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Women Game Jam incentiva mulheres no desenvolvimento de games

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Imagem: Arte/UOL

Giovanna Breve

Colaboração para o START, em São Paulo

24/09/2019 15h59

Resumo da notícia

  • Evento dedicado ao público feminino, trans e não-binário surgiu na Alemanha e chegou à sua terceira edição no Brasil
  • Na maratona, participantes aprendem sobre game design, formam grupos e precisam criar um game em 48 horas
  • START conversou com organizadoras e participantes, que se dizem mais à vontade do que nos eventos tradicionais, em que predominam os homens

É tarde de domingo em São Paulo, e o prazo está acabando para cerca de 40 mulheres. Algumas conversam em mesas redondas, outras estão focadas na tela do notebook ou descansando em redes pelo jardim. Pode não parecer, mas elas dormiram pouco e estão chegando ao final de uma maratona intensa. É o terceiro e último dia da Women Game Jam (WGJ), um evento que incentiva o público feminino, trans e não-binário a criar games em 48 horas.

"A maioria das 'jams' são mistas, então só de pensar em ficar 48 horas com a maioria de homens... já se torna uma barreira", explica Nayara Brito, animadora 3D e organizadora da WGJ no Brasil. Ela conta que o evento permite a criação de um ambiente em que o público feminino se sente mais à vontade para aprender, arriscar e até buscar conexões no mercado de trabalho.

WGJ Nayara Brito - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Nayara Brito é animadora 3D e organizadora da WGJ no Brasil
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Em seus anos organizando "jams", ela já presenciou sentimentos de insegurança e desconforto por parte de mulheres que participavam. As garotas com quem conversei durante a WGJ de São Paulo, que aconteceu de 13 a 15 de setembro, relatam que, nas "jams" tradicionais, já sofreram assédio ou então tinham suas ideias descartadas sem qualquer discussão. Na Women Game Jam, elas encontraram um evento mais inclusivo e aberto para darem seus primeiros (ou até segundos) passos na criação de games.

Da Alemanha para o Brasil

WGJ Participantes - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Participantes da edição São Paulo da WGJ 2019
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

As "game jams" nasceram como maratonas colaborativas e começaram a tomar forma em 2002. Ao se espalharem pelo mundo, incentivavam a inovação e criatividade entre os desenvolvedores. A partir da restrição de tempo e recursos, esse tipo de evento valoriza a necessidade de improvisar, testar novas ideias e criar novas conexões profissionais para finalizar um jogo em tempo recorde. Com a popularização do formato, surgira muitos bons protótipos e ideias, alguns deles virando games de sucesso mais tarde, como "Goat Simulator" e "Super Hot".

Nayara descobriu a Women Game Jam através de um amigo no Facebook. Ela não pôde comparecer ao evento na Alemanha, mas gostou da ideia e decidiu trazer a maratona para o Brasil. O que não foi uma tarefa difícil, já que ela havia organizado de 2013 até 2017 a SP Game Jam, um dos primeiros eventos do tipo no estado.

Quando você é mulher e faz um curso de jogos vai conhecer no máximo umas quatro meninas, e três delas não vão seguir na área. A ideia é juntar todas no mesmo lugar e criar uma comunidade
Nayara Britto, organizadora nacional da WGJ

A game designer conta que queria trazer esse tipo de experiência para o Brasil pela missão do projeto, que é criar uma rede de contato entre mulheres da indústria de games. "O intuito é de fazer as mulheres se conhecerem. Quando você é mulher e faz um curso de jogos vai conhecer no máximo umas quatro meninas, e três delas não vão seguir na área. A ideia é juntar todas no mesmo lugar e criar uma comunidade", explica Nayara em entrevista ao START.

A primeira edição da Women Game Jam aconteceu na PUC-SP entre os dias 20 e 22 de abril de 2018 e teve transmissão simultânea na Alemanha. Por conta do pouco tempo para estruturar a maratona, foram apenas quinze participantes, mas o suficiente para atrair olhares de interessados.

