Análise: "Hellblade" aborda doenças mentais como nenhum outro game
Ansiedade, depressão, psicose, esquizofrenia. Vivemos um momento no qual 322 milhões de pessoas pelo mundo sofrem de depressão e 264 milhões possuem transtornos de ansiedade.
Mesmo assim, a cultura pop (assim como nossa sociedade) ainda trata doenças mentais como uma espécie de tabu.
Sim, é verdade - existem exemplos que abordam o tema bem, como os filmes “Melancolia”, “Donnie Darko”, “Uma Mente Brilhante” e até o game “Alice: Madness Returns”. Infelizmente, o que mais vemos é a representação destes distúrbios seguindo uma narrativa preguiçosa, envolvendo o estereótipo da pessoa ‘louca’ violenta ou então de um personagem cujo propósito segue a linha de alívio cômico.
E é aí que a magia dos games entra na equação, com “Hellblade: Senua’s Sacrifice”.
O jogo, desenvolvido pela Ninja Theory, não apenas possui uma protagonista cujos transtornos mentais são minuciosamente apresentados de forma factível, como ainda apresenta um enredo intimista que insere o jogador na pele de Senua.
A personagem é uma guerreira celta que ficou traumatizada depois de seu vilarejo ser invadido por bárbaros vikings e matarem seu amado companheiro Dillion.
Toda a mitologia envolvida em “Hellblade” traz histórias e deuses destas duas culturas nórdicas de forma metafórica enquanto Senua faz uma longa e árdua jornada em busca de Hela, deusa do Reino dos Mortos para quem Dillion foi sacrificado.
Todo o visual, além de trilha e efeitos sonoros foram propositalmente desenvolvidos para simular as alucinações, visões e flashbacks da jovem celta, que possui claros sintomas de psicose.
O jogador vê e ouve o mesmo que Senua, resultando em momentos de ilusão, agonia, escuridão e diversos sussurros acompanhando seu caminho, falando constantemente sobre como você vai falhar porque é fraca. Isso sem falar que não há qualquer tipo de interface ou tutorial para aumentar a imersão.
Experimente jogar com fones de ouvido. É quase impossível ficar tranquilo ouvindo murmúrios, gritos, choros e lamentações bem ao seu lado. Isso ocorre pois a gravação das vozes foi feita com microfones binaurais, aqueles que permitem a captação do áudio de forma diferenciada dependendo da direção em que o som foi projetado.
A imersão nos delírios da protagonista foi levada muito a sério pela Ninja Theory, que fez pesquisas e discutiu diretamente com especialistas e pacientes que sofrem de transtornos mentais. Assim, tudo que foi inserido no game realmente simula o que ocorre na cabeça de uma pessoa com estes sintomas.
Os enigmas, tão presentes na jogatina, também possuem um propósito de demonstrar como psicóticos lidam com as dificuldades da vida e às vezes montam elaborados quebra-cabeças dos quais só eles entendem, mas que trazem todo um propósito para seguir em frente e desvendá-los para voltar à realidade.
O mais incrível foi o jeito que a desenvolvedora bolou para trazer o jogador para o mundo de Senua: um aviso de ‘permadeath’ logo no início de “Hellblade”. Basicamente, a premissa é de que se você morrer muito, a escuridão tomará o corpo da protagonista e o save será perdido.
Não importa se a mecânica funciona ou não, como já foi discutido nos milhares de fóruns pela internet - aqui, o que vale é a sensação de possível perda, angústia, ansiedade e até medo. Todos sentimentos presentes na mente da protagonista, inseridos no jogador a cada passo dado, a cada novo confronto.
Os combates em "Hellblade" são dignos de um jogo da Ninja Theory, ainda que sejam bem menos frenéticos que em "Enslaved", "DmC" ou "Heavenly Sword".
O ritmo para as lutas lembra quase uma dança: os inimigos possuem ao menos o dobro do tamanho de Senua, que apesar de ser uma exímia guerreira, ainda precisa desviar dos golpes pesados para não cair. Sua pequenez e insignificância perto deles é quase uma metáfora para como uma pessoa com depressão vê como enfrentar os problemas da vida.
Apesar de ser bem cliché, admito que o ‘inferno’ de “Hellblade: Senua’s Sacrifice” tem um dos conceitos visuais mais bonitos que já vi - e foi feito por uma equipe de apenas 20 pessoas, praticamente na "garagem" se comparado com times de estúdios maiores, como os de um "Assassin's Creed" ou "God of War", que contam com centenas de pessoas para fazer cada jogo.
Essa equipe foi capaz de entregar uma obra digna de grandes produções, sem perder as raízes independentes. "Hellblade" é um marco na indústria de games ao borrar a linha já tênue entre indie e AAA, com gráficos bem estruturados mas também a liberdade de desenvolver um produto cujo tema ainda é um tabu nos jogos.
Prova dessa mentalidade independente é a atuação de Melina Juaergens no papel de Senua. Melina não é atriz: ela é editora de vídeo e fotógrafa na Ninja Theory. Os testes com Melina foram tão bem que decidiram mantê-la no papel, fazendo uma ótima escolha para alguém que deu vida ao desespero e tormento da protagonista sem ter formação profissional.
A criação de um novo tipo de tecnologia para captura de movimentos também foi essencial para equipe, que em conjunto com a Epic Games trouxe o conceito de cinematografia em tempo real, tornando possível a rápida produção de cenas que demorariam muito tempo para serem desenvolvidas da forma tradicional.
Tem mais: o preço de "Hellblade" também acaba sendo importante neste tipo de discussão, já que é um game de altíssima qualidade visual, sonora e narrativa com aproximadamente 6 a 8 horas de experiência. Paguei R$ 90 pelo jogo no PlayStation, mas caso você seja um PC gamer, vai sair ganhando: o jogo fica mais bonito ainda em um computador parrudo e custa modestos R$ 56.
Aí, fica a discussão: vale pela curta duração? Sim. Acredite, este game é estressante e te deixa angustiado, à flor da pele. Uma hora de jogatina vai te deixar tão mentalmente cansado quanto diversas horas em um RPG de mundo aberto menos sombrio.
Entre a dificuldade de seguir em frente, o luto, a perda e o abandono da sociedade por causa do estigma de suas doenças mentais, Senua faz uma viagem com um propósito e termina com outros objetivos.
Quando é sempre mais difícil levantar após cair, a protagonista aprende que, na verdade, a maior batalha que um guerreiro enfrenta é em sua própria mente. Acompanhando a jovem celta, nós aprendemos essa lição também.
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