Topo

"Never Alone" transforma folclore do Alasca em videogame de nova geração

Victor Ferreira

do Gamehall

18/11/2014 16h16

Há cerca de seis anos, a diretoria do Inlet Cook Tribal Council, uma instituição sem fins lucrativos voltada para o bem estar e qualidade de vida dos nativos da região do Alasca, nos EUA, encarregou a CEO Gloria O’Neill de encontrar uma forma de angariar dinheiro e expandir a percepção da cultura desta comunidade - os chamados Iñupiat - pelo público.

Agora, pessoas de todo o mundo terão a chance de aprender mais sobre os povos que vivem no Alasca com “Never Alone” (ou “Kisima Innitchuna”, na língua nativa), jogo criado em conjunto com dezenas de membros dos Iñupiat que utiliza as histórias e cultura desta população, lançado nesta terça-feira (18) para PC, PS4 e Xbox One.

UOL Jogos conversou com alguns dos principais membros responsáveis pela criação e elaboração do jogo, discutindo suas origens e quais são os próximos planos do primeiro estúdio criado por indígenas norte-americanos - que inclui até, se a oportunidade surgir, a criação de um título inspirado por índios brasileiros.

Procurando os valores certos

De acordo com O’Neill, duas razões principais levaram o Cook Inlet Tribal Council a escolher um jogo eletrônico como forma de representar a cultura Iñupiat. A primeira envolve a própria população das tribos, compostas por muitos jovens que jogam games regularmente.

A segunda, e talvez mais importante para o público de fora, envolve a percepção destas comunidades nos games, em geral compostas de estereótipos de esquimós: “Vimos como povos nativos são representados nos videogames e queríamos nos diferenciar e criar algo único por meio de nossos próprios valores e culturas”, declarou O’Neill.

Para trazer um jogo que representasse a vida e folclore dos Iñupiat corretamente, o CITC procurou por um grupo de desenvolvedores que tivesse “os valores certos” para a tarefa. A empresa escolhida, após anos de estudo e análise, foi a E-Line Media, produtora e publisher de jogos educativos criada por Alan Greshenfeld, ex-executivo da Activision.

Assim foi formado o Upper One Games (uma brincadeira envolvendo a localização geográfica do Alasca), unindo uma pequena equipe de desenvolvimento com cerca de 40 membros da comunidade Iñupiaq, incluindo escritores e contadores de história para uma experiência mais autêntica - o jogo é narrado utilizando a língua dos Iñupiat, por exemplo.

“Desde o início a E-Line e o CITC foram bem inclusivos no processo de desenvolvimento”, disse a CFO do CITC, Amy Fredeen. “Sempre que houvessem dúvidas ou incertezas sobre como prosseguir, haveria o comitê de certificação de qualidade para ajudar, e se o comitê não soubesse como prosseguir, entraríamos em contato com os anciãos da tribo para ver qual seria o melhor caminho a ser seguido”.

Utilizando o conhecimento dos colaboradores Iñupiat, foi possível criar um jogo de plataforma detalhando o modo de viver e as histórias do povo.

TRAILER MOSTRA O BONITO VISUAL DE "NEVER ALONE"

  •  

Uma garota e sua raposa

Em “Never Alone”, diversos elementos do folclore Iñupiaq foram utilizados para criar a narrativa principal, com foco especial para “Kunuuksaayuka”, história em que um jovem (que divide nome com o conto), se vê incapaz de caçar e sustentar sua família por uma série de nevascas e parte em busca da fonte do tempo ruim.

A Upper One Games, porém, tomou algumas liberdades com a narrativa, colocando a jovem Nuna como heroína do jogo e trazendo um companheiro animal para sua aventura - no caso, uma raposa do ártico.

Para realizar estas mudanças, porém, foi necessário pedir a permissão de uma das anciãs da comunidade, Minnie Gray. Na cultura Iñupiaq, os “direitos” das histórias pertencem às famílias que as relatam a mais tempo, como é o caso de Gray, filha do escritor Robert Nasruk Cleveland, que publicou o conto na coletânea “Stories of the Black River People”.

“Ela acabou nos dando permissão e, como um gesto de gratidão, sempre a informamos de coisas novas dentro do jogo”, disse Amy Fredeen. Como outra homenagem, as telas de loading do game usam trechos do conto original de Cleveland.

Ainda assim, “Kunuuksaayuka” é uma história relativamente curta, e os desenvolvedores trouxeram outros elementos do mundo das tribos do Alasca para o jogo final.

“Muito da jogabilidade vem do próprio ambiente, como ursos polares e nevascas”, disse Alan Gershenfeld. “E há partes específicas que não estão na história original mas fazem parte dos aspectos culturais dos Iñupiat”.

Um destes exemplos é a boleadeira, um dos principais equipamentos de Nuna no jogo. A própria raposa foi escolhida como companheiro após os desenvolvedores estudarem várias possibilidades de animais da área, de corujas até lobos e coelhos.

A cultura em harmonia com a natureza também tem efeito no modo em que cada personagem é controlada: Nuna é capaz de puxar objetos pesados e utilizar a boleadeira, enquanto a raposa consegue não apenas pular mais alto, como também é capaz de se comunicar com os espíritos que habitam a área para ajudar a menina a atravessar por lugares inacessíveis.

Mesmo rejeitadas como companheiras, as corujas ainda fazem parte do jogo, de certa forma, ao representar os colecionáveis do jogo, que liberam pequenos documentários que explicam mais sobre o passado, folclore e peculiaridades encontrados pelos povos do Alasca.

No total, há 24 destes vídeos a serem descobertos e tratam desde animais de estimação curiosos (como uma raposa ou, brevemente, um urso polar) até os perigos que as mudanças climáticas trazem ao mundo de vida da comunidade.

Visualizando o futuro

De acordo com O’Neill, a reação dos membros da comunidade - tanto jovens quanto velhos - em relação a “Never Alone” foi extremamente positiva.

“Quando fomos lá para cima houve certamente muito ceticismo por parte dos jovens”, elabora Gershenfeld. “Então foi bom termos muitos desenvolvedores que tem experiência em jogos AAA que podiam falar com eles em termos que pudessem entender facilmente”.

Já O’Neill lembra com alegria o “brilho nos olhos” dos anciãos ao verem o jogo - reflexo das histórias que ouviram ou viveram em sua infância - em ação.

Agora que o projeto inicial está completo, a Upper One Games já pensa em qual será o próximo jogo, ainda procurando explorar mais sobre diferentes povos e culturas do mundo. O’Neill, por exemplo, participou de uma conferência de tribos da Havaí, que pareciam gostar da ideia de criar um game para expandir seu folclore ao mundo.

“É incrível, para mim, que “Never Alone” esteja criando um novo gênero”, declarou animadamente a executiva.

Gershenfeld, por sua vez, não descarta a ideia de um jogo criado com base na cultura dos nativos brasileiros, desde que o interesse seja mútuo. “Com certeza estaríamos interessados em fazer um game [com uma tribo indígena brasileira], se alguma delas quiser entrar em contato conosco”, disse.