WGJ Improviso - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Improviso e colaboração fazem parte da dinâmica de uma game jam: participantes se organizam em grupos e têm tempo limitado para criar um game
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Depois desse evento, os organizadores alemães optaram por mudar o foco de suas "jams", e a Women Game Jam mudou a sede principal para São Paulo. Mas, tal qual coração de mãe: sempre cabe mais um, e o evento migrou para outras cidades do Brasil e países vizinhos.

Com o aumento pela procura, a Women Game Jam tomou forma para abranger um maior público de interessadas. Atualmente, a organização é composta por uma representante de cada sede dos eventos, feito em cidades espalhadas pelo Brasil e na América Latina, e cada sede há uma equipe de produção local como staff e mentoras.

Esta última edição aconteceu em nove cidades além de São Paulo: São Carlos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), São Luís (MA), Curitiba (PR), Porto Alegre (RS), Novo Hamburgo (RS) e Brasília (DF), e em cinco países da América Latina como Argentina, Peru, Chile, Colômbia e México. Nayara revela que há interessados em levar a WGJ para outros países como Inglaterra e Canadá.

Mercado de trabalho

WGJ Marina Peripato - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
A partir de uma edição da WGJ, Marina Peripato conseguiu emprego na área de games
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL
Neste ano, o evento conseguiu apoio de patrocinadores que têm ajudado a aumentar o número de desenvolvedoras e programadoras na indústria de games. Como é o caso de Marina Peripato: foi uma das participantes da segunda WGJ e, graças ao evento, conseguiu emprego na Wildlife (antiga TFG), uma das maiores empresas do setor de games mobile. "A TFG [na época] veio ao evento falar sobre a empresa, o que fazem, e a representante comentou que havia vagas abertas no site. Na hora vi uma vaga para mim. Assim que ela saiu da apresentação fui falar com ela e pedi um e-mail e recomendação. Depois de uma semana do evento, fiz entrevista e na semana seguinte estava contratada", conta a animadora 2D ao START.

Nesse tipo de evento, você cria uma rede de suporte para saber que além da faculdade existe um mercado receptivo a elas
Marina Peripato, animadora 2D

De participante, Marina agora se tornou uma das organizadoras da Women Game Jam e esteve orientando as meninas e ajudando na estrutura do evento. "É muito emocionante, pois para mim mudou a minha vida. Estou trabalhando com games há quase um ano, entrei como júnior e agora estou na posição de gerência, então foi um pulo".

Além de uma jam

WGJ Colaboração - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Artistas, programadores e até roteiristas podem formar um grupo – e muitas pessoas acabam se conhecendo na hora
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Enquanto observava o último dia da WGJ, eu via que as participantes estavam mais à vontade e tranquilas em fazer um jogo. Um cenário atípico de "game jams", que geralmente são competitivas.

Nayara Brito acredita que por conta de o evento não ter um teor de competição (prêmio físico ou simbólico), o clima acaba sendo mais tranquilo. "A gente ficou conversando sobre o que poderia ser, acho que por ser um ambiente mais seguro e todo mundo sabe que aqui é um lugar para aprender ninguém está com medo de não finalizar. Sem esse medo e a ansiedade, todo mundo produz e tem um jogo sem pressão", diz a organizadora.

Mas quem acha que o evento se volta apenas para desenvolvedoras no início de carreira se engana. Em meio às mesas redondas durante a jam, encontrei Viviane Vasconcelos conversando com seu grupo. Aos 44 anos, ela é formada em pedagogia e vem de uma família de professores. Trabalhou durante 20 anos na área financeira, e admite que não entende muito de jogos, mas começou a ter interesse após ter aulas de gamificação na pós-graduação em design instrucional.

WGJ Viviane - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Viviane Vasconcelos, 44, trabalhou no mercado financeiro por 20 anos, e descobriu as game jams por indicação de um sobrinho
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Ela conta que ficou sabendo da game jam através de seu sobrinho, que trabalha em T.I. Interessada com a premissa do evento, decidiu ir por conta própria para conhecer melhor o processo dos jogos digitais. Em entrevista ao START a pedagoga ficou feliz em como a WGJ consegue ser atenciosa com as pessoas mais inexperientes no assunto. "Fantástico! A organização do evento é maravilhosa, as pessoas são muito bem acolhidas."

