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Deficientes físicos contam como superam limites para jogar videogame

Théo Azevedo

Do UOL, em São Paulo

30/07/2014 12h44

“Escolha o nível de dificuldade: Fácil, Médio ou Avançado”. Um dos elementos fundamentais em qualquer game é o desafio. Ser difícil, literalmente, faz parte do jogo. Mas num país em que 45,6 milhões de pessoas dizem ter alguma deficiência, segundo dados do Censo 2010, do IBGE, para certas pessoas há obstáculos extras a superar na hora de jogar videogame.

O UOL Jogos ouviu alguns portadores de deficiências físicas, que vão dos efeitos da paralisia infantil à cegueira. Todos são fãs de videogame e falam sobre suas experiências, no mínimo inspiradoras, com os jogos eletrônicos:

“Os games me dão acesso a mundos onde gostaria de estar e não posso”

Vivo em uma UTI do Hospital das Clínicas desde os dois anos de idade por causa da poliomielite, a paralisia infantil. Comecei a jogar videogame em meados da década de 80, com o Telejogo Philco. Foi uma descoberta: pela primeira vez podia fazer coisas que não tinha condições de fazer, como jogar tênis. Depois veio o Atari e, desde então, não parei mais.

Na época dividia quarto com o Pedro, que também tinha poliomielite e era meu companheiro de jogo – chegou a fazer um milhão de pontos no “River Raid”. Um ajudava o outro quando empacávamos em uma fase. Queria ter os videogames que o Pedro pudesse jogar, pois ele tinha um problema no braço. Em 1992 o Pedro pegou uma infecção – nossa traqueia é muito exposta a esse tipo de contaminação – e faleceu.

Perdi meu companheiro de jogo, mas vieram os modos online, que me dão acesso a mundos onde gostaria de estar e não posso. Posso me transferir fisicamente para o corpo de um personagem e isso é demais. Amo jogos de mundo aberto, como “World of Warcraft”. Não quero só “matar” inimigos, e sim explorar cada lugar, voar em um dragão e encontrar um castelo. “WoW” me oferece isso. Também adoro “Assassin’s Creed”: lembro quando joguei o primeiro e achava delicioso: ao invés de correr, caminhava devagar, só pra passear.

Os videogames me dão a oportunidade de desafiar a mim mesmo, de não desistir e seguir em frente. Minha movimentação melhor é com as mãos, o braço não tem sustentação, então não consigo jogar Kinect e mesmo o Wii é difícil. Fiquei aliviado quando mostraram o controle do PlayStation 4 pela primeira vez e eu vi que poderia continuar jogando. Estou me divertindo bastante com “Battlefield 4”. Consigo ganhar vários rounds. Só me preocupo com a evolução da pólio: hoje ainda tenho condições de jogar, mas e quanto ao futuro?

- Paulo Machado, 47 anos, de São Paulo

“Não me deixavam participar de campeonatos por eu não enxergar”

Perdi a visão quando era bem novo, por causa de um erro médico. Quando eu tinha quatro anos de idade, meu irmão ganhou um Mega Drive e um jogo chamou a minha atenção só pelo som: “Mortal Kombat”.

Comecei a jogar e a descobrir, por conta própria, golpes, sequências e poderes de cada personagem. Demorou um pouco até eu dominar a técnica, mas depois passou a ser algo natural.

Comecei a jogar outros jogos de luta, me guiando não apenas pela trilha sonora, mas também pela vibração do controle. É mais fácil encaixar uma sequência de golpes quando o adversário não me atinge.

Tentei participar de vários campeonatos, mas ouvia sempre a mesma coisa: “Você não pode jogar porque não enxerga”. Ficava frustrado. No ano passado, enfim, um torneio aceitou a minha inscrição. Meus adversários ficavam quietos, não falavam muito. Joguei “Tekken” no PlayStation 3 e fiquei em 2º lugar. Acho que consegui o respeito de todo mundo.

