Eu relembrei minha infância ao jogar "Spyro Reignited Trilogy"
Sempre fui uma criança assustada e ansiosa, que tinha o videogame como uma forma genuína de refúgio. Eu me assustava com coisas que nem queriam ser assustadoras, e a situação piorava quando o horror era proposital. Para me ajudar nesses momentos, o dragãozinho roxo Spyro era uma das melhores companhias.
Agora, anos depois de passar por diversos videogames, eu me reencontrei com ele em "Spyro Reignited Trilogy", que já havia sido lançado em 2018 para outras plataformas, mas só agora chegou ao Nintendo Switch. A coletânea inclui três jogos da série e me fez relembrar momentos da infância.
Quando era pequena, jogando no PlayStation 2, lembro de ficar realmente nervosa só de ver qualquer inimigo vindo em minha direção, e apertar os botões descontroladamente. O resultado era um Spyro rodando, soltando fogo e tentando acertar o ar com os chifres desordenados. Ele batia a cabeça na parede e ficava tonto por alguns instantes. Eu me desesperava mais e me lembrava da fragilidade do meu refúgio. Anos depois, esse medo e nervosismo todo receberam um diagnóstico.
Meus pais nunca tiveram aversão a videogame, pelo contrário: eles sempre me incentivaram a ver como uma forma mais do que válida de entretenimento, arte e até aprendizado. Essa liberdade de aproximação com os games fez com que hoje eu trabalhasse com jogos, e com certeza o querido Spyro tem total envolvimento nisso.
Mesmo gostando dele, naquela época eu me recolhia para jogar, ia para cantos da casa e quartos a portas trancadas. Isolar-me em um mundo fantástico onde eu era um dragão corajoso, estiloso e roxo (!!!) me fazia esquecer por um tempo de vários problemas que uma criança de 8 anos geralmente não tem de enfrentar.
Rejogar "Spyro" no remake da trilogia foi estranho de início, como ver um parente que diz que te pegou no colo quando criança e te deixa meio sem graça. Sai o PlayStation e entra o Switch, sai o X e entra o A. Mas a gente se adapta e segue em frente, como no resto da vida adulta. Tudo parecia meio familiar mas ao mesmo tempo desconhecido. Havia uma parte de mim que se lembrava exatamente onde estavam escondidas as chaves para os baús mais raros, mas que ao mesmo tempo não sabia mais combater os inimigos mais persistentes com precisão.
Uma parte de mim se lembrava exatamente onde estavam escondidas as chaves para os baús mais raros, mas ao mesmo tempo não sabia mais combater os inimigos mais persistentes com precisão
No passado, joguei Spyro escondida em um porão em noites chuvosas em que a minha ansiedade era grande demais para me deixar dormir. A esperança de encontrar um novo ovo de dragão, e poder ver um bebê fofo e seu nomezinho aparecendo na tela só para mim, era minha distração enquanto eu tinha impressão de viver em um mundo caindo aos pedaços. Sempre me perguntava se havia um bebê dragão com o mesmo nome que o meu.
A infância tem esse filtro estranho que torna algumas cores mais bonitas, mas faz a foto perder a qualidade assim como distorcemos nossas memórias. Em Spyro, esse filtro é ajudado pelo remaster visual que o jogo recebeu: ele é tão bonito agora quanto eu me lembro de ele ser nos anos 2000 - o que, é claro, não é verdade.
Jogar Spyro mais de dez anos depois me fez pensar em todas as caixas de memória que eu tenho guardadas e acumuladas, quase que marcadas no Guia da minha vida para que eu saiba o que eu já fiz e quantos por cento já passaram. Todos nós temos caixas que guardamos com muito carinho, apesar de às vezes esquecermos delas. Caixas velhas deixadas em algum canto da nossa casa, muito empoeiradas. Quando abrimos essas caixas, ou quando jogamos esses jogos, as lembranças surgem.
"Spyro", por si só, também é um jogo sobre lembranças, e foi isso o que eu mais fiz enquanto jogava a "Reignited Trilogy". Tiramos os dragões do seu estado de joia para que eles nos contem o que se lembram sobre o povo dos dragões e até os controles do jogo. Procuramos os ovos que Bianca rouba para que tenhamos a quem passar essa memória. Criamos narrativas, além daquelas roteirizadas, que se conectam conosco para que possamos lembrar. Lembrei de como era jogar em videogames em que os controles tinham fios e precisavam, às vezes, ser plugados e desplugados do console para funcionar. Lembrei de como salvávamos nosso progresso em Memory Cards e às vezes tínhamos de dar adeus a um orgulhoso save de 100% para abrir espaço às novas aventuras. Lembrei que, além de jogar com o Spyro eu também brincava de ser um dragão em um faz-de-conta na vida real.
Lembrei de como salvávamos nosso progresso em Memory Cards e às vezes tínhamos de dar adeus a um orgulhoso save de 100% para abrir espaço às novas aventuras
"Spyro Reignited Trilogy" resgata completamente aquele tom de brincadeira dos videogames que eu sinto que se perdeu ao longo dos anos - nos videogames e em mim. É gostoso poder não sentir uma urgência narrativa de completar a história e os colecionáveis dos mundos, e poder se lembrar também dessa sensação da infância de que tínhamos todo o tempo do mundo e todo o resto pode esperar. São muitos pulos e voos nos lugares certos para que você avance na sua busca, mas ao mesmo tempo você pode explorar com calma o mapa e coletar cada uma das joias deixadas nos cantinhos do mapa - o que é, definitivamente, muito importante para que você liberte certos personagens.
Quando pequena, eu chorava toda vez que percebia que não tinha diamantes suficientes para fazer uma troca com Moneybags pela liberdade de um dos bichinhos. Muitas vezes não havia em mim essa calma toda que o jogo oferecia. Hoje, mais velha, vejo todos esses fragmentos da minha infância como um grande reflexo do que sou hoje. De certa forma sou todos os personagens que fiz questão de libertar por ser uma criança que genuinamente se entristecia de ver um animal preso. Fazemos dos jogos um grande reflexo de nossas personalidades, e deixamos que eles nos moldem com suas mecânicas, narrativas e desafios; e isso é bom, já que nos ajuda a crescer.
Talvez daqui a alguns anos eu resolva me encontrar com Spyro novamente para escrever sobre envelhecer. Até lá, só quero me lembrar.
Fazemos dos jogos um grande reflexo de nossas personalidades, e deixamos que eles nos moldem com suas mecânicas, narrativas e desafios; e isso é bom, já que nos ajuda a crescer
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