Logo no primeiro dia, Viviane fez amizades. "Foram superacolhedoras. Apesar de eu não entender nada dessa área, elas me mostram o conteúdo que tem que entender". Viviane relata que ajudou no escopo e nas fases iniciais do game criado pelo seu grupo.

Esse clima de acolhimento não só atrai garotas novas como também faz as "veteranas" se sentirem parte de algo maior, voltando sempre ao evento. Como é o caso de Mariana Souto: a estudante de game design foi uma das quinze participantes do evento de 2018, e desde então ela e mais duas amigas se reúnem para participar e produzir jogos de forma descontraída. "Apesar de ter sido pequena [a primeira edição], foi uma experiência única e boa. Pela quantidade de presentes todo mundo se conheceu e foi um ambiente acolhedor e divertido para conhecer outras meninas na área. É bom trocar ideias com outras e ver que tem pessoas começando agora na indústria", conta Mariana.

Machismo na indústria dos games

Não é apenas com jogadoras e criadoras de conteúdo que rolam episódios de machismo. Na indústria de games, desenvolvedoras são minorias, como mostra o II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, divulgado em 2018 e coordenado pela equipe multidisciplinar Homo Ludens em parceria com o Ministério da Cultura. A pesquisa revelou que as mulheres representam apenas 20,7% (565) enquanto homens são 79,3% (2.166) nas empresas que trabalham com jogos no Brasil. Um aumento comparado ao I Censo de 2013, que havia registrado 15% (173) de mulheres e 85% (1.133) dos entrevistados homens. Apesar do baixo número, o crescimento foi maior em trabalhadoras do sexo feminino.

Mariana Souto lembra que, ainda na faculdade, ela e a amiga sempre recusaram convite de "game jams" por parte dos colegas por receio de acontecer algum tipo de violência por parte dos participantes. "Por estar em um ambiente muito grande, passar a noite com pessoas desconhecidas, ainda mais majoritariamente masculino, a gente prefere evitar", explica ela.

Mesmo estudando em um curso predominantemente masculino, Mariana revela que é "privilegiada" de nunca ter sido vítima de machismo, mas conhece terceiras que passaram por situações de constrangimento. "É muito difícil ser mulher e não conhecer outra que não sofreu nada na indústria de jogos."

WGJ Notebook - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Marina Peripato, que tem experiência em "game jams" mistas, relata que o machismo presente em eventos não é explícito, mas nas pequenas atitudes dos participantes homens, em práticas como o mansplaining. "O que eu já vi e acontece bastante é a ideia de mulheres serem atropeladas, porque geralmente as "jams" são lugares em que você junta em um grupo com muitas pessoas diferentes, e você precisa se impor muito se quiser que a sua ideia seja levada para frente, então as mulheres fazem o dobro. Eu já estive em um grupo que todas as ideias das mulheres eram invalidadas."

O que eu já vi e acontece bastante é a ideia de mulheres serem atropeladas, porque geralmente as jams são lugares em que você junta em um grupo com muitas pessoas diferentes, e você precisa se impor muito se quiser que a sua ideia seja levada para frente. Eu já estive em um grupo em que todas as ideias das mulheres eram invalidadas
Marina Peripato

Nayara desabafa: já passou por um assédio durante uma game jam na posição de organizadora: "Um dos participantes pediu para eu apresentar para ele o campus e quando estava em uma parte mais escura, ele me abraçou e fiquei numa situação, mas acabei acelerando o passo, dei uma despistada e acabei saindo. O mais 'engraçado' foi que meia hora antes eu havia sido entrevistada e me fizeram a pergunta se eu já havia presenciado uma situação de abuso."

Apesar desses episódios, a maioria das entrevistadas pelo START incentiva as "game jams", pois sabem que atitudes assim são raras em eventos. A Women Game Jam acaba se tornando um tipo de refúgio para mulheres aprenderem a desenvolver jogos sem pressão e o julgamento de terceiros.

