Direto do Piauí: "Asleep" é um terror psicológico sobre depressão
Como é fazer jogo de terror folclórico e psicológico no Brasil? Como é a cena de desenvolvimento indie no Nordeste? E você já ouviu falar do Cabeça de Cuia?
Décio Oliveira (Dex Drakon para os íntimos) é uma figura importante na cena de criação de jogos do Piauí, responsável pelo ótimo terror "The Last NightMary - A Lenda do Cabeça de Cuia". Na entrevista ao START, ele dá mais detalhes de seu novo projeto, "Asleep".
START: Antes de falarmos de seu novo jogo, gostaria de saber como anda sua vida de game dev nesses últimos anos. Sei que você entrou e saiu de alguns estúdios, certo? O que você tem feito desde o "Cabeça de Cuia"? Como tem sido a cena de desenvolvimento de jogos aí na sua área?
Décio Oliveira: Pois é, desde "The Last NightMary" e a Submersivo Game Studio, muita coisa tem acontecido na minha vida. Passei um tempo sem desenvolver nada relacionado a jogos, inclusive, vivendo uma época muito difícil com depressão e tudo, mas sempre mantive a chama game dev acesa. Até que em 2018 reencontrei um amigo, o Luis F. Patrocínio, vi muito potencial nos jogos que ele fazia, e não muito tempo depois decidimos fundar a Black Hole Games, eu nas artes e ele nos códigos. E sobre a cena local fico feliz em poder dizer que, de uns tempos pra cá, a cena piauiense tem se desenvolvido bastante e hoje temos até um pequeno ecossistema dev, graças ao PiauIndie, grupo de desenvolvedores independentes do Piauí.
START: Como "Asleep" aconteceu? Por que se viu na necessidade de voltar ao terror, com algo mais mundano e psicológico?
Décio Oliveira: "Asleep" tem uma história muito intrínseca a mim e minha carreira como dev. No início, quando descobri que poderia desenvolver jogos, em meados de 2013 e antes mesmo da Submersivo, eu tive uma ideia de jogo que intitulei provisoriamente de "Insomnia". Era uma ideia meio louca onde a protagonista fazia viagem astral através de auto-indução para entrar em seus próprios pesadelos e resolver o problema de sua estranha insônia. Bem, não tinha conhecimento técnico na época para produzir a ideia e engavetei. Mas, de tempos em tempos, abria o documento de Game Design para lapidar a ideia, até que recentemente me senti seguro para produzir e começamos. Foi aí que se transformou em "Asleep". E, bem, a escolha do gênero terror foi uma espécie de amadurecimento, achei que o gênero se encaixava bem demais na proposta, pois o game trata de temas relevantes e contemporâneos e queremos passar uma mensagem para o público.
START: Você está sozinho na empreitada do "Asleep"? Conta mais sobre quem tem feito o jogo com você, como tem sido a produção.
Décio Oliveira: No começo, eu nem tinha a Black Hole. Tentei algumas vezes montar uma equipe com pessoas que tinham vontade de entrar no ramo de desenvolvimento, mas a princípio não deu muito certo. Até que achei algumas "pérolas" e que compraram a ideia do projeto. E esse foi um diferencial e tanto, pois todos que trabalham no projeto atualmente, 4 pessoas contando comigo, fazem parte do estúdio e têm um apreço imenso pelo nosso "filho". Para se ter ideia da equipe, temos especialmente uma roteirista, a Juliana Almeida, trabalhando no background da protagonista e de toda ambientação do game, não só por ser competente e esforçada, mas achei importante ser uma mulher nesse papel para tornar a protagonista ainda mais crível. Outro membro da equipe é um compositor local muito bom, o Matheus Vilarindo, que inclusive foi aprovado na Universidade de Berkeley, uma das mais conceituadas do mundo, e está fazendo um trabalho incrível com a gente.
START: "Asleep" segue o caminho trilhado por jogos como "Lone Survivor" e "The Cat Lady". Você curte esses jogos? Acha que esse tipo de gameplay e perspectiva conversam bem com terror?
Décio Oliveira: Não só gosto como tem alguns fatos curiosos a respeito desses jogos e "Asleep". "Lone Survivor", no início, era apenas uma referência de jogo de terror em pixel art, até por ter a mesma perspectiva/visão usada em "Asleep" (e bebemos muito de "Silent Hill"), mas depois vi que tinha muito mais. Graças à nossa roteirista, percebi que "Lone Survivor" era muito mais profundo, tratando de alguns temas que "Asleep" também pretende abordar, como depressão e outros transtornos psicológicos. Me emocionei bastante quando joguei ele pela segunda vez, inclusive, me identificando bastante. Já "The Cat Lady" eu só conhecia por nome, mas conheci melhor através da Juliana, que sempre consegue fazer um apanhado incrível trazendo as melhores referências para o projeto. E, bem, ambos são o tipo de jogo de terror que me atrai muito, pois é um terror construído através de histórias muito reais e contemporâneas. O terror deles é, na verdade, uma analogia direta à vida difícil e sofrida dos personagens desses games. Não é um terror pra assustar, é um terror que, inclusive, humaniza pessoas marginalizadas da nossa sociedade doentia. E isso é o que um bom terror faz, tem tudo a ver com o gameplay desses jogos!
