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Vácuo em educação de Portugal inspira jogo sobre escravidão no Brasil

Imagem de "Thralled", jogo criado por estudante português ao descobrir mais sobre os horrores da escravidão no Brasil - Divulgação
Imagem de "Thralled", jogo criado por estudante português ao descobrir mais sobre os horrores da escravidão no Brasil Imagem: Divulgação

Victor Ferreira

Do UOL, em São Paulo

19/11/2015 14h31

Seis anos atrás, Miguel Oliveira migrou de Portugal até os EUA, procurando realizar seu sonho de desenvolver jogos por meio da Universidade do Sul da Califórnia (USC).

Em uma das aulas do curso, Miguel teve a ideia de criar um jogo protagonizado por uma mãe e seu bebê. A ideia evoluiu até virar "Thralled", jogo que se passa no Brasil colonial, no auge do tráfico de escravos africanos para as Américas - período que, segundo o desenvolvedor, é um assunto pouco estudado em escolas portuguesas.

"No meu país não se fala nada disso", disse em entrevista ao UOL Jogos. "Em 12 anos de escola aprendi pouco ou nada a respeito do assunto".

Em "Thralled" (que em tradução livre seria algo como "escravizada"), o jogador controla Isaura, uma escrava originária do Congo que foge de seu cativeiro, localizado em Pernambuco, no século XVIII, em busca de seu filho. O game é um jogo de plataforma com quebra-cabeças em que é necessário guiar Isaura e seu filho para segurança, escapando de seus caçadores.

De acordo com Miguel, "Thralled" tem uma estética um tanto surreal, com objetivo de fazer com que o jogador tente vivenciar o estado de opressão e terror deste período da História.

Para aprender mais sobre o assunto, o desenvolvedor procurou várias fontes de pesquisa, desde livros e sites de internet até conversas com pesquisadores e historiadores dos EUA ou mesmo aqui no Brasil.

"Descobri só aqui nos EUA que Portugal foi o maior país escravocrata do mundo", comenta. "Estima-se que 30% a 50% do mercado de escravos no Atlântico era de responsabilidade da coroa portuguesa, dependendo das fontes".

Miguel diz que o tema de escravidão e políticas coloniais, relativamente centrais na educação e cultura brasileira, são deixadas em segundo plano por educadores portugueses, que em geral dão foco a grandes conquistas como o descobrimento do Brasil, a volta ao mundo de Magalhães e o primeiro contato com o Japão.

Já em termos culturais, figuras como Machado de Assis e Castro Alves - cujos trabalhos envolviam, em grande ou pequena escala, a relação de mestres e escravos no Brasil - são pouco reconhecidos pelo público de Portugal. Curiosamente, segundo Miguel, as principais fontes sobre o assunto para ele antes de se dedicar a "Thralled" não vieram de obras portuguesas, mas sim de novelas brasileiras de época, como "Sinhá Moça" e "A Escrava Isaura", cujo nome chegou a inspirar a criação da protagonista do game.

O desenvolvedor indica que esta perspectiva está começando a mudar lentamente, em parte pela migração de moradores das antigas colônias - como Brasil, Moçambique e Angola - para Portugal.

"Só agora começamos a ter mais noção sobre isso. Meus avós, por exemplo, nunca tinham visto uma pessoa negra até terem por volta dos 40 anos".

Mesmo assim, Miguel afirma que é importante para seu país reconhecer os efeitos de suas políticas escravocratas no passado, que ainda influenciam as diversas formas de tráfico humano moderno.

"Ainda vivemos com as consequências do que nossos antepassados fizeram", opina.

Contratempos

"Thralled" está em desenvolvimento há quatro anos, desde a elaboração de um protótipo para o curso de design de games na USC, feita em colaboração com outro aluno.

No ano seguinte, Miguel fez um "pitch" do jogo como parte da aula "Advanced Game Development", discutindo o projeto com professores e figuras da indústria de games. Originalmente 24 estudantes trabalharam nesta versão de "Thralled", mas eventualmente o número de pessoas caiu para seis.

Em 2013, o game chamou a atenção de Kellee Santiago, a conceituada desenvolvedora independente que trabalhou em jogos aclamados como "Flower" e "Journey", que estava na fabricante de console Ouya. Miguel fez um acordo com a companhia e "Thralled" seria lançado com exclusividade para a plataforma...

... Isto é, até a Ouya ser adquirida pela Razer, no início deste ano. Ao contrário de jogos financiados via Kickstarter, que ganharam dinheiro extra por meio do programa "Free the Games" mesmo após a aquisição, "Thralled" perdeu qualquer tipo de financiamento, e sua produção foi interrompida.

No momento, Miguel está estudando outras formas de reiniciar o desenvolvimento, principalmente ao contatar e negociar com publishers de menor porte. Ele não entrou em detalhes sobre como anda esta iniciativa, mas disse que, em última instância, pode lançar um projeto de financiamento público, como o próprio Kickstarter.

Além disso, pela natureza de seu visto nos EUA, as opções de emprego de Miguel são limitadas, permitindo-o somente trabalhar em "Thralled".

Ainda assim, o designer confia no projeto e na capacidade do game de ressoar com o público como em outras mídias, assim como na possibilidade de alcançar o público de seu próprio país, fazendo-os aprender de forma diferente.

"Quero fazer games porque acredito que é uma mídia que tem potencial narrativo semelhante à literatura e filmes, e acabam sendo limitados pelos temas", disse.