Independência e identidade

WGJ Julie Campos - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Julie Campos já participou de game jams mistas, e diz que se sente mais à vontade na Women Game Jam
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

"Independência e identidade" foram os assuntos escolhidos da 3º Women Game Jam, palavras que carregam diversos significados para cada uma das presente.

Angélica Kanô, uma das participantes, acredita que o tema veio a calhar em muitos sentidos, tanto que seu grupo optou por trabalhar com a ideia de autonomia. "Achei esse tema superadequado, dentro das discussões que estão acontecendo, e para mim a identidade e independência estão conectadas ao sentido de liberdade", conta a pedagoga em entrevista ao START.

A WGJ tem um potencial muito grande de desenvolvimento de produto, mas principalmente desenvolver o sentimento de competência das mulheres em relação à área de jogos
Angélica Kanô, pedagoga e participante da Women Game Jam

Além das questões internas, Angélica também relaciona os temas presentes nos assuntos do cotidiano e nos noticiários. "Acho que no cenário atual político no país em que a gente se encontra é importante saber o posicionamento que se tem sobre o respeito, a liberdade das pessoas de serem e pensarem diferente."

Julie Campos é trans, negra e game designer e conta ao START que, mesmo já tendo participado em "game jams" mistas, ela opta pela Women Game Jam pelo ambiente e pelas pessoas, o que é um diferencial na hora de produzir um jogo e lidar com a equipe. "Aqui a galera está se ajudando muito mais e todas estavam mais próximas, o que ajuda bastante. Todos estão fazendo o seu melhor, e eu sinto que tenho mais liberdade de ser quem eu sou, enquanto nas 'game jams' mistas, nem tanto."

Todos estão fazendo o seu melhor, e eu sinto que tenho mais liberdade de ser quem eu sou, enquanto nas 'game jams' mistas, nem tanto
Julie Campos, game designer

WGJ Tati Tatu - Gabriela Cais Burdmann/UOL - Gabriela Cais Burdmann/UOL
Imagem: Gabriela Cais Burdmann/UOL

Nayara afirma que este ano foi o maior o número de inscrição de mulheres cis, trans, não-binárias, negras e apoiadoras do movimento LGBTI. "Nesta edição está bem mais variado do que as últimas, tivemos a presença de mulheres trans e já é um avanço. É um sinal de que a gente está alcançando um público maior e mais variado."

Parte dessa diversidade aparece nos resultados dos jogos produzidos na jam após a entrega dos projetos que foram subidos para o Itch Io (plataforma online que hospeda jogos indies). Angélica conta que, apesar do cansaço por dormir apenas 4 horas, foi uma alegria ter feito uma game jam e conseguido terminar um jogo no período de 48 horas. "Foi maravilhoso! Eu achei legal que a gente celebrou e conseguiu entregar e não ficamos pensando naquilo que não conseguimos terminar. Fizemos todas as estruturas e toda a documentação necessária para participar e entregamos. A gente gritou e celebrou bastante (risos)".

Nesta edição está bem mais variado do que as últimas, tivemos a presença de mulheres trans e já é um avanço. É um sinal de que a gente está alcançando um público maior e mais variado
Nayara Brito, organizadora nacional da WGJ

Para algumas, é uma forma de liberdade como o game Lux, feito pelo grupo da Angélica, que apresenta uma personagem que, por se importar demais com a opinião dos outros, acaba perdendo a sua cor e precisa reencontrar sua identidade. Ou o game IdBeat, do grupo da Julie, que associa a criação de formas através de música que, ao terminar o ritmo, forma uma figura única. Já o grupo de veteranas da Mariana criou o Chill Hop Café, em que o jogador personaliza uma cafeteria enquanto escuta o estilo chillhop, afinal, relaxar também é uma escolha.

É possível conferir esse e outros jogos feito pelas mulheres tanto de São Paulo como de outras cidades na página do itch io do Women Game Jam.

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