Deficientes visuais superam dificuldades para jogar videogame
Ao longo de seus 14 anos de vida, Ian Souto Izidoro nunca enxergou. Apesar de ter passado por mais de uma cirurgia, o jovem ainda lida com a perda total de visão causada por um problema congênito. Mas isso não o impede de acabar com os rivais nas lutas de "Street Fighter".
"Videogame é minha diversão principal", conta, enquanto desfere combos complicados com grande precisão. Antes mesmo da barra de vida do oponente esvaziar, ele já proclama que venceu. "O golpe faz um barulho um pouco diferente quando é o final", garante.
Guiando-se pelos sons, Ian é capaz de saber contra que personagem ele está lutando e se está conseguindo acertar seus ataques. Além de "Street Fighter", ele também se aventura em outros games de combate como "Injustice" e "UFC".
"Tem gente que vem jogar com ele e subestima, e no fim acaba perdendo. Se ele escolhe o Zangief no 'Street Fighter', por exemplo, ele raramente perde", diz o pai de Ian, Luiz Izidoro, 48. "Eles perguntam 'Como ele consegue?', e realmente não dá para explicar".
Ian consegue jogar bem em "Injustice" porque a ação se dá no plano bidimensional
Gamer desde criança
Na verdade, explicar a paixão do Ian por games é tarefa fácil para quem observa a relação do jovem com o pai. "Quando ele era bem pequeno, compramos uma revista que vinha com um jogo chamado 'Speedy Eggbert'. Era um game muito visual, então ele não tinha muita noção de como jogar", relembra Luiz.
"Mas o jogo permitia que o usuário criasse suas próprias fases. Então eu adaptei o jogo inteiro. Fiz de uma forma que quando ele ouvia o barulho do protagonista chupando um pirulito, ele sabia que tinha que ir para a esquerda. Quando ele bebia o leite, ele sabia que precisava voltar pra direita. Montei fases que ele conseguia seguir pelos sons, e ele chegava ao final".
Não são todos os jogos que permitem a edição de estágios. Com inteligência e criatividade, porém, Luiz aproveitou um dos que permite para ajudar a diversão do filho.
Ao lado do pai, Ian também tenta a sorte em jogos mais complexos, como "God of War" e "Grand Theft Auto". "Eu chego em uma missão, explico os controles pra ele, e às vezes ele derrota um monstro ou consegue passar de uma parte difícil que eu não consigo", afirma Luiz.
Para ajudar o filho a descobrir também jogos de computador, Luiz instalou em seu PC o DOSVOX, sistema operacional criado na UFRJ que permite a deficientes visuais usarem o computador com a ajuda de sons. E apesar de se divertir com os videogames, é no PC que Ian sente-se mais confortável, pois trata-se de uma plataforma aberta - diferente dos consoles, que ficam limitados às programações de suas fabricantes e não contemplam deficientes visuais.
Com paciência, é possível adaptar games para que deficientes visuais consigam jogar
Aventuras em texto
Com agilidade impressionante, Ian digita em seu laptop. A tela está apagada, por conta de um problema que Luiz disse que nem pensou em consertar já que o filho não a usa.
Como resposta a cada pressionar de tecla, o computador responde falando a uma velocidade assustadora. Para um ouvinte não treinado, as palavras parecem ruídos ininteligíveis. Mas Ian entende tudo perfeitamente, e até traduz cada comando para que eu consiga acompanhar: "Estou lutando contra um inimigo robô. Meus soldados estão atacando. Acabei de destruir as fazendas hidropônicas dele".
"Arcádia" é um jogo de estratégia tão complicado quanto qualquer "Age of Empires", mas que pode ser aproveitado por deficientes visuais por ser completamente em texto. Quando o computador fala, Ian consegue até mesmo jogar o RPG online "Esferas da Vida" e gerenciar seu time de futebol no "Football Manager".
"Muitos desses jogos são criados pelos próprios deficientes visuais", conta Ian. "Já joguei um que um deficiente de Sorocaba fez, de 'Dragon Ball Z'. Eu queria fazer um meu, mas precisaria saber inglês fluente e saber uma linguagem de programação".
Enquanto as grandes produtoras da indústria ignoram esse público, os próprios deficientes visuais tentam sanar a demanda por 'audiogames'. Alguns sites reúnem vários exemplos de jogos no estilo. Outros, apesar de raros, podem ser encontrados nas lojas de apps de celulares e tablets.
Luiz acredita que, além de servirem como distrações, os games tiveram um impacto positivo na vida do Ian. "Os jogos cobram uma boa dose de estratégia. Isso aguça o raciocínio, a inteligência dele. O raciocínio lógico dele é muito rápido, então por isso ele se adaptou bem com os games - ou vice-versa".
Jogos de texto permitem que deficientes visuais tenham experiências complexas
Entrando no jogo
Com 10% da visão em apenas um olho, Jeferson Coutinho, 36, ainda consegue se divertir com games, lembrando-se dos dias da adolescência quando jogava "Street Fighter" no fliperama com os amigos.
"Gosto muito de videogames, mas não é minha principal diversão", afirma. "Brinco com 'Candy Crush' e outros jogos no celular, e no computador jogo games de luta. Mas acabo precisando me guiar muito pelo som".
Já Luis Felipe Marcelino, 19, fica muito próximo da tela para conseguir acompanhar a ação de "Need for Speed" com sua baixa visão. "Gosto muito de tiro, de aventura. Jogava 'Crash Bandicoot' quando era pequeno no PlayStation. Mas preciso colar o rosto na TV, porque de longe não enxergo", relata.
Com diferentes níveis de dificuldade, os deficientes visuais entrevistados ecoam um apelo feito pelo pai do Ian: "Os sites e as produtoras deviam pensar mais nesse público". Apesar de ser uma mídia extremamente visual, os games podem - e são - aproveitados de muitas maneiras até mesmo por quem não consegue enxergar.
Da mesma forma que alguns jogos já oferecem modos para daltônicos, com esquemas de cores diferenciados, produtoras também poderiam incluir em seus projetos modos para usuários com baixa visão. Personagens em maior evidência, menos poluição visual na tela e textos com fontes maiores seriam mudanças simples de fazer, mas que facilitariam muito as vidas dessas pessoas.
Uma indústria que pensa sempre em expandir seu alcance para novos públicos podia também, portanto, encontrar uma maneira de acolher pessoas com deficiências visuais mais sérias.
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