START: Impossível não pensar em "Silent Hill" enquanto a garota explora pelas ruas de uma cidade decrépita e envolta em névoa. As criaturas que atacam a garota também remetem a "Silent Hill", como também ao j-horror de forma geral. Qual sua relação com a franquia da Konami e com esse tipo de terror?
Décio Oliveira: É, acho que já deu pra perceber que sou super fã de "Silent Hill", hehe. A primeira vez que joguei, foi quando era muito pequeno ainda, não conseguia nem jogar muito de tanto medo, mas foi o primeiro jogo do gênero que me impactou, até onde eu lembro, e desde então tenho sentido falta de jogos como o primeiro "Silent Hill". Acho que não só eu, mas muitos outros fãs também. "Lone Survivor" é uma prova disso. O curioso é que "Asleep" é ambientado em uma cidade fictícia do Piauí (inspirada em minha cidade, Piripiri), que tem muito a cara de "Silent Hill", não visualmente, claro, mas por vários outros aspectos. Como o fato de ser uma cidade pacata e pequena, ter uma forte influência da religião e alguns aspectos geográficos parecidos, como um açude que se tem aqui chamado Caldeirão (fazendo uma comparação com Toluca Lake). E, acredite, a neblina é um mero detalhe, haha.
START: O que você tem visto, jogado, lido relacionado a terror e que tem influenciado em Asleep? Como é dosar influência e algo próprio, seu?
Décio Oliveira: Essa é uma pergunta realmente difícil, pois, como falei, "Asleep" tem sido uma construção de anos e lembrar de certas referências, às vezes, pode ser um desafio. Mas se fosse para citar uma referência importante, eu diria que o terror de Lovecraft, que é um terror muito pautado na solidão. E já que toquei nesse ponto, posso dizer que muito do que se tem em "Asleep" são experiências de vida, momentos difíceis que tenho passado e tenho visto algumas pessoas próximas passarem também. Acho que é por isso que a decisão de ambientar o jogo em uma cidade do interior do Piauí/Nordeste tem sido um acerto, não só pela representatividade e possibilidade de explorar um cenário tão rico e ainda pouco utilizado nos jogos, mas por amplificar essa proximidade com as pessoas que já passaram ou passam por problemas como a própria depressão, por exemplo. Em poucas palavras, eu poderia dizer que "Asleep" é uma carta de amor, não só a "Silent Hill", mas também uma carta às pessoas em difícil situação psicológica, pois só elas sabem o terror que é passar pelo que passam.
Acredito que videogame, em geral, é a ferramenta cultural mais poderosa que se tem na atualidade, mas poucos se dão conta disso
START: Você pretende colocar elementos folclóricos em seu jogo? Cabeça de Cuia me marcou justamente por me apresentar a um ser mitológico que desconhecia completamente até então.
Décio Oliveira: Tem algumas lendas locais que estarão dentro do game, pois eu gosto muito de valorizar o que é cultural e local, mas não sabemos ainda exatamente em que momento isso irá se mostrar. Atualmente, estamos focando em terminar uma demo polida com um nível completamente jogável, com todas as mecânicas principais, para só então avançar com mais detalhes em elementos da narrativa como esse.
START: Ainda nesse aspecto cultural, você acha que videogame é uma boa ferramenta, um bom indutor e condutor de diálogo e descobrimento, nesse sentido? E como você se vê como representante disso?
Décio Oliveira: Acredito que videogame, em geral, é a ferramenta cultural mais poderosa que se tem na atualidade, mas poucos se dão conta disso. E acho que o nosso dever como desenvolvedor e produtor cultural é de, não só deixar isso claro para os jogadores, mas também atrair pessoas que não jogam ou não entendem muito do potencial dos games. Felizmente, vejo que as coisas estão mudando e o número de produtores que fazem jogos com essa perspectiva está em ascensão.
START: Tem ideia de quanto tempo mais até Asleep ficar pronto?
Décio Oliveira: Creio que demore em torno de um ano, mas tenho receio por não termos nenhum tipo de financiamento, ainda. É por isso que penso em fazer algum crowdfunding, não só para prolongar o lançamento, mas para acelerar também. Isso ajudará muito a quem está iniciando na área de games e está na equipe. E é uma coisa que sempre gosto de encorajar, que as pessoas ingressem nesse ramo, mesmo com dificuldades iniciais, que encontrem outras pessoas que produzam, se unam e superem desafios e os próprios limites. Afinal, foi exatamente assim que entrei no ramo, haha!
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