- Gabriel Neves, 23 anos, de São Paulo

Cartilha pela inclusão

Ter legendas, teclas reconfiguráveis, menus fáceis ver, ler e utilizar: estas são apenas algumas das recomendações da fundação norte-americana TheAbleGamers para tornar os games acessíveis a pessoas com deficiência, sejam estas limitações visuais, auditivas ou de mobilidade.

A fundação coloca à disposição dos desenvolvedores uma cartilha que detalha cada recomendação, avaliando inclusive o impacto de implementá-las em termos de custo e tempo de desenvolvimento. Rockstar, Sony e Deep Silver estão entre as empresas que procuram seguir as orientações da cartilha.

“Qualquer deficiente físico é capaz de jogar”

Estava soltando pipa, que ficou presa na fiação elétrica. Fui tentar tirá-la de lá utilizando um trilho de cortina para alcançar o fio quando sofri a descarga. Tinha apenas sete anos e no acidente perdi braços e pernas.

Sempre gostei de videogames e isso não mudou com as minhas restrições físicas. Nem mesmo cheguei a procurar joysticks especiais ou coisa do tipo, pois consigo manusear todos sem qualquer problema.

De vez em quando me deparo com alguma dificuldade, como quando a música no “Guitar Hero” envolve três combinações alternadas. Aí fica tenso!

Meu game favorito é “World of Warcraft”, mas também jogo “Watch Dogs”, “Counter-Strike”, “Pro Evolution Soccer 2014” e até mesmo “King of Fighters 2002” no fliperama. Não acho que a indústria de games negligencie este público, pois para mim qualquer deficiente físico é capaz de jogar.

- Paulo Henrique Palmeira, o “Kotoko”, 27 anos, de São Gonçalo (RJ)

VEJA COMO PAULO JOGA "GUITAR HERO"

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“Acho que a indústria não me vê como potencial cliente”

Perdi o antebraço esquerdo há dois anos em uma máquina injetora na empresa onde trabalhava. Uso prótese, mas prefiro jogar sem, utilizando o coto [parte redonda que fica após a perda da mão] para me movimentar com a alavanca analógica.

Por essa razão prefiro jogos que utilizam a alavanca esquerda para movimentação, mas fico frustrado, pois as opções são limitadíssimas para jogar na minha condição.

Curto games de futebol, mas mesmo assim só consigo jogar em um nível básico: com a mão direita uso os botões de chute e passe, mas sem poder driblar, tabelar e fazer outras firulas que o jogo possibilita.

Adorava jogar "Black" e outros games de tiro na época do PlayStation 2, mas agora é impossível - para olhar pra cima, por exemplo, é necessário mover o analógico com agilidade, o que para mim é impossível.

Acho que a indústria não me enxerga como potencial cliente, pois não vejo joysticks para quem joga apenas com uma mão. Já joguei Wii e Kinect, mas são bem cansativos; é difícil jogar mais que 30 minutos.

Com o joystick, antes do acidente, chegava a ficar mais de cinco horas no videogame.

- Alexandre de Aquino Ribeiro, 37 anos, de Poá (SP)

Joystick sob encomenda



Localizada na Inglaterra, a organização de caridade Special Effect (http://www.specialeffect.org.uk) já ajudou diversas crianças portadoras de deficiência física, como a paralisia cerebral, a ter acesso ao mundo dos videogames.

“Visitamos as pessoas para descobrir exatamente o que querem jogar e do que precisam para que isso aconteça”, explica Mark Saville, um dos responsáveis pelo projeto. “Feito isso, modificamos ou criamos equipamentos [joysticks] que permitam a interação com os jogos”.

Como não existe uma solução única, cada caso é um caso: “É preciso tempo, paciência e expertise, mas é algo que abre portas para a autoestima, a confiança e uma melhor qualidade de vida”, conta Saville, ao falar sobre a reação das crianças que jogam videogame pela primeira vez após passarem anos apenas olhando irmãos e amigos se divertirem.