Nós estamos fazendo isso há muito tempo e acho que estamos no caminho certo já que mais e mais pessoas estão seguindo esta tendência”.

“Você pode ver grandes companhias adotando estratégias transmídia, como a Marvel, por exemplo. Muita gente está tentando se mover dos quadrinhos para o cinema, dos filmes para os games e assim por diante”.

  • Pablo Raphael/UOL

    Para a Ankama, fãs dedicados são a base da longevidade de "Dofus"; game tem milhões de jogadores e 10 anos de idade

“Nós tentamos fazer algo um pouco diferente”, explica Camille. “Não tentamos contar as mesmas histórias em várias mídias. Na Ankama, tentamos contar histórias diferentes em diferentes mídias".

"O que você vê em "Dofus", por exemplo, você não vai ver em nenhum outro lugar. Se pegar um mangá, vai ler algo diferente. É o mesmo universo, com os mesmos personagens, mas é sempre uma história completamente nova, que acrescenta conteúdo e torna esse universo mais rico e profundo”.

E a inspiração nos mangás japoneses? “Bebemos em fontes européias e japonesas”, nota o fundador. “A maioria de nossos artistas estudou na Europa, mas somos fás de mangás japoneses e também das HQs norte-americanas”.

“Pegamos um pedacinho de cada um deles e tentamos misturar e fazer algo especial, algo novo: uma combinação da arte japonesa, européia e americana - algo colorido, fofo e, às vezes, até mesmo violento”.

Olivier complementa: “Estamos tentando fazer games que as pessoas querem jogar, filmes que eles querem assistir e, de certa forma, livros que eles querem ler. Não é apenas sobre fazer um jogo de sucesso, entende?”.

“A verdadeira força da Ankama está na criatividade, no desenvolvimento e na narrativa”, explica Olivier. “Para mim, a Ankama não é uma produtora de jogos, não é uma produtora de animações, é a soma de tudo isso. A maior força da Ankama está em inventar e contar histórias. Esse é o DNA da companhia”.

VEJA TRAILER DA SÉRIE ANIMADA DE "WAKFU"

  •  

E no Brasil?

No Brasil, porém, a história é outra: “Dofus" é o único produto da Ankama disponível no país. Para Paulo Fernandes, existem três obstáculos para levar a experiência transmídia da Ankama para o mercado nacional: a localização do conteúdo, as parcerias comerciais e a grande quantidade de produtos que a Ankama oferece.

“Todo o material da Ankama foi feito originalmente pensando na comunidade francesa”, explica Paulo. “Para que o jogador brasileiro tenha uma experiência bacana, a localização precisa ser muito bem feita, é um trabalho cuidadoso que precisa ser checado diversas vezes”.

“Encontrar profissionais que conseguem nos auxiliar na localização do francês para o português tem sido um grande desafio, mas não é impossível”.

“A experiência transmídia necessita de outras mídias para acontecer”, comenta. “No Brasil, a Ankama está começando a ser conhecida agora, é uma realidade diferente da França. Precisamos que outros meios de comunicação, como TV, editoras de quadrinhos e de livros apostem em nossos produtos para que esse conteúdo chegue ao mercado e atinja os jogadores”.

“A Ankama não é a Disney”, observa o COO Olivier Comte. “Não é fácil fechar negócios. Estamos crescendo passo a passo, trabalhando para que vários países e comunidades recebam nosso conteúdo. Não abrimos um escritório em São Paulo só para cuidar de um MMO, mas também para formar parcerias estratégicas com editoras, distribuidoras, para lançar “Krosmaster” (jogo de tabuleiro com bonecos colecionáveis), para que tenhamos no Brasil o mesmo sucesso que alcançamos na Europa e no Canadá˜.

Para Paulo, a grande quantidade de produtos que a Ankama oferece hoje aos jogadores europeus é um desafio para a equipe brasileira. “São todos muito legais e todos se complementam”, explica. “Procuramos priorizar para ter certeza que a experiência do jogador será espetacular com cada um dos produtos”.

“De tudo o que temos, fora os games, o jogo de tabuleiro “Krosmaster Arena”  é o que está mais próximo do lançamento nacional. Já estamos em fase de assinatura de contrato com um parceiro e, acredito, num prazo entre 3 e 6 meses o jogo estará disponível para o público brasileiro”.

“A série animada de ‘Dofus’ também se encontra em estágio avançado de negociação para chegar ao Brasil”, revela. “Estamos negociando com um ‘serviço premium de assinatura’ para exibir os animes em toda a América Latina. A série será dublada e legendada tanto em português quanto em espanhol”.

“Estamos conversando com uma editora brasileira para lançar o mangá ainda este ano no Brasil”, completa Paulo, que não pode revelar o nome das empresas envolvidas porque os contratos não foram assinados ainda.

“E vocês terão também as duas primeiras temporadas do anime de ‘Wakfu' no Brasil”, comenta o executivo-chefe da Ankama, Olivier Comte. “Para nós, essa é uma novidade fantástica, mas não posso falar em detalhes porque são informações sob embargo”.

CONHEÇA O MUNDO E OS PERSONAGENS DE "DOFUS"

  •  

Outros games da Ankama, como “Wakfu" e “Tactile Wars”, chegarão ao país em breve, devidamente localizados para o português.

“Wakfu”, que pode ser descrito como um sucessor espiritual de “Dofus”, apresenta gráficos melhores e um intrincado sistema social, econômico e ambiental, todo administrado pelos jogadores. Lançado em 2012 na França, o game online chegou à China em fase de testes poucos meses atrás e a experiência chinesa pode representar muito na abordagem empregada pela Ankama no Brasil: no gigante asiático, “Wakfu" é um jogo gratuito, monetizado via micro-transações.

“Entendemos que ‘Wakfu’ precisa se alinhar com a nova realidade do mercado de jogos. A oferta de conteúdo sem obstáculos para os jogadores, e eu não chamo isso de ‘free-to-play’ nem de ‘freemium' nem nada, é simplesmente dar ao jogador acesso ao nosso conteúdo de forma universal”, comenta Paulo.

“A experiência na China está sendo muito legal e é um modelo de negócios diferente do que temos na Europa. Estamos analisando todas as possibilidades, o que está dando certo e o que não funciona no jogo nesses territórios para, finalmente, lançar ‘Wakfu' em português”.

Quando? “Em breve”, responde o executivo. "O lançamento vai acontecer nos próximos meses”.

ANKAMA EM NÚMEROS

60 milhões de contas de "Dofus" criadas em 10 anos
2,5 milhões de jogadores mensais
"Dofus" disponível em 150 países
1,5 milhão de mangás vendidos
550 funcionários (20 no Brasil)
2 longa-metragens de animação em produção
3 selos editoriais
1 websérie com atores reais (“O Visitante do Futuro”)
1 jogo de tabuleiro (com 42 bonecos colecionáveis)

Comunidade apaixonada

Parece curioso como, mesmo com um game mais novo e de apelo social maior, a Ankama insista em disputar o mercado brasileiro, já apinhado de RPGs online, com o veterano “Dofus" como ponta de lança.

A seu favor, há o formato de assinatura bastante flexível e também os requisitos baixos de hardware para jogar. Rodando em um client em flash, “Dofus" não pede máquinas caras e poderosas, o que permite uma maior penetração do jogo no mercado brasileiro.

  • Pablo Raphael/UOL

    Para participar da Ankama Convention, o brasileiro Bruno Tadeu tatuou seu personagem favorito de "Dofus" na perna

Mais importante, já existe uma comunidade brasileira em torno do game. “Dofus” tem na América Latina seu segundo maior mercado (perde apenas para a França, terra natal do game) e a participação brasileira na comunidade tem crescido.

Assim como em muitos MMOs (como são chamados os jogos para multiplayer online para muitos jogadores), “Dofus" ultrapassa o status de simples hobby, se tornando parte do estilo de vida do jogador mais dedicado.

É o caso do brasileiro Bruno Tadeu (20 anos). O auxiliar de escritório de Guarulhos (SP) divide seu tempo livre entre o game (onde tem 15 personagens no nível máximo de evolução!) e os fóruns de “Dofus", discutindo com outros jogadores e funcionários da Ankama. Ao participar de um concurso da produtora valendo a viagem para a convenção, Bruno não titubeou e decidiu tatuar um personagem do game na perna.

“Fiz um desenho do meu personagem principal no ‘Dofus’, aquele com quem eu mais jogo. Fiz a tatuagem numa sessão só. Foram duas horas no estúdio”.

Caso de amor? Talvez, mas não tanto quanto o da argentina Adriana (22) e a espanhola Alicia (18). As jovens se conheceram jogando “Dofus”, cerca de quatro anos atrás.

  • Pablo Raphael/UOL

    Namorando à distância desde 2010, Alicia e Adriana se conheceram jogando "Dofus"

Em pouco tempo a amizade virou romance e o jogo serviu como ponto de encontro para o casal, separado pelo Oceano Atlântico. Apaixonada pelo game, Adriana se inspira nos personagens de “Dofus" para produzir seus próprios desenhos e chegou ao ponto de desistir do vestibular para Medicina e seguir a carreira artística.

Depois de tantos anos de jogatina e romance virtual, o casal se encontrou na Ankama Convention este ano. “Além de encontrar Alícia, eu queria conhecer a Ankama, ver com meus próprios olhos o lugar onde meus sonhos são fabricados”, diz Adriana.

Mas se o namoro já dura anos no jogo, no mundo real a coisa não é tão simples: “Minha família não reagiu muito bem. Minha mãe descobriu sobre o namoro por acidente, quando estava limpando minhas coisas. Meus pais não gostam da nossa relação, dizem que aceitam, mas eu sei que não”.

“Minha mãe sabe que estou com uma amiga que conheço de ‘Dofus’”, explica a espanhola Alícia. “Mas não sabe como estamos, qual é a nossa relação. Pensa que somos só amigas, ou bem, faz de conta que é isso”.

Após o fim da convenção, Adriana voltará para a Argentina e Alícia para Barcelona, onde vive. “Vamos nos separar, mas tivemos uns dias para estar juntas, para tomar fôlego até a próxima vez… que pretendemos que dure uns meses”, diz a sonhadora Alícia. “Até lá, temos a internet, e, claro, as partidas de ‘Dofus'".

Eventos e campeonatos

Não só as jogadoras fazem planos para o futuro, a Ankama também se prepara para expandir a operação no território brasileiro, com o lançamento de novos produtos, como os jogos, mangás e animes, mas também com a realização de eventos no país.

“No primeiro semestre, participamos do Anime Summer no começo do ano, tivemos também um evento próprio, o ‘Dofus Quest’, que foi uma busca pelos Dofus (ovos lendários dentro do universo do game) nas ruas de São Paulo”, comenta  Luiz D’Elboux, diretor de publishing da Ankama no Brasil. “Vamos participar do Anime Friends e estamos avaliando dois outros grandes eventos, então possivelmente a Ankama estará em mais três eventos no Brasil em 2014”.

“Teremos uma primeira versão beta de um torneio latino-americano de ‘Dofus' em comemoração aos 10 anos do jogo. No Brasil, a premiação será levar os jogadores vencedores para a Colômbia, onde vão disputar com os jogadores de outros países em um evento ao vivo”, diz Luiz.

Mas, em um cenário cada vez mais competitivo como o dos atuais campeonatos de games, será que “Dofus" conseguirá atrair jogadores para torneios sem remuneração? “A política da empresa não é essa”, explica Luiz. “Preferimos dar outros tipos de prêmios, desde produtos e acessórios até viagens como a do torneio na Colômbia, preferimos dar uma experiência de entretenimento ao jogador”.

Paulo Fernandes, líder da Ankama no Brasil, entretanto, não descarta a possibilidade de oferecer prêmios em dinheiro. “Entendemos que o cenário do e-sport despontou e não tem mais volta. Apesar de acharmos que proporcionar a experiência mais rica possível para o jogador seja um negócio legal, também estamos avaliando a possibilidade de premiações em dinheiro”.

Segundo o COO Olivier Comte, outros produtos da Ankama chegarão ao mercado brasileiro no futuro. Isso inclui a violenta série de graphic novels “Mutafukaz”, por exemplo. “Mas temos que ir aos poucos, um passo de cada vez”.

* O jornalista viajou à convite da